quarta-feira, 21 de setembro de 2022

A lenda do Pároco de Santo António de Capelins

 A lenda do Pároco de Santo António de Capelins

Na sexta-feira dia 02 de Maio de 1766, às 6 horas da manhã, quando o Pároco de Santo António se levantou já um filho da Ti Rita de Jesus estava em frente à porta da Casa Paroquial para lhe pedir que fosse dar os Sacramentos à sua mãe que estava nas abaladas! O Padre Manoel Phelipe, disse-lhe que podia ir com a paz do Senhor que ele a seguir ao almoço (pequeno almoço) pedia ao sacristão para albardar a burra e depressa chegava ao Monte da Talaveira, onde a Ti Rita morava! E, pelas 09 horas já estava a cumprimentar os lavradores, filhos, os criados, as criadas e, logo de seguida dirigiu-se ao cabanão da Ti Rita. Depois de falar um pouco com os familiares que estavam presentes, pediu para os deixarem a sós, porque o ato era uma confissão! A ti Rita reuniu todas as forças que lhe restavam e não parecia que estava em estado terminal. O Padre aproximou-se o mais que pôde para não a obrigar a esforçar-se a falar, mas não era necessário, porque as palavras saiam-lhe sem grande esforço e começaram:

Padre: Bom dia ti Rita! Como está hoje? 

Ti Rita: Hoje parece-me que estou melhor, mas sinto que estou no fim!

Padre: Só Deus sabe quando é o fim ti Rita! Tem de ter esperança porque decerto vai melhorar!
Ti Rita; Eu sinto que não estou cá muito tempo, por isso pedi para vir cá confessar-me! 
Padre: Eu vim logo ti Rita, mas para lhe fazer uma visita! Agora que estou cá, pode confessar-se e podemos falar sobre alguma coisa que a atormente! 
Ti Rita: Está bem! Mas eu quero contar os meus pecados e pedir perdão a Deus! 
A ti Rita começou a contar ao Padre Manoel Phelipe alguns acontecimentos banais da sua vida até que ganhou coragem e chegou aos casos que mais a atormentavam!
Ti Rita: Eu tenho dois pecados muito grandes que não posso levar comigo, não podia morrer sem pedir perdão, destes, o pior foi ter enjeitado um filho e o outro foi ter jurado na Santa igreja que amava o meu marido, mas a verdade é que nunca o amei, porque amei sempre o outro, o pai desse filho!
Padre: Toda a gente cometeu pecados, agora o que é preciso é estar arrependida e pedir o perdão do Senhor! 
Ti Rita: Mas enjeitar um filho não tem perdão!
Padre: Já lhe disse que tudo tem perdão! 
Ti Rita: Agora, já não posso fazer nada e nem naquela altura pude fazer, fui enganada pelo pai daquele filho e, depois obrigaram-me a enjeitá-lo! Eu era muito nova, tinha vinte anos e o filho mais velho do lavrador começou a perseguir-me e a dizer-me que gostava muito de mim, em todo o lado me aparecia, até que me convenci que era verdade! Um dia esperou-me e puxou-me para dentro da seara, eu fechei os olhos e quando