sexta-feira, 9 de setembro de 2022

A lenda de António Marques

 A lenda de António Marques 


Aos dezanove dias do mês de Fevereiro de mil seis centos e noventa e oito anos, nasceu no Monte de Capelins um individuo do sexo masculino a quem foi dado o nome de António, filho legítimo de Domingos Marques e de sua legítima mulher Margarida de Matos, naturais da freguesia de Santo António do Termo da Villa de Terena! 
Em Abril desse mesmo ano, o António ainda não estava batizado, porque, o seu pai o ti Domingos Marques, guarda campestre na herdade da Defesa de Ferreira, não encontrava nenhum dia conveniente para ir a Santo António, com os padrinhos, registar e batizar o inocente! 
A ti Margarida já tinha vergonha, porque não encontrava palavras para explicar às vizinhas a razão do inocente ainda ser mouro! 
A todo o momento, lhe faziam a mesma pergunta:
- Ti Margarida, o inocente ainda é mouro? Ela respondia que sim, mas já era por pouco tempo, assim que o ti Domingos tivesse vagar ia logo fazer o registo e o batismo,  mas essa desculpa já estava gasta e ela andava cada vez mais nervosa devido à situação! 
O ti Domingos saía de casa de madrugada e só voltava pela noite dentro e, ela todos os dias insistia para ele ir registar e batizar o inocente, mas ele nem lhe dava resposta, até que uma noite, quando ele chegou a casa, a ti Margarida, não se conteve mais e disse-lhe: 
Ti Margarida: Oh Domingos, eu já não posso sair de casa, porque não sei que desculpa hei-de dar às pessoas que me perguntam se o nosso menino já foi batizado ou se ainda é mouro, até chegam aqui à porta só a perguntar-me isso! Olha que já não aguento mais isto! 
Ti Domingos: Oh mulher, o que queres que eu faça? Ainda não tive vagar, não posso deixar a herdade um bocadinho, porque aparecem aí  ranchos de gente que se eu por ali não estiver levam-me tudo! Amanhã ou no outro dia ou no outro se tiver vagar vou lá falar com o padre Manoel Marques! 
Ti Margarida: Mas olha lá Domingos, quando lá fores dizes ao nosso compadre António se pode ir contigo e resolvem logo tudo! Então, se ele é o padrinho tem de lá ir! 
Ti Domingos: Oh mulher, está descansada que eu já falei com o compadre António e com o feitor, para o deixar ir comigo, está tudo combinado para um dia destes , mas não levemos o inocente, tratamos da escrita e depois vamos lá no Domingo a fazer o batismo! 
Ti Margarida: Oh Domingos, um dia destes? Que dia? Quando ele já for moço? Isto é uma vergonha e podemos ter algum azar com isso!  
Ti Domingos: Cala-te Margarida! Qual azar nem azar, então podemos ter um azar porquê? 
Ti Margarida: Olha Domingos, a comadre Maria contou-me que já falam por aí  que a gente não queremos batizar o inocente, é por isso que andam aqui de roda da nossa porta, para saberem se é verdade, mas eu tenho dito a toda a gente que já o fomos mostrar a Nossa Senhora, já é da Igreja! 
Ti Domingos: Mas andam a falar de quê? Há alguns inocentes aí nesses matos que já nasceram há quase um ano e ainda não os batizaram, o nosso, há um mês ou dois e é preciso isso tudo? 
Ti Margarida: Olha, a comadre Maria também me contou-me que apareceram uns homens da Santa Inquisição a fazer perguntas por esses Montes, e perguntaram se conheciam alguém que não batizava os filhos! E sabes o que pode acontecer a quem não os batizar? Podem ser queimados vivos numa fogueira e parece que tem para aí ardido muita gente! 
Ti Domingos: Oh valha-me Deus, Margarida, isso não é assim, já ouvi isso de queimarem pessoas vivas, mas é outra gente! O Padre Manoel Marques conhece bem a gente e sabe que não temos nada contra a Igreja, casamos lá e batizamos os nossos filhos! 
Ti Margarida: Pois, olha, fia-te nessa! A comadre Maria também anda com muito medo, diz que basta haver quem nos queira mal e faça queixa de nós, que não batizamos o inocente e podem vir aqui buscar a gente todos e queimam-nos vivos numa fogueira! Eu ando cheia de nervos por causa disso, olha que eu já nem tenho leite para dar ao inocente e tu não resolves nada! 
Ti Domingos: Pronto mulher, de amanhã já não passa sem falar com o compadre António, para irmos lá, então e quem é a madrinha do inocente?  
Ti Margarida: Ora, podia ser a comadre Maria, ou então a minha irmã Jacinta! 
