quarta-feira, 28 de setembro de 2022

A lenda do estranho que ajudou a Paróquia de Santo António e suicidou-se no rio Guadiana

A lenda do estranho que ajudou a Paróquia de Santo António e suicidou-se no rio Guadiana 

No domingo dia 4 de Outubro de 1699, o Pároco Manoel Marques, da Paróquia de Santo António (Capelins), levantou-se às 6 horas da manhã, como fazia habitualmente, preparou-se e foi dar o seu passeio matinal pela serra da sina, para respirar os bons ares e esticar um pouco as pernas, porém nessa manhã o passeio foi mais rápido, não só por ser domingo de missa, às 9 horas, mas porque ocupou todo esse tempo a dar voltas à cabeça a pensar onde podia angariar o dinheiro tão necessário para arranjar a Igreja de Santo António, pelo menos o telhado e o tabuado do teto interior que já estava caído no canto do lado direito e tinha de ser reparado até ao Inverno ou, o tabuado podia cair em cima dos paroquianos! 
Já tinha feito um peditório aos lavradores e aos fregueses, mas o dinheiro nem dava para reparar uma goteira e, como os últimos anos tinham sido muito secos e as colheitas muito fracas, os lavradores negaram-se ajudar mais, também, porque tinham acabado de construir a Ermida de Nossa Senhora das Neves! 
Tinham feito a Festa de Santo António em Setembro, mas só tinham sobrado uns réis, que pouco ajudavam e o Pároco fez o seu passeio sem encontrar a solução para o que mais o atormentava! Por fim, entregou o caso a Deus! 
Como ainda era cedo para fazer as migas com toucinho e chouriça para o almoço (pequeno almoço), lembrou-se de entrar na Igreja e deixar já tudo preparado para a missa, assim, almoçava mais descansado! Dirigiu-se à sacristia, ainda se via mal, abriu a janela e pegou na Bíblia no cálice e outras coisas, quando voltou sentiu que estava a ser observado, levantou os olhos viu um moço muito bem vestido e bem calçado, com menos de trinta anos, sentado num banco à frente olhando-o fixamente, com o chapéu pousado ao lado, ficou surpreendido por aquela presença e, apressou-se a dar-lhe: "bom dia"!
Estranho: Bom dia, senhor padre! 
Padre: O senhor não é daqui! Não o conheço! 
Estranho: Não sou, não, senhor padre! Sou passageiro e se for possível precisava de falar com o senhor padre!
O padre Manoel Marques aproximou-se imediatamente do estranho e disse-lhe que estava ao seu dispor!
Estranho: Queria pedir ao senhor padre se podia rezar uma missa para mim?
Padre: Oh homem, nunca rezei uma missa para uma só pessoa, espere um pouco, pode vir almoçar comigo e, às 9 horas assiste à missa de domingo!
Estranho: Não pode ser senhor padre, eu estou com muita pressa, tenho de seguir o meu caminho, não posso esperar até às 9 horas!  
Padre: Isso não me dá jeito nenhum, porque depois não me despacho até à hora de rezar a missa aos meus