os abri já estava! Depois, já era eu que o procurava até descobrir que estava de esperanças! Fui contar-lhe e ele disse-me que não queria saber de mim, o mais certo era não ser ele o pai, porque eu era uma galdéria, ninguém ia acreditar em mim e o pai dele mandava toda a minha família daqui para fora, íamos morrer à fome porque nenhum lavrador nos queria nas suas herdades, que a culpa era toda minha, e outras ameaças! Foi grande sofrimento! Chorei, chorei, sem ter para onde me virar, até que a minha tia me chamou para a choça dela, o marido era o pastor do Monte, e obrigou-me a contar tudo o que se estava a passar! Ela pensou, pensou e depois disse-me que já tinha uma ideia, era só falarmos com a minha mãe e resolvia-se tudo! Eu fiquei na choça e ela foi ao Monte chamar a minha mãe, depois contou-lhe que eu estava de esperanças e ela ainda começou aos gritos, mas a minha tia disse-lhe para se calar porque assim não resolvia nada só podia piorar a situação! Depois disse-lhe o que tinha pensado, era só a minha mãe ajudar! Eu continuava como se nada tivesse acontecido, sempre com a barriga apertada e quando já não desse para esconder metia-me na choça fingindo que tinha nervos, que só queria estar com a minha tia, não saía à rua, nem queria ver ninguém e se tivesse alguma visita metia-me na cama bem tapada com uma manta, sem dizer uma palavra, e elas enchiam a choça de ervas para chás dos nervos, para convencer alguma desconfiada! Quando a criança nascesse a minha tia fazia-a desaparecer e acabava tudo! A minha mãe, ainda estava com algumas dúvidas, mas como não encontrava outra maneira, teve de aceitar, mas nunca me perdoou! Fizemos tudo como a minha tia pensou e correu bem! O menino nasceu na noite de sábado do dia 26 de Janeiro de 1726! Aqui o Padre Manoel deu um salto e pensou: "este foi o dia e ano que eu nasci e fui enjeitado, apareci de madrugada à porta deste Monte, meu Deus, não pode ser"! A ti Rita continuou: Nunca esqueci essa noite! Nem cheguei a ver o meu menino! Ainda perguntei à minha tia, antes dela falecer, o que lhe tinha acontecido, mas ela só me disse, que jurou de nunca me dizer, mas podia dizer-me que estava em Terena e muito bem e para não o procurar, devia lembrar-me do que se passou! A maior alegria que eu podia ter, era ver esse meu filho antes de morrer, mas sei que é impossível, já foi bom saber que ele estava bem! O Padre esteve quase a dizer-lhe que estava a olhar para esse filho, mas conteve-se porque tinha de ter a certeza do que ia dizer! Tinha que fazer melhor as contas e depois se fosse o caso, voltaria ali! A ti Rita, ainda continuou a falar mas já pouco se percebia e o Padre deu-lhe todos os Sacramentos, despediu-se da família e voltou para Santo António! 