Ti Domingos: Então, trata tu da madrinha e dá-me o nome, senão, peço lá à mulher do sacristão, que ela não se importa, mais um afilhado, menos um afilhado! Então, vamos lá depois de amanhã, logo de manhãzinha! 
A conversa sobre o registo e batismo do inocente ficou por ali, cearam, (jantaram), deitaram-se e no dia seguinte o ti Domingos cumpriu o que tinha prometido, foi falar com o compadre António e combinaram  que, no dia seguinte iam falar com o Padre Manoel Marques e tratar de tudo o que tinha de ser tratado! A comadre Maria e a ti Jacinta andavam a trabalhar e não puderam ir, logo, ficou por madrinha a ti Apolónia, mulher do sacristão de Santo António! 
Na quinta feira dia 10 de Abril de mil seiscentos e noventa e oito, pelas 7 horas da manhã, já o ti Domingos e o compadre António, estavam à porta da Casa Paroquial de Santo António, não foi preciso bater, porque o sacristão já andava por ali e encarregou-se de tomar conta do recado para o Padre Manoel Marques que, conforme o sacristão confirmou, estava acabando as migas do almoço (pequeno almoço)! 
Começaram a falar sobre o tempo que fazia e, o padre não demorou em aparecer à porta a dar os bons dias a todos! Depois, chamou-os, madou-os entrar e começaram imediatamente a tratar do assunto que ali os levava! O Padre, perguntou pela madrinha e, o ti Domingos aproveitou para pedir ao sacristão se podia ser a sua mulher a ti Apelónia! O sacristão nem consultou a mulher, respondeu logo que sim! Era mais um afilhado para juntar a tantos que já tinha, mas ficava certo que era ela! 
O Padre Manoel Marques, abriu o livro de Registos de batismos, fez alguns riscos de separação, escreveu o númer 8, pegou num papel a vulso onde escreveu também o número 8 e perguntou ao ti Domingos: 
Padre: Então, diga lá, em que dia nasceu o inocente? 
Ti Domingos: Bem! Já nesceu há muito tempo, mas não tive vagar nenhum de cá vir, até hoje! Tenho andado metido em grandes "fezes", por causa dos ranchos de gente que por aí tem aparecido, se lá não estou levam-me tudo, não escapa nada! 
Padre: Espere lá! Não foi isso que eu perguntei! Em que dia, mês e, a que horas nasceu o inocente? 
Ti Domingos: Bem! Eu já nem sei, mas foi em meados do mês de Fevereiro, a doze, a doze, aí pelas seis da manhã! Foi o que a minha Margarida me disse! Eu já não estava em casa! Aqueles ranchos de gente, não me deixam parar em casa! Se eu não estiver lá, levam-me tudo! 
Padre: Espere lá! Que nome damos ao inocente? 
Ti Domingos. Bem! Então, se está aqui o meu compadre António, que é o padrinho, que nome lhe haviamos de dar? Desde que ele nasceu que lhe chamamos António! Ora, agora, também é António! Eu, nem sabia, a minha Margarida é que tratou disso com a minha comadre Maria, porque eu nem disso tive vagar de tratar, aqueles ranchos de gente não me dão sossego, nem um bocadinho, se eu não estiver lá, levam-me tudo!
Padre: Espere lá! Diga-me lá o seu nome completo, o da sua legítima mulher, de que Freguesia são naturais, e o nome completos do padrinho, da madrinha sei eu! 
O ti Domingos foi ditando tudo o que o padre lhe pediu e. por fim perguntou-lhe:
Ti Domingos: Então, o meu compadre não sabe assinar, como é que fazemos isso? Mete o dedo?
Padre: Oh homem, esteja descansado que tudo se resolve, aqui ninguém mete o dedo, nem mete nada! Pronto, não é preciso mais nada! Mas isto não acaba aqui, no Domingo que vem, têm que trazer o inocente e vêm todos para fazermos o batismo! 
Ti Domingos: Está bem! Então, sendo assim, no Domingo estamos cá todos! 
O ti Domingos e o seu compadre António despdiram-se e, ainda foram fazer o dia de trabalho!
No Domingo seguinte, voltaram todos à Igreja de Santo António, com o inocente e, foi realizada a cerimónia do seu batismo, deixando, nesse mesmo dia 13 de Abril de mil seiscentos e noventa e oito de ser mouro, ficando, oficialmente a chamar-se António Marques! 
