terça-feira, 27 de setembro de 2022

A lenda do sapateiro de Capelins de Baixo

 A lenda do sapateiro de Capelins de Baixo 

Nos anos de 1840, existia na Aldeia de Capelins de Baixo um pobre sapateiro chamado Manoel Rodrigues, que passava os dias e noites a bater sola, mas por muito que trabalhasse não passava da cepa torta, porque tinha muitos filhos e, por a mulher, chamada Domingas Rosa estar sempre doente, não podendo trabalhar para ajudar nas despesas da casa! A ti Domingas andava sempre a tomar mesinhas caseiras porque era o que havia naquele tempo, mas nada a fazia melhorar! O ti Manoel, tinha que se deslocar a Vila Viçosa, sempre que os materiais para o seu ofício se estavam a esgotar e, como ela reparou que já quase não havia, perguntou ao ti Manoel quando ia a Vila Viçosa? 
Ti Manoel: Então porquê Domingas? Querias ir comigo? 
Ti Domingas: Eu quero lá ir contigo Manoel! E mesmo que quisesse a burra da comadre Jacinta podia com os dois e com as coisas que tens de trazer! Quero que fales lá com o Boticário e lhe peças alguma mesinha para a minha doença!
Ti Manoel: Oh Domingas, então e como é que eu sei qual é a tua doença? O que queres que eu diga ao Boticário?
Ti Domingas: Dizes que eu ando muito doente homem! Não tenho vontade de comer, não tenho força nenhuma e nem sou capaz de obrar!
Ti Manoel: Tanta doença junta! Como é que queres ter força e obrar se não comes quase nada mulher! Mas fica descansada, eu vou segunda-feira a Vila Viçosa, vou falar com o Boticário e trago a mesinha! 
No Domingo, o ti Manoel pediu a burra emprestada à comadre Jacinta e, antes das quatro da madrugada de segunda-feira já a estava a albardar a burra e de saída para Vila Viçosa, foi pelo Cebolal, Nabais, Monte Branco, Ribeiro do Alcaide, passou perto da Igreja de Nossa Senhora da Boa Nova, subiu a Ribeira do Lucefécit até à ponte romana e só parou no Alandroal, para a burra beber água e descansar, chegando a Vila Viçosa antes das 09 horas! Prendeu a burra, deu-lhe uma pouca de palha e um punhado de aveia e foi dar uma volta pela Vila, andou por algumas oficinas de sapateiros seus conhecidos para saber as novidades do reino e sobre sapataria, mas pelas 10 horas já estava na loja oficina onde comprava todos os materiais que precisava, ensacou tudo dentro de sacos de serapilheira, despediu-se dos comerciantes, foi logo arrumar as coisa nos alforges da burra e, não demorou muito tempo pôs-se a caminho de Capelins! Parou novamente no Alandroal para ele e o animal descansarem um pouco, depois, dali só já parou no Monte Branco, como fazia habitualmente, para visitar o parente Inácio Gomes que era aqui o hortelão! Ao desmontar da burra é que se lembrou da encomenda da ti Domingas sua mulher, mas já era tarde, era impossível voltar dali a Vila Viçosa! E agora? Que desculpa arranjava para ela não lhe dar cabo da cabeça? O parente Inácio viu-o chegar e aproximou-se fazendo um grande cumprimento, mas o ti Manoel não parecia ele, nem o ouvia e só quando ele lhe deu uma palmadinha nas costas é que reparou nele! Quando se virou o parente Inácio ficou assustado, o ti Manoel estava mais branco do que a cal da parede, parecia que ia desmaiar logo ali! O parente Inácio amparou-o e perguntou-lhe o que se passava! Pediu-lhe para se sentar no poial da porta não fosse cair desamparado! O ti Manoel sentou-se  e contou ao parente qual era a causa de estar naquele estado! O parente sossegou-o logo, disse-lhe que sabia muitas mesinhas para tudo! Os peregrinos, alguns de Espanha, que por ali passavam a caminho de Nossa Senhora da Boa Nova, pernoitavam no cabanão, depois, no Monte davam-lhe sempre alguma comida e água e eles ensinavam-lhe as mesinhas que sabiam, todas feitas a partir de ervas, por isso, ia já resolver o caso, mas impunha a condição de ele dizer à mulher que era uma mesinha do Boticário, que era nova em Vila Viçosa, mas já curou muitas pessoas com a doença igual à dela, pelo mundo fora e, que te custou os olhos da cara!