O Padre Manoel Phelipe chegou a Santo António antes do meio dia, deixou a burra em frente da porta da casa Paroquial e recolheu-se, deixou-se cair na sua cadeira pensando na conversa que teve com a ti Rita de Jesus, passaram-lhe várias vezes pela cabeça cada palavra que ouviu da sua boca e estava a exclamar em voz alta: "a minha mãe! é a minha mãe", quando entrou a mulher do sacristão a chamá-lo para o jantar (almoço), não podendo deixar de ouvir essa frase e perguntou-lhe: O que se passa Padre? Estava falando sobre a sua mãezinha? O Padre Manoel ficou um pouco atrapalhado, mas respondeu: Ah sim! Era sobre um livro que li e tinha esta frase! A ti Maria acreditou e a conversa ficou por ali! O Padre sentou-se à mesa, mas parecia que tinha um nó na garganta e não conseguiu comer quase nada! A ti Maria ficou muito admirada e perguntou-lhe se a comida não estava boa? Está muito boa, eu é que não estou nada bem! Olhe vou-me deitar e não estou para ninguém! Respondeu o Padre! E retirou-se da mesa para a mesma cadeira onde tinha passado o resto da manhã! Continuou a pensar em tudo o que os pais adotivos lhe tinham contado e a fazer contas, sobre a data do seu nascimento, a idade da ti Rita de Jesus e tudo dava certo, cada vez tinha mais certeza que tinha encontrado os seus pais biológicos, a ti Rita de Jesus e o António Lopes do Monte da Talaveira! À noite pouco comeu e foi muito cedo para a cama, mas não fechou os olhos por um minuto a pensar o que ia fazer! Levantou-se de madrugada, juntou num saco alguns produtos, próprios para o tratamento de doentes, foi bater à porta do sacristão para lhe albardar a burra, disse-lhe que se demorava e pôs-se a caminho do Monte da Talaveira, com ideia de se dedicar o tempo que fosse preciso a tratar a sua mãe! Quando ia no alto do malhão, encontrou-se com um dos filhos da ti Rita! Cumprimentaram-se e o Padre perguntou-lhe como é que ela tinha passado a noite e se estava melhor? A resposta que ouviu, quase o atirou ao chão! O filho da ti Rita disse-lhe que ia mesmo falar com ele para tratar do enterro da mãe, porque tinha falecido ao início da noite anterior e que depois do Padre se ter ido embora ela ficou muito contente até parecia que estava melhor, mas piorou da cabeça, assim que me viu ao pé dela até se finar não parou de dizer que estava muito feliz porque tinha visto o filho! Se me via todos os dias, não sei o que meteu na cabeça! Enfim, foi a doença! O Padre percebeu o que se passou, mas ficou muito intrigado! Como é que a ti Rita soube que ele era o seu filho enjeitado! Não tinha dúvidas, que ela soube! A seguir disse ao filho da ti Rita para seguir para Santo António e dizer ao sacristão para abrir a sepultura na Igreja, preparar o Esquife para as quatro horas da tarde, que a essa hora estava lá um carro do Monte para o trazer e para ir ao quarto do Padre e tirar da arca que estava aos pés da cama, um lençol de seda e trazê-lo! E o Padre seguiu para o Monte da Talaveira! O sacristão cumpriu tudo o que o Padre pediu, mas ficou muito admirado por ele mandar levar aquele lençol de seda, uma preciosidade nunca , vista por ali! O Padre passou o dia no velório muito triste e, as pessoas interrogavam-se sobre o que ele faria ali, porque nunca o tinham visto em nenhum velório! À tardinha realizou-se o funeral para a Igreja de Santo António, foi funeral de carro e acompanhado por outros carros do Monte e pelos lavradores. O Padre fez todas as exéquias sobre grande constrangimento e, após o ato fúnebre recolheu-se na casa Paroquial sem querer ver ninguém! A atitude do Padre, a participação dos lavradores no funeral, os carros e o lençol de seda alimentaram muitas conversas durante vários meses nas terras de Capelins! O Padre, só passados alguns dias, aceitou conversar com o sacristão e com grande surpresa deste, contou-lhe a história da sua vida a partir do dia em que foi abandonado à porta do Monte da Talaveira! 