Como todas as crianças nessa época, a infância do António Marques foi muito curta, aos seis anos, já era obrigado a acompanhar o pai na vigilância da herdade e, esteve quase a ingressar em ajuda de porcos, porém, foi salvo pelo feitor do Monte Grande que, engraçava com ele e deu-lhe emprego como ajuda do "Escamel" para fazer recados, tratar das galinhas, limpar os galinheiros, recolher os ovos das galinhas, varrer a rua do Monte, ir com o "Escamel" levar o jantar (almoço) aos homens que andavam a trabalhar na herdade e, outros serviços mais leves, mas era uma vida muito dura para uma criança! 
Toda a gente que trabalhava no Monte Grande, gostava do António Marques, diziam que, era muito esperto, trabalhador e sempre com desejo de aprender tudo, assim foi crescendo junto das pessoas mais importantes do Monte Grande, mas o seu grande entusiasmo era ser Escrivão, queria aprender tudo sobre aquela profissão, por isso, aproveitava todos os bocadinhos que estava dispensado das suas tarefas e corria para junto do Escrivão para aprender a ler, escrever e contar! 
O Escrivão, gostava muito dele e queria ensinar-lhe tudo o que sabia, mas não o podia fazer por sua iniciativa, então, foi falar com o feitor e pedir-lhe a sua autorização: 
Escrivão: Bom dia, ti Zé! Precisava de falar consigo, pode ser agora? 
Feitor: Pode ser sempre, não? Então se tens algum assunto importante a tratar sobre as contas da casa, não havias de poder falar comigo! 
Escrivão: Pois, aí é que está! Não é assunto de contas e, também não é bem da casa!  
Feitor: Mau, mau! Se não é sobre assuntos aqui da casa, como é que eu estou metido nisso? Diz lá de uma vez o que queres de mim, homem!
Escrivão: Bem, é um pedido que lhe quero fazer, se me deixa ensinar o António Marques, a ler, escrever e contar, sem prejudicar o trabalho dele e, é claro, o meu! 
Feitor: Oh Manoel, então não havia de deixar! Tu sabes, que eu gosto do rapaz, por isso, até te agradeço se o quiseres fazer! 
Escrivão: Quero, quero! Ele não me larga q querer aprender e tem boa cabeça! 
Feitor: Pronto, está bem, então ensina lá o rapaz! 
Assim, com a autorização do feitor, a situação era muito diferente, o escrivão já podia ensinar o António, a ler, escrever e contar sem receio de ouvir alguma repreensão! Então, quando teve oportunidade, chamou-o ao escritório e contou-lhe a conversa que tinha tido com o feitor!  
O António, ficou muito contente, como já sabia contar até perto de cem, porque, foi obrigado a aprender a contar os ovos das galinhas, para prestar contas à ti Maria, já estava bem encaminhado e, também já conhecia algumas letras! 
A partir daquele dia, ainda foi maior o entusisamo e começou a dedica diariamente algumas horas aos estudos mostrando bons progressos no dia a dia! O feitor ia acompanhando a sua evolução e de vez em quando fazia-lhe algumas perguntas para se inteirar em que ponto ele estava e ficava sempre surpreendido por ele aprender tão rapidamente! 
Quando o António já dominava a escrita, as contas e a leitura, estava com cerca de dezasseis anos, na idade de ir aprender os trabalhos agrícolas, mas estava em desvantagem porque tinha seguido outro caminho, então, o feitor disse-lhe que ficava no Monte Grande, para ajudar o escrivão e  a ele, preparando-se para seguir uma destas profissões! 
O António, estava nos vinte anos, com a vida orientada, então, os outros trabalhadores começaram a dizer-lhe que tinha de arranjar namorada, mas ele, não apreciava a conversa e respondia que ainda era muito cedo para isso! Mas a verdade é que andavam muitas raparigas com o olho nele, porque parecia o dono do Monte Grande, uma vez que, cada vez tinha mais poder de decisão sobre os assuntos da administração da herdade! 
Nessa época, todos os dias aparecia gente a pedir trabalho na herdade mas, embora fosse necessária muita mão de obra, a maioria eram vadios e ociosos, por isso, tinham de ser escolhidos e, o António era sempre chamado pelo feitor para participar nessa escolha e, a maioria das vezes era a sua decisão que prevalecia!   
Um dia, chegou ao Monte Grande um grupo de seis pessoas, alguns, eram casais ainda novos, que vinham prontos a trabalhar em qualquer serviço, porque, conforme diziam, queriam fixar-se na Vila de Ferreira (Capelins)! 
Quando o feitor chegou ao Monte Grande, apresentaram-se e disseram-lhe ao que vinham, ele fez algumas perguntas, de onde eram, se tinham sido recomendados por alguém conhecido, porque escolheram a sua herdade para trabalhar e eles foram respondendo como puderam! 