O ti Manoel, considerado um homem muito honrado declinou logo a oferta do parente, porque não podia mentir à mulher, se nunca o fez, não era agora que o fazia! Digo-lhe a verdade e fico com a minha honra honrada! Nesse caso, não aceitas a minha mesinha, que tenho a certeza ia curar a tua mulher, porque eu sei que a doença da parenta são nervos e, achas que a vais curar com essa tua honra?  Isso é uma mentira insignificante e, daqui a um ano ou dois já lhe podes contar a verdade! Disse-lhe o parente! 
O ti Manoel esteve a pensar um pouco e acabou por aceitar a proposta do seu parente Inácio, uma vez que era para bem de sua mulher! O parente Inácio fez a mesinha, uma infusão à base de erva cidreira e funcho e, quando a mistela já estava fria adicionou-lhe o sumo de um limão e ficou pronta para meter na garrafa que o ti Manoel trazia! O parente recomendou-lhe para quando chegasse a casa passá-la para uma púcara de barro tapá-la bem e, para a Ti Domingas tomar duas colheres em jejum e duas colheres ao deitar até a acabar, mas dentro de oito dias já estaria boa! 
O ti Manoel agradeceu ao parente, despediu-se de todos e continuou a viagem até sua casa, onde a ti Domingas o esperava ansiosa pela mesinha milagrosa, na esperança dela acabar com a sua doença! 
O ti Manoel fez tudo como o parente Inácio lhe disse, a ti Domingas não desconfiou de nada e só lhe perguntou como arranjou tanto dinheiro para a mesinha! O ti Manoel com ar de convencido disse-lhe que teve de deixar de comprar algumas coisas, porque primeiro estava ela e, pelo que o Boticário lhe tinha dito de certeza que a mesinha valia o dinheiro e que ela ia mesmo ficar boa, ficando a conversa por ali! 
Ainda nessa noite, ao deitar, a ti Domingas tomou as duas colheres recomendadas, fez uma careta, porque era muito má de tragar, mas logo murmurou. "As que custam a tomar é que são boas"! Três dias depois de começar a tomar a mesinha, o organismo da ti Domingas começou a funcionar normalmente e, já tinha mais apetite, cada dia que passava melhores eram os resultados e, passados quinze dias a ti Domingas já andava a ceifar sem nenhuma queixa! O marido andava abismado, a mesinha feita pelo seu parente Inácio tinha-lhe curado a mulher, mas não dizia nada, não fosse ela ter alguma recaída! Na ceifa a ti Domingas destacava-se das outras mulheres ao ponto de começarem a comentar sobre o que teria acontecido para se verificar aquela mudança, tanto insistiram em saber que ela não teve outro remédio senão contar que estava curada do mal que tinha, devido a uma mesinha que o marido tinha comprado no Boticário de Vila Viçosa, muita cara, mas era a melhor do mundo, curava todos os males e ela era a prova! 
O caso da ti Domingas depressa se espalhou pelas terras de Capelins, diziam que era um um milagre e todas as pessoas exclamavam: "Também quero! Tenho de a comprar, porque há muito tempo que ando aqui com istou ou com aquilo! E perguntavam: Como se chama a mesinha, para a mandar vir de Vila Viçosa? Mas todos respondiam: "Não sei"! Faltava a ti Domindas dizer o nome da mesinha, mas a sua resposta era sempre a mesma: "Não sei"! Então começou o corropio para casa dela falar com o mestre sapateiro, até os que andavam sempre à "pata galhana" lhe entravam pela casa dentro a perguntar o nome da mesinha que tinha curado a ti Domingas, mas a sua resposta era: "Não sei"! Não trazia nome! Deixe, não há problema, vou a Vila Viçosa e decerto lá a encontro, diziam alguns! O problema surgiu quando esses foram a todos os Boticários e nenhum conhecia a nova mesinha que curava todos os males! A partir daí começaram a apertar o cerco ao ao mestre sapateiro, queriam saber onde ele tinha comprado a dita mesinha, porque isso não não se fazia! Queria-a só para a mulher dele e chamavam-lhe mentiroso, porque nenhum Boticário a conhecia em Vila Viçosa e mais isto e mais aquilo! O sapateiro já nem dormia a pensar como se ia livrar daquela embrulhada, mas por mais que pensasse não encontrava nenhuma maneira e nem podia dizer que afinal a mesinha tinha sido feita pelo seu parente Inácio! Sem solução à vista, pensou em ir pedir ao parente se o ajudava a resolver a situação! Levantou-se de madrugada e disse à mulher que tinha de ir a um Monte tirar a medida de umas botas para um lavrador e que era longe mas voltava antes do meio dia e lá foi a caminho do Monte Branco! O parente assim que o viu chegar, ficou preocupado e foi a correr ao seu encontro a cumprimentá-lo e a saber qual a razão da sua visita! Depois de se cumprimentarem, o ti Manoel disse-lhe: Oh parente, tens de me ajudar, estou metido numa camisa de onze varas! E contou-lhe o que se estava a passar sobre a mesinha que tinha curado a ti Domingas! Estás assim só por isso? Eu tenho remédio para tudo! Respondeu o parente Inácio!
O ti Manoel, não disse, mas pensou: "Ora essa! Estou para ver como é que ele remedeia o que não tem remédio"!
Ti Manoel: Então vê lá isso parente, o que vou eu dizer às pessoas que não me largam a porta?
Ti Inácio: Vais dizer-lhe uma parte de verdade e, a outra não é toda verdade mas é como se fosse! 
Ti Manoel: Não estou a perceber parente! Eu não sou pessoa de mentiras, como sabes sou muito honrado!
Ti Inácio: Lá voltas tu ao mesmo! Foi a tua honra que curou a tua mulher? Desonra era deixá-la andar como andava, por uma coisa de nada! Se quiseres eu safo-te da camisa de onze varas! Se não queres, fica lá com a tua honra, mas digo-te já, se vierem cá ter comigo eu não posso andar a fazer mesinhas para todos e arranja-se aqui um grande problema para todos! É isso que queres?
Ti Manoel: Não parente! Não quero isso! Então diz lá o que tenho de fazer ou dizer às pessoas?
Ti Inácio: Não fazes nada! É só dizeres o seguinte: "Há mais de um mês fui a Vila Viçosa comprar material para o ofício e parei no Monte Branco porque o meu parente Inácio da última vez que estive com ele disse-me que, quando eu fosse  a Vila Viçosa ia comigo, mas quando lá cheguei ele disse-me que não podia ir porque naquele dia estava comprometido, mas eu insisti, disse-lhe que não demorávamos, que voltávamos cedo e lá o convenci a ir comigo, depois lá em Vila Viçosa para demorarmos menos ele foi tratar das coisas dele e eu das minhas, mas como ele ia para os lados do Boticário, eu pedi-lhe para me comprar a mesinha para a minha Domingas e, foi o que ele fez, mas não me disse onde a comprou, porque eu também não perguntei, fiquei convencido que tinha sido no Boticário onde vou sempre, mas agora já sei que não, porque fui falar com ele e ele disse-me que não foi em nenhum Boticário de Vila Viçosa, porque ele sabia que estava lá um Boticário espanhol que era de perto de Granada e que ele conheceu lá no Monte Branco, onde esteve a descansar dois ou três dias, um peregrino que vinha a Nossa Senhora da Boa Nova  e a Nossa Senhora da Conceição em Vila Viçosa e, como foi muito bem tratado disse ao meu parente que ficava por Vila Viçosa dois ou três meses a descansar antes de voltar para Espanha e se ele precisasse de alguma coisa de Botica que fosse falar com ele, porque ele estava a par de muitas mesinhas novas, boas para curar todas as doenças! Quando ia a tratar dos assunto dele, passou à porta da casa onde ele estava o peregrino e lembrou-se de ir falar com ele, apanhou-o por pouco, o homem já tinha tudo preparado para se ir embora para Espanha, mas devido à amizade com o meu parente, ainda lhe fez a mesinha! E, foi isto que se passou!
Ti Manoel: Não sei se sou capaz de me sair disso! Nem se as pessoas acreditam!
Ti Inácio: Mas tu não te lembras de eu ter ido contigo nesse dia a Vila Viçosa?
Ti Manoel: Então se tu não foste, como me hei-de lembrar?
Ti Inácio: Acho que estás a precisar de uma mesinha das minhas, é verdade que já foi há mais de um mês, mas era para te lembrares, porque eu fui mesmo contigo!
Ti Manoel: Mau! Então, eu não sei que não foste!
Ti Inácio: Mau, digo eu! Então eu não sei que fui e comprei a mesinha da parenta ao Boticário espanhol!
Ti Manoel: Já não sei  o que diga! Parecia-me que não tinhas ido! Mas já não sei!
Ti Inácio: Queres ver que fui? E chamou: Oh Zé, chega aqui! Tu não te lembras que há ai um mês ou um mês e pouco eu fui a Vila Viçosa aqui com o meu parente?
Zé: Oh ti Inácio, está a brincar comigo? Então não me havia de lembrar? Até parece que foi ontem! Foi, sim senhor, foi!
Ti Inácio: Estás a ouvir parente? Queres que chame mais alguém?
Ti Manoel: Não, não, parente! E eu que me parecia que não tinhas ido!
Ti Inácio: Já viste que às vezes o que parece não é! Tu é que já não te lembravas!
Ti Manoel: Sendo assim, já estou safo da camisa de onze varas! Muito obrigado parente, vou-me  já embora porque tenho lá muito que fazer!
Ti Inácio: Espera lá, tens de levar umas coisas aqui da horta, ao menos não perdes os passos!
O ti Manoel apanhou as coisas que o parente lhe deu, despediu-se e voltou para Capelins de Baixo, durante a viagem não pensava noutra coisa! Será que ele foi mesmo comigo e eu já não estou bom da cabeça? Depois pensou: "Isso já não interessa nada, agora só preciso de convencer esta gente que tudo aconteceu como o meu parente me disse"! A partir daquele dia começou a contar a versão que o parente lhe meteu na cabeça, com tanta convicção, porque ele próprio já estava convencido que tinha sido assim que, ninguém ousou duvidar das suas palavras! Alguns ainda lhe perguntaram se sabia onde morava o Boticário lá em Espanha, porque estavam na disposição de o ir procurar! O sapateiro disse-lhe que era perto de Granada, ele chama-se Pepe, mas nem ele, nem o seu parente Inácio sabiam mais nada do Boticário peregrino! A conversa ficou por ali, caindo no esquecimento!
A ti Domingas continuou convencida, durante alguns anos, que tinha tomado a melhor mesinha do mundo, nova e muito cara e, só cinco anos depois o ti Manoel teve coragem de lhe contar toda a verdade! A ti Domingas riu como nunca tinha rido na sua vida e, não se cansou de agradecer ao marido, porque tinha sido graças aquela peripécia que ela se tinha curado e, a sua vida tinha dado uma grande volta para melhor, porque, além de ajudar com o seu trabalho nas despesas da casa, também passou a existir muita alegria na família! 
O ti Manoel ficou convencido que, só conseguia convencer os outros, se ele próprio estivesse convencido, continuou a ser um homem muito honrado e fez botas e sapatos em Capelins de Baixo enquanto conseguiu bater as solas e, ter forças para puxar as pontas com que cozia o calçado! 
O Ti Inácio, que tanto aprendeu com os peregrinos que ali descansavam quando iam em peregrinação a Nossa Senhora da  Boa Nova, continuou no Monte Branco até ao fim dos seus dias, passando para os mais novos, as histórias de vidas que ouviu! 

Fim 

Texto: Correia Manuel 

Aldeia de Ferreira 



Sem comentários:

Enviar um comentário

Povoado de Miguéns - Capelins - 5.000 anos

  Povoado de Miguéns -  Capelins - 5.000 anos Conforme podemos verificar nos estudos de diversos arqueólogos, já existiam alguns povoados na...