Após sepultar sua mãe o Padre Manoel Philipe dirigiu-se à Casa Paroquial e fechou-se no quarto! À noite dispensou a ceia (jantar) e passou muitas horas a pensar como teria sido a vida de sua mãe, por tudo o que ela passou e sentiu-se culpado pela sua infelicidade! Já tarde apagou a candeia e atirou-se para a cama, embora estivesse muito cansado, porque não tinha dormido nada na noite anterior, foi muito difícil adormecer! Na manhã seguinte, ao contrário do que fazia habitualmente, ficou na cama até tarde e, quando a mulher do sacristão lhe levou o almoço (pequeno almoço) ficou muito preocupada com a sua aparência! Disse-lhe que tinha ali a comida, mas ele nem respondeu e, ela foi contar ao marido que o Padre não estava bem, era melhor ele ir lá! O sacristão foi logo falar com o Padre:
Sacristão: Bom dia Padre! Como está hoje?
Padre: Bom dia João! Não estou muito bem! Nada bem! 
Sacristão: Pois! Vê-se logo! Veja lá se está doente, eu vou a Terena buscar algum tratamento, ou se quer que a minha mulher lhe faça algum chá ou outra coisa? 
Padre: Não João! Isto não vai lá com chás, não é preciso nada, já passa! 
Sacristão: Não leve a mal, mas vi que ficou assim, muito triste e comovido desde que foi dar os Sacramentos à ti Rita lá ao Monte da Talaveira e sei de tudo o que depois se passou, foi ao velório, deu-lhe aquele lençol de seda e o seu comportamento até parecia de família muito chegada! Toda a gente por aí fala nisso! E não me sai da cabeça que tem a ver com a ti Rita, mas não consigo perceber qual pode ser a ligação! 
Padre: Isso são coisas da tua cabeça João! Tu sabes que sou de Terena e mal conhecia a ti Rita, mas deu-me para isso homem, tive muita pena dela, como tenho de todos, tu bem sabes! 
Sacristão: Podem ser coisas da minha cabeça, mas eu já o conheço bem, sei que não foi nada normal e, como disse, o seu esmorecimento começou ontem! Se não quer falar é lá consigo! Mas se não falar comigo, já sei que não vai falar com mais ninguém e fica aqui a sofrer! Talvez eu não lhe possa valer de muito, mas os dois ficamos mais fortes para encontrarmos alguma solução! Sabe bem que pode ter confiança em mim, eu não conto nada a ninguém, posso jurar perante Deus! Se for preciso, alinhavo alguma coisa à minha mulher e tudo ficará esquecido! Acredite que era melhor falarmos! 
Padre: Tens toda a razão João! Mas neste momento ainda estou muito abalado, logo ou amanhã falamos! 
O sacristão saiu, o Padre ficou sozinho e continuaram a passar-lhe na mente as palavras da ti Rita! De repente lembrou-se do que ela lhe disse: "Nunca fui feliz, porque nunca amei o meu marido, amei sempre o outro, o pai do filho que enjeitei"! Como o Padre já sabia quem era o seu pai e tinha ideia de o ter sepultado na Igreja de Santo António, faltava identificar qual era exatamente o lugar da sepultura, foi apressadamente buscar o livro dos registos dos óbitos, abriu-o e foi folheando para trás até chegar ao assento que procurava, leu lugar em que estava a sepultura e foi à Igreja, entrou na porta mesmo ao lado e foi medir o soalho a partir do lado do ocidente, 2ª fila, 4ª sepultura, naquele momento, quase desfaleceu, certificou-se bem, por várias vezes e não havia engano, a sua mãe tinha sido sepultada mesmo ao lado do seu pai, do homem que ela sempre amou! Estava tão concentrado a olhar para o lugar das sepulturas dentro da Igreja e a pensar alto, exclamando: "Isto não é possível", nem reparou que o sacristão estava mesmo junto dele, porque como estava preocupado, quando o viu entrar na Igreja foi atrás! 
Sacristão: O que é disse Padre? 
Padre: Eu? Nada, o que havia de dizer! 
Sacristão: Eu ouvi muito bem o que disse, por isso não adianta disfarçar! 
Padre: Então já que ouviste, diz-me uma coisa João, tu não te enganas-te na sepultura que abriste ontem? 
Sacristão: Olhe que isso até me parece mal Padre! Alguma vez eu me podia enganar? Não senhor, era mesmo esta que tinha de abrir! Não me enganei! Não! Não!
Padre: Está bem João! Está bem! Depois falamos, depois falamos! Até logo!
O Padre saiu da Igreja e meteu-se novamente na Casa Paroquial! 
A partir dali, o sacristão ficou sem nenhuma dúvida que o estado em que se encontrava o Padre, tinha a ver com a ti Rita de Jesus! Faltava saber porquê! 
O Padre Manoel Phelipe esteve quatro dias fechado em casa, até que, ao quinto dia quando a mulher do sacristão lhe foi fazer o almoço (pequeno almoço) ele pediu-lhe para dizer ao marido para quando pudesse ir à Casa Paroquial porque queria falar com ele! Assim que recebeu o recado o sacristão foi imediatamente ter com o Padre e começaram a conversa:
Sacristão: Bom dia Padre! Está melhor? Hoje já não parece o mesmo! 
Padre: Sim, estou muito melhor! Senta-te João, senta-te! Preciso de falar contigo! 
Sacristão: Já sabe que pode falar! Estou aqui para isso! 
Padre: Sabes, João! Tu tens razão! O meu esmorecimento e tudo o que tem acontecido neste dias tem a ver com a ti Rita de Jesus! 
Sacristão: Eu já tinha a certeza, mas não consigo perceber, porque motivo ficou assim! Tantas pessoas que já morreram aqui e nunca o vi assim! 
Padre: É verdade João! É verdade! Nunca me viste assim, porque nenhuma das outras pessoas eram a minha mãe! 
O sacristão estava sentado, deu um salto e ficou em pé, com uma cara de grande surpresa e disse: Como é que isso pode ser? Então o Padre não é filho do lavrador Banazol de Terena? 
Padre: Não sou João! Não sou! 
Sacristão: Ora essa! Mas toda a gente diz que é! 
Padre: Pois dizem! Mas é porque não conhecem o meu passado! 
Sacristão: Custa-me acreditar no que estou a ouvir! Custa! Custa! Mas se o Padre diz, é porque é verdade! Mas como é que isso é possível? Como foi ter a Terena à casa do lavrador Banazol? 
Padre: Senta-te! Eu já conto como tudo se passou! 
O Padre Manoel contou a parte que já conhecemos, até ter aparecido na madrugada do dia 26 de Janeiro de 1726 à porta do Monte da Talaveira, sendo acolhido por estes lavradores! 
Padre: A partir do dia em que apareci à porta do Monte da Talaveira eu já sabia tudo, porque os meus pais adotivos não me esconderam nada! Mas não sabia o que tinha acontecido para trás, quem eram os meus pais e porque fui enjeitado! No dia em que fui dar os Sacramentos à ti Rita de Jesus, em confissão, contou-me tudo o que se passou até aquele dia! 
Sacristão: Então se sabia que tinha sido enjeitado e que apareceu no Monte da Talaveira, ainda não tinha tentado saber se os seus pais eram dali?
Padre: Sim! Tentei! Mas disseram-me que dali de certeza que não eram, porque nunca ninguém viu nenhuma mulher de esperanças que não tivesse ficado com o filho ou filha e, disseram-me que, o mais certo era eu ser de Espanha! 
Sacristão: Ora essa! Então e como foi parar a Terena? 
Padre: Eu fui a terceira criança a aparecer à porta do Monte da Talaveira, já lá tinham duas meninas e mais quatro filhos dos lavradores já homens e mulheres, o meu aparecimento deu muito que falar nas terras de Capelins, chegando a Terena e, aos ouvidos do lavrador Banazol que ainda era parente dos Lopes e não conseguiam ter filhos, então foram ao Monte da Talaveira fazer-lhe uma visita e a pedir-lhe para ficarem comigo! 
Sacristão: Pronto! Está tudo dito! Deram-no logo e lá marchou a caminho de Terena! 
Padre: Não foi assim tão fácil, porque como era rapaz, os lavradores da Talaveira estavam a contar em ficar comigo! 
Sacristão: Essa agora! Então como o levaram? 
Padre: Já lhe conto tudo! Como eram muito dados, não era fácil negarem-lhe o pedido, mas acharam que ficavam mal com as duas meninas e sem mim, então fizeram uma 
proposta aos parentes, ficavam comigo, mas também tinham de ficar com uma menina, um casalinho! Os Banazol nem pensaram duas vezes, aceitaram imediatamente! 
Sacristão: E lá foram os dois para Terena, logo nesse dia, com os lavradores Banazol? 
Padre: Não! Não podia se assim, tinham que ter o acordo do Pároco de Santo António e do Vigário de Terena! 
Sacristão: Mas se vocemecês eram dos lavradores Lopes, o que tinham os Padres a ver com isso? 
Padre: Eles, eram como é agora, as autoridades eclesiásticas ao nível da Paróquia e registavam, como hoje registamos, todos os atos que tenham a ver com os paroquianos, sendo impossível fazer isso sem a sua autorização! 
Sacristão: Mas autorizaram, não? 
Padre: Sim! Autorizaram! Os meus pais adotivos cumpriam todas as obrigações com a Igreja e não foi difícil, apenas exigiram que eu e a minha irmã (que na verdade, não é) frequentássemos sempre a Igreja! Depois, fui batizado aqui nesta Igreja, mas no assento que está aí, está escrito que sou filho de pais incógnitos, não ficou registado que era filho do lavrador Banazol, mas fomos sempre tratados como verdadeiros filhos e por onde andei ficou sempre registado os nomes deles como meus pais! 
Sacristão: Sim! Na verdade, não há ninguém em Terena e aqui nas terras de Capelins que pense o contrário! E depois? Como foi para Padre? E como veio para Santo António? Pediu para vir para cá porque sabia que era daqui e veio tentar descobrir o seu passado?
Padre: Já conto João! Já conto! 


O Padre Manoel Phelipe já estava cansado, mas o sacristão continuava ávido em saber a história da sua vida, pediu para esperar um pouco, levantou-se e foi à cozinha beber meio copo de água da fonte da Sina, que repousava numa cantarinha de barro que a refrescava e dava o sabor da argila cozida! Voltou a sentar-se na sua cadeira e a conversa continuou:
Padre: Como já te contei, a principal exigência do Pároco daqui, quando me levaram para Terena era eu e a minha irmã frequentarmos sempre a Igreja e conforme me contaram foi isso que aconteceu desde que lá cheguei! 
Sacristão: Quando o levaram, foi morar para a Vila ou para a herdade? 
Padre: Para Terena! Pouco tempo morei na herdade, tínhamos casa na Vila onde estavamos quase sempre! A herdade não me atraía quase nada, desde que me lembro a minha cabeça estava sempre na Igreja! Comecei a aprender a ler e a escrever com os Padres e cerca dos nove anos já sabia rezar uma missa, até já sabia latim! 
Sacristão: Com essa idade já rezava as missas lá em Terena? 
Padre: Não! Isso não podia ser! Não era Padre! Mas já ajudava nas missas e ia dizendo tudo ao mesmo tempo deles! 
Sacristão: Tinha mesmo de ser Padre! 
Padre: Não foi nada fácil! O meu pai contava comigo para ser lavrador! Não tive coragem para lhe dizer que queria ser Padre! Foi o Vigário que teve uma grande conversa com ele e o convenceu de que era o melhor para mim! 
Sacristão: E depois de convencerem o seu pai, teve de abalar de Terena ou fez-se Padre ali? 
Padre: Tive de ir estudar para o Seminário Maior de Évora, tinha cerca de doze anos de idade e estive lá até aos 26 anos! 
Sacristão: E com essa idade, quando voltou a Terena já era Padre? 
Padre: Sim! No último ano dos estudos esperei o Diaconato, sendo essa a ordenação final! A parir daí já era Padre, mas passei por muitas fases!
Sacristão: E quando veio para Terena, começou logo a dizer missas lá nas Igrejas? 
Padre: Sim! Comecei a dizer missas na companhia de outros sacerdotes que já lá estavam, pelas Igrejas todas!
Sacristão: E porque motivo veio aqui para a nossa Paróquia? Pediu ao senhor Vigário? 
Padre: Não! Não pedi nada! Um Padre serve no lugar para onde for chamado! 
Sacristão: Então, quem o chamou para cá? 
Padre: Deus! Foi Deus! Como sabes o Pároco daqui não estava bem de saúde, recolheu à Vigararia de Terena e era eu que estava nas melhores condições para vir para esta Paróquia! E vim!
Sacristão: Ainda bem que veio! Lembro-me tão bem do dia que fui a Terena para ajudar a trazer as suas coisas na burra! Sei que tinha lá muitos carros e charretes na herdade para trazer tudo, mas o padre não quis! E veio tudo na burra! 
Padre: Sim! Podia ter pedido ajuda, mas a herdade não é minha! É da minha irmã! Eu não tenho nada além das rendas da Paróquia e tenho tudo o que preciso, o Senhor não me deixa faltar nada! 
Sacristão: Compreendo Padre e obrigado por falar comigo!
Padre: Agora, já sabes a história da minha vida! 
Sacristão: Agora, já sei e olhe que até me falta o ar, devido à ansiedade e por saber tantas coisas que eu nem imaginava! 
Padre. Já viste como as aparências muitas vezes não são o que parecem? 
Sacristão: Já vi, já! Agora posso dizer-lhe o que penso sobre este seu sofrimento depois de saber quem era a sua verdadeira mãe?
Padre: Podes! Sim! Podes! Por isso é que te contei tudo!
Sacristão: Então, ouça-me bem! Depois faça o que achar melhor para si! 



Depois do Padre Manoel Phelipe desfiar as suas memórias, o sacristão endireitou-se na cadeira onde estava instalado, passou a mão pela cara e continuou:


Sacristão: Como sabe, sou uma pessoa pouco letrada, os meus conhecimentos ao nível literário são muito escassos, apenas sei o que tenho aprendido com os Padres que por aqui têm passado, mas tenho alguma experiência da vida, porque já vivi um bom par de anos, portanto se me permite dar a minha opinião, tenho a dizer-lhe que nunca esqueça a sua mãe, eu sei muito bem que não esquece! Foi ela a razão da sua existência, agora já não pode fazer mais nada por ela, mas pode fazer por outras pessoas, para que não passem o que ela passou! 

Padre: Oh João! Parece que estás a ler os meus pensamentos, estou a ouvir tudo o que me dizes e ao mesmo tempo estou comparar com o que estava a pensar em fazer!

Sacristão: Sim! Mas já agora deixe-me acabar! Como ia dizendo, em memória à sua mãezinha, podia ajudar muitas raparigas e mulheres que devido à sua inocência e à necessidade, caem nas garras dos filhos de lavradores e mesmo de alguns lavradores, abrindo-lhe os olhos, para não serem enganadas!

Padre: Claro! É isso que tenho pensado, mas é um assunto melindroso, que tem de ser tudo muito bem pensado e planeado! 

Sacristão: Não será muito difícil, porque os lavradores têm-lhe muito respeito, é um Banazol e, não se atrevem a contestar, pode falar com eles, com os filhos e com todos os paroquianos e paroquianas e dizer-lhes que essas ações são maléficas e que a Igreja está contra isso! A par disso pode alertar as raparigas para se defenderem, não se afastarem das mães ou outros familiares e para nunca terem esperança onde ela não existe! 
Padre: Estou de acordo contigo e acredita que vou fazer tudo isso! É um bom objetivo para nós, para a nossa Paróquia! Já sabes que também tens de ajudar! 
Sacristão: Sim! Ajudo! Mas ainda não disse tudo! Além do que já falamos, devia ajudar os seus irmãos, irmãs e sobrinhos, a sua família! 
Padre: Acredita que também já tinha pensado nisso! Mas há muitas coisas que não sei deles, não deu para falar nada no velório da minha mãe, como conheces todos os paroquianos tens de me ajudar! 
Sacristão: Como já sei quem era a sua mãe, agora também sei quem é a sua família toda! Não moram todos por cá, porque dois dos seus irmãos casaram fora, mas perto! Olhe, um deles em Terena e outro em Santiago! Mora mais um no Monte da Talaveira, assim como as suas duas irmãs! Sei tudo sobre eles! 
Padre: Daqui a algum tempo, sem alarido, vamos sabendo os que passam mais mal e depois falo com a minha irmã e se eles quiserem vão trabalhar lá para a herdade, para o Monte ou para a casa em Terena, sempre vão ter outro tratamento! 
Sacristão: Então, estou ao dispor para o que precisar! É só dizer e eu faço! Já agora, o que digo à minha Maria? Sim, que ela está à minha espera para saber o que foi a nossa conversa! 
Padre: Olha, João, conta-lhe a verdade, mas diz-lhe para agora, não contar por ai, já basta o que falam e se sabem mais, ainda mais acrescentam! Com o passar do tempo, aparecem outras novidades e depois já não vão ligar muito! 
Sacristão: Fique descansado! Eu abro-lhe bem os olhos! Até logo! 
E o sacristão dirigiu-se para sua casa, que ficava do outro lado da rua! 
A partir daquele dia, o Padre Manoel renasceu, porque tinha um projeto muito importante a desenvolver na sua Paróquia o qual, tinha presente a imagem da sua mãe, e foi graças a ela que o mesmo surgiu! Antes de o pôr em prática foi bem estudado e organizado de forma a não ferir o orgulho de ninguém e não ser entendido como um ataque aos lavradores! 
A ajuda do sacristão foi fundamental, conseguiu reunir os familiares do Padre, com os quais ele começou a conviver e ajudou os que precisaram, conforme tinha planeado! 
Enquanto o Padre Manoel Phelipe foi Pároco de Santo António, até cerca de 1790, não se conheceram abusos dos que detinham o poder, sobre as mulheres indefesas! 
Como o Padre previu, quando os paroquianos vieram a saber o seu passado, já havia outras novidades e pouco falaram, também, porque nessa época não era nenhum escândalo e existiam muitos casos semelhantes pelo Reino de Portugal! 
O Padre Manoel, em 1790 recolheu à Vigararia de Terena onde passou o resto dos seus dias! 
O Sacristão João Gonçalves, já tinha partido para o céu alguns anos antes, deixando bem marcada a sua bondade nesta Paróquia de Capelins!


Fim 

Texto: Correia Manuel 

Igreja de Santo António




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