O feitor chamou o António, para procederem à seleção, então,  perguntaram-lhe o que gostavam e o que sabiam fazer, o que cada jornaleiro, ganadeiro ou "ajuda" ganhava na herdade e outras conversas sobre a conduta que deviam ter!  
Enquanto durou a entrevista, uma das mulheres do grupo não tirou os olhos do António! Ele não podia deixar de reparar nisso, olhava de soslaio porque naõ se atrevia a fixá-la, ainda mais, depois de saber que era casada com um dos homens que a acompanhava, porém, deu para sentir uma sensação que até ali desconhecia! 
Quando o feitor lhe bateu nas costas a perguntar o que tinha a dizer, estava tão distante que, um pouco atarantado, respondeu: Todos! Todos o quê? Perguntou o feitor! Ficam todos, estamos a precisar de muita gente, por isso ficam com todos! 
O feitor, ficou surpreendido por ver o António naquele estado e desconfiou que, alguma das mulheres do grupo lhe tinha conquistado o coração, mas quem? Só podia ser uma, alta, bonita, com uns olhos deslumbrantes, mas essa era casada! Adivinhou logo, que se aproximavam problemas graves para o António! Com tantas raparigas solteiras que há aí interessadas nele e, onde ele se está a meter!
O António, voltou ao escritório, mas não se conseguia concentrar no trabalho, porque, aquela mulher não lhe saía da cabeça! Foi um verdadeiro amor à primeira vista! Tentava esquecê-la, porque sendo casada, nunca podia ser sua, mas quanto mais lutava contra o malvado sentimento, mais perdido de amor ficava! 
Nesse dia, já pouco fez e pensou que, com uma boa noite de sono ficava curado do desvario, mas enganou-se, durante toda a noite pouco dormiu, sempre com a mulher na cabeça!
O António, já sabia que a origem das pessoas do grupo era de São Marcos do Campo, Termo (Concelho) de Monsaraz, e a mulher que não lhe saía da cabeça era casada, mas desejava saber mais sobre ela, então, começou a magicar a maneira de o conseguir! 
Não podia aproximar-se dela, mas depois de muito pensar, encontrou uma maneira de poder saber o que mais desejava e, isso seria através de uma das suas irmãs, uma vez que, sabiam tudo um sobre o outro, tinham segredos entre eles! 
Logo que teve oportunidade de falar a sós com a irmã, contou-lhe tudo, ela não queria acreditar, tantas raparigas imaculadas que o queriam e o interesse dele era por uma mulher casada? E o perigo que corria, se o marido soubesse, podia matá-lo! Não, não o podia ajudar! Mas ele era muito persistente e disse-lhe que era só para saber da vida dela, não era mais nada e, mais isto e mais aquilo, até que a irmã cedeu! Ele deu-lhe as instruções e abriu-lhe bem os olhos para ter cuidado, porque ninguém podia desconfiar de nada! 
A irmã do António, não perdeu tempo e, foi dali diretamente apresentar-se à recém chegada, como o marido estava no trabalho não havia perigo, disse-lhe que era irmã do António, o administrador do Monte Grande e não foi preciso dizer mais nada para ser acolhida de braços abertos, porque também ela estava cheia de vontade de saber tudo sobre o António!
 Assim, no primeiro encontro entre elas, ficou tudo esclarecido, chamava-se Helena, tinha 24 anos, era de São Marcos do Campo e era casada com o Manoel Gliz (Gonçalves), conhecido pelo Ruivo, tinham casado havia poucos meses e tiveram de fugir, devido a ele ter-se metido numas desavenças!  
A partir daquele dia, a amizade entre elas foi crescendo, assim, o António foi sabendo tudo sobre a sua vida e tudo fazia para a esquecer, mas ao mesmo tempo alimentava a esperança de a ter por perto, mas quando se lembrava do Ruivo, desistia, sabia que tinha de a esquecer, mas não a esquecia! 
Uma noite, quando saía do escritório viu o Ruivo a falar com o feitor, o qual, assim que o viu, chamou-o e meteu-o ao corrente da conversa que estavam a ter, ou seja, que o Ruivo estava a pedir-lhe trabalho para a mulher ali no Monte, porque ela estava habituada a esse trabalho, uma vez que, era isso que fazia lá em São Marcos e perguntou ao António o que achava? 
António: Bem, parece que a Maria dá bem conta do recado nos trabalhos do Monte, mas podemos falar com ela sobre o assunto para ouvirmos o que ela  nos diz!  
Feitor: Está bem! Então ficamos por aqui e daqui a um dia ou dois dizemos alguma coisa!
 O Ruivo despediu-se e seguiu para casa, o feitor pediu ao António para voltarem ao escritório para falar com ele!
Feitor: António, desde o primeiro momento que me apercebi que ficaste caídinho pela mulher deste e ela por ti! Agora, se a metemos aqui no Monte, podemos arranjar uma grande desgraça! Pensa bem no assunto! 
António: Oh ti Zé, isso é verdade e só eu sei o que tenho lutado para a esquecer, mas não consigo! Não sei o que fazer à minha vida! 
Feitor: Oh rapaz, até parece mentira, tantas raparigas solteiras e bonitas, interessadas em ti e olha para o que havia de dar! A gente precisava aqui dela, mas não, não podemos fazer uma coisa dessas!
António: Oh ti Zé, espere lá mais uns dias para eu estudar melhor o assunto e depois logo decidimos! Não tenho direito a estragar a vida à Helena!
Feitor: Ah, até já sabes o nome dela! Não sei António, não sei! Mas se tu queres esperar, daqui a dois ou três dias falamos!
O António, ficou num grande dilema, tinha no máximo três dias para se colocar à prova, ou seja, conseguir eliminar a ideia de ter algum envolvimento com a Helena e trabalhar junto dela sem sentir nenhum sentimento de amor ou desejo por ela, ou então, teria de prejudicá-la, não a admitindo a trabalhar no Monte Grande! 
Durante a noite, o António acordou várias vezes, sempre com a Helena no pensamento, mas jurou, jurou que a sua paixão por ela morria naquela noite, o dia seguinte, seria outro dia, a Helena tinha um legítimo marido e não era ele, por isso, não podia continuar a desejá-la! Assim, logo de manhã, foi falar com a ti Maria:
António: Bom dia ti Maria, precisava de falar consigo, mas estou a ver que está muito atarefada, por isso, se não se importar eu vou falando e pode ir fazendo o que está a fazer!   
Ti Maria: Bom dia menino António, pode falar que não me empata nada! 
António: Eu, e o ti Zé, ontem estivemos a falar e achamos que faz falta outra mulher aqui no Monte, sabemos que a ti Maria dá conta do recado, mas é muito trabalho de dia e de noite, por isso, se estiver de acordo vamos empregar uma ajudante que já conhece este trabalho, mas a responsável continua a ser a ti Maria! A mulher que aí vem, é à experiência e só aqui fica se vocês se entenderem bem!
Ti Maria: Está bem menino António! Como bem disse, eu dou conta do trabalho, mas se acham que é precisa outra mulher, quem sou eu para dizer que não! 
António: Como lhe disse, não se vai alterar nada, a não ser na distribuição do trabalho, é a ti Maria que vai dizer o que a ajudante tem de fazer!
Ti Maria: Está bem, então e é mulher que já trabalha cá na casa? 
António: Ainda não trabalha na casa, mas o marido dela trabalha e veio pedir por ela! 
Ti Maria: Então, por mim, pode começar  a trabalhar quando quiser! 
António: Está bem ti Maria! Isso agora é com o feitor, com o ti Zé!
O António despediu-se, voltou para o escritório e quando o feitor chegou da volta à herdade disse-lhe que, já tinha pensado no assunto da Helena e também já tinha falado com a ti Maria, estava tudo resolvido, por isso, podia dizer ao Ruivo para quando a mulher quisesse, para se apresentar à ti Maria!  O feitor já não esteve com muita conversa com o António, apenas lhe disse: Espero que saibas o que estás a fazer!
No dia seguinte, já a Helena estava a trabalhar no Monte Grande com a ti Maria que, ainda nesse dia, disse-lhe que devia agradecer ao menino António, o escrivão, por estar ali a trabalhar debaixo de telha, porque se não fosse ele, não entrava ali, nem ela nem nenhuma, porque não precisava de ajuda, só a aceitava por ele! A Helena apenas abanou a cabeça em sinal afirmativo e não disse nada!
O sentimento do António pela Helena não se alterou, via-a várias vezes ao dia, mas sempre que podia, fingia não a ver, sentia o seu olhar fulminante, mas mantinha-se fiel ao seu juramento e, como homem honrado que prezava ser, não cedia ao seu desejo! 
Um dia, o António precisou de falar com a ti Maria sobre umas compras que precisavam de fazer para o Monte, entrou casa dentro, sem se aperceber que a ti Maria não estava e ficou frente a frente com a Helena que, o recebeu com um sorriso de simpatia e com um brilho muito especial nos seus lindos olhos! 
O António, ficou paralisado e, sem conseguir dizer uma palavra! Por fim, quando se orientou, com a voz atabalhoada, perguntou pela ti Maria! A Helena, muito calma, disse-lhe que estava na casa ao lado, mas estava ali ela! O António, não respondeu, deu meia volta, saiu de casa muito rapidamente e foi ter com a ti Maria. 
O António, já com vinte e cinco anos, não procurava raparigas, essa situação, passou a preocupar os pais, irmãs, irmãos e amigos! Até que, um dia o pai foi ter uma conversa com ele:
Ti Domingos: Ouve lá filho, então tu, já com a idade que tens e não pensas em arranjar uma mulher para arrumares a tua vida? 
António: Oh pai, as raparigas que conheço por aqui, não me dizem nada!
Ti Domingos: Oh António, mas tu queres que sejam as raparigas a dizer-te alguma coisa? Então, não és tu que tens de lhe dizer a elas? 
António: Não é isso pai! O que eu quero dizer é que não sinto nada, por nenhuma rapariga daqui, nem dos arredores! 
Ti Domingos: Mau, mau, António! Como é que tu queres sentir alguma coisa pelas raparigas, se nem as procuras! 
António: Oh pai, eu não as procuro, porque não gosto de nenhuma! Não posso casar com uma qualquer, sem gostar dela!
Ti Domingos: Não sei, não sei! Tanta rapariga que há por aí e tu não gostas de nenhuma? Até te digo, com a tua posição aqui no Monte Grande, podias escolher! 
António: Oh pai, mas escolher como? Então se não gosto de nenhuma, como é que vou escolher o que não gosto? 
Ti Domingos: Não entendo isso! Tantas raparigas bonitas e, algumas filhas de lavradores que, sei decerto não te rejeitam! Afinal, és das pessoas mais importantes aqui do Monte Grande, os lavradores todos te respeitam, como se fosses o dono disto tudo! 
António: Não sei pai, não sei! Não se esqueça que lavrador é sempre lavrador e eu não passo de um criado do Monte Grande!
Ti Domingos: Olha, criado? És escrivão, és feitor, mandas em tudo e és criado?  Estás é a desconversar! Não vejas a tua vida, não! As raparigas de jeito, vão abalando todas! Até logo!
O pai do António, também abalou, sem desconfiar que, ele amava muito uma mulher, mas era casada e só um milagre lhe podia valer, para que ela um dia pudesse ser sua legítima mulher!
O António, todos os dias via a Helena ali no Monte Grande, talvez, também por isso, em vez de a esquecer, estava cada vez mais apaixonado por ela e vice versa! Estava metido num grande sarilho, passava-lhe tudo pela cabeça mas, de tudo o que pensava, a solução mais viável, era fugir com ela, mas ficava-lhe mal e à família, um homem tão honrado, como podia roubar uma legítima mulher ao marido? Não podia e, além disso, fugiam para onde? Conhecia muito bem todos os trabalhos na agro pecuária, mas nunca os tinha feito, como iam viver? Porque, não era fácil chegar a uma herdade e, ser logo admitido como escrivão ou feitor! 
Mas, eis que, infelizmente um dia se fez luz! 
No início do mês de Agosto de mil setecentos e vinte e cinco, o feitor entrou no escritório do Monte Grande e perguntou: 
Feitor: Oh António, tu sabes o que se passa com o Ruivo? 
António: Não sei de nada! Mas passa-se alguma coisa?
Feitor: Parece que passa! Há dois dias que não aparece ao trabalho e disseram-me que estava muito doente!
António: Muito doente? Com o quê? Não ouvi nada! Mas não vi aí a Helena!
Feitor: Não sei o que tem! Disseram-me que tinha muita febre, não sei mais nada! Por isso, vinha saber se tu sabias alguma coisa! 
António: Não, não! Não sei de nada! Não ouvi nada a ninguém!
Feitor: O que for será, logo se ouve dizer o que se passa! Pode não ser nada de grave! Até logo!
 O feitor saiu e o António, ficou a pensar na forma de saber o que se estava passando com o Ruivo, lembrou-se da irmã, mas só podia ser à noite, então foi falar com a ti Maria, mas ela pouco mais adiantou, apenas sabia que, o Ruivo estava muito doente, com febre alta até variava, e a Helena não podia sair da cabeceira dele, a por-lhe panos molhados na testa e outras mesinhas para tentar baixar a febre! 
O António, voltou para o escritório, sem conseguir adiantar mais sobre o que de verdade se passava com o Ruivo e com a Helena, tinha de esperar por notícias obtidas pela irmã!
Nos dias seguintes, as notícias que chegavam aos ouvidos do António, pela irmã e por outras pessoas, sobre o estado de saúde do Ruivo, eram cada vez piores, diziam que tinha apanhado uma molestia e não estava melhor, o Doutor Sardinha da Vila de Terena tinha sido chamado e disse à Helena que não podia fazer nada por ele! 
O António pensava que, se o Ruivo fosse prestar contas a Deus, teria a oportunidade que esperava, em ficar com a Helena, mas sentia-se triste com pena do Ruivo e ao mesmo tempo, lembrava-se que, ficava com o caminho livre para casar com a Helena!
Passaram mais uns dias e o Ruivo entrou em agonia, a Helena mandou chamar o Pároco de Santo António, padre Miguel Galego para lhe ministrar os Sacramentos, o Ruivo ainda esteve vivo cerca de quinze dias, lutou muito para viver mas, por fim, faleceu da vida presente com todos os Sacramentos no dia 18 de Agosto desse mesmo ano! Em todo o tempo em que esteve em agonia, a Helena não saiu da sua cabeceira e, mostrou ser uma estremosa esposa!
A Helena, ficou muito sentida com o falecimento do Ruivo mas, por necessidade, ao fim de três dias, já estava de volta ao trabalho e livre para o António, porém, ainda existia um problema, era o tempo do luto que, para não ser falada, devia ser de, pelo menos dois anos! 
No primeiro mês do luto, tanto a Helena como o António, tentavam não se encontrar, talvez sentissem algum sentimento de culpa pelo falecimento do Ruivo, porque a sua morte já lhe tinha passado pelas cabeças, mas passado esse tempo, a situação começou a mudar, não falavam muito, porque ela estava fazendo o luto e o António respeitava, por isso, esperavam pacientemente pela passagem do tempo minimamente aceite, para depois formalizar o pedido de casamento com a viúva Helena. 
O tempo passava muito lentamente, o António e a Helena estavam cada vez mais apaixonados mas, sem nenhum contacto físico, isso, conforme desejo do António, só podia acontecer depois do casamento! 
Pelas terras de Capelins , já toda a gente sabia que existia uma grande paixão entre eles, mas o luto da Helena tinha de ser respeitado! 
Um dia, a Helena foi ter com o António ao escritório e disse-lhe:
Helena: Bom dia António! Posso falar contigo, agora? 
António: Podes, podes! Diz lá o que queres?
Helena: Bem, o que eu quero, é dizer-te que tenho andado a pensar que já vou quase com um ano de luto, por isso, se tu quiseres já podíamos ir falando! 
António: Não sei, não sei! Ainda não há um ano, olha que vai haver falatório! 
Helena: Vai haver, não! Já há, por isso, seja como for, vai sempre haver falatório, quanto mais tempo esperarmos pior será! 
António: Oh Helena, mas quanto menos falatório houver, melhor! Eu sou um homem muito honrado e muito respeitado, não quero andar aí na boca do povo!
Helena: Como sabes,  já andas na boca do povo, por me escolheres a mim e não procurares uma rapariga solteira! 
António: Sim, isso é verdade, mas tantos rapazes solteiros que casam com mulheres viúvas e ninguém diz nada! Só se viram para mim! Deixa lá, hão-de esquecer!
Helena: António, a diferença é que esses rapazes não têm a tua posição e, com tantas pretendentes solteiras que tu tens, não admira que as pessoas achem isso estranho! 
António: Sim, mas a verdade é que tudo isso esquece, depois de casarmos o falatório vai acabar!
Helena: Então, estás a dar-me razão, quanto mais depressa casarmos, mais depressa acaba o falatório! 
António: Sim, talvez! Então, se tu não te importas, podemos ir pensando em casar, lá para o fim do verão! Depois acertamos o dia com o padre Miguel Galego! 
Helena: Oh António, sendo assim, temos de arranjar um sítio discreto para podermos falar e, se quiseres mais alguma coisa, por mim, posso dar-te algo mais!
António: Sim, estou de acordo, mas ainda tenho de falar com a minha família, mas é só para falarmos, porque algo mais, nem pensar, eu sou muito respeitador e quero respeitar-te, por isso, o algo mais, é só depois do casamento! 
Helena: Oh António, mas porquê? Tu não vês que eu não quero ser respeitada? Ninguém precisa de saber o que fazemos! 
António. Eu sou um homem honrado, não vou por esse caminho, por isso, está dito, está dito, não quero mais conversa para esse lado!
Helena: Então, quando acertares isso com a tua irmão, ou tu, ou ela digam-me onde e quando nos podemos encontrar!  
António: Está bem, eu falo com a minha irmã e ela trata de tudo! Depois ela fala contigo!
A Helena, ainda se aproximou do António antes de se despedir mas, ele deu um salto na cadeira e disse-lhe que estava tudo falado! 
Nessa noite, o António, contou à família que estava a pensar em casar com a Helena no fim do verão, não causando  nenhuma surpresa, porque já todos sabiam da paixão que existia entre eles! 
Os pais do António, ainda o alertaram sobre o tempo do luto da Helena, por causa de falatório, mas ele disse-lhe que, falatório havia sempre, então, quanto mais depressa casasse com a Helena mais depressa acabava! 
Ficou combinado que, a Helena podia ir a casa dos pais do António, em companhia das irmãs e, ali podiam falar para acertar algumas coisas! 
Não era preciso serem guardados, porque o António não pisava o risco, já a Helena, bem tentava, mas sem sucesso!  
No início do mês de Setembro de mil setecentos e vinte e seis o António começou a sentir-se mal, muito cansado, suores frios, dores de cabeça, alguma febre e sem apetite, não demorou a cair na cama!
O António, começou com febres altas, por isso, chamaram o médico da Vila de Terena, o Doutor Sardinha que, confirmou ser molestia não identificada e disse que, não podia fazer nada! 
A notícia da desgraça do António, depressa se espalhou pelas terras de Capelins e, muitas pessoas começaram a rezar por ele! 
A Helena passava o tempo sentada à cabeceira da cama e, num dos momentos em que ele estava mais aliviado da febre, pediu-lhe para casar! A Helena, nem hesitou e aceitou imediatamente! 
O António, chamou a família e participou-lhe que ia casar com a Helena e pediu ajuda para tratarem, imediatamente de todos os papéis, para o casamento se realizar ali no quarto, com ele acamado, dentro de uma semana. 
Os pais do António não lhe podiam negar o seu pedido, todos sabiam que, ele estava no fim da sua vida e, se também era esse o desejo da Helena, então, foram falar com o Pároco de Santo António, padre Miguel Galego, o qual, ouviu com muita atenção o que lhe disseram! 
O padre respondeu que, não podia realizar um matrimónio fora da Igreja, a não ser com um comprovativo do médico, atestando que o António corria risco de vida ao deslocar-se à Igreja, por isso, deviam trazer-lhe uma declaração do médico da Vila de Terena, confirmada pelo Tabelião do Cartório da mesma Vila e, os mesmos tinham de estar presentes como testemunhas, na casa do António no dia do casamento, depois de tratarem disso, podiam casar imediatamente!
Foi tudo tratado em dois dias e, ao terceiro dia, o Pároco de Santo António, o Padre Miguel Gliz Galego, em 17 de Setembro de mil setecentos e vinte e seis, realizou o matrimónio do António Marques com Helena Alvares em casa, sendo padrinhos o médico da Villa de Terena Doutor João Alvares Sardinha e o Tabelião do Cartório Notarial da mesma Villa, Domingos Dias Banazol! 
Foi o casamento mais triste que, alguma vez se realizou nas terras de Capelins, porque, todos sabiam, incluindo o António que, o funeral já estava marcado!  
Após o matrimónio, não houve núpcias, porque o António entrou em coma, deixou de comer e de beber e, adivinhava-se que o seu fim estava por horas, a Helena, não saiu mais da sua cabeceira de dia e de noite, ninguém a conseguia demover dali, ela percebia que, o António a sentia junto de si, mas no dia 23 desse mesmo mês do matrimónio, cinco dias depois, pelas 22 horas, o António deu o último suspiro e faleceu da vida presente com todos os Sacramentos já ministrados pelo padre Miguel Galego e, no dia seguinte, foi sepultado na Igreja de Santo António na quinta sepultura da quarta carreira a contar da mão direita! 
A Helena teve grande desgosto, chorava dia e noite, quase não comia e, esteve em casa mais de um mês, depois, teve de voltar ao trabalho, por necessidade, uma vez que, o marido pouco tinha de seu, porque vivia em casa dos pais, por isso, tinha de entregar-lhe, tudo o que ganhava!  
O tempo foi passando, a Helena, continuava muito bonita, então com vinte e sete anos, com uma longa vida à sua frente, por isso, não demorou a ser cobiçada por viúvos e solteiros das terras de Capelins e arredores, mas quando era contatada por encomendadoras, respondia que não estava disponível, rejeitando todas as proposta de casamento, algumas, de lavradores viúvos e, nunca mais casou, continuando a trabalhar no Monte Grande, até quase ao fim da sua vida!  
Quando já não tinha condições para trabalhar, foi para casa de uma sobrinha e, por coincidência, ou talvez não, a Helena faleceu com todos os Sacramentos ministrados pelo padre Manoel Martins Phelippe no dia 23 de Setembro de mil setecentos e sessenta e cinco e, no dia seguinte foi sepultada na Igreja de Santo António na quinta sepultura da quarta carreira a contar da mão direita, a mesma, onde tinha sido sepultado o António Marques. 

Fim  
Texto: Correia Manuel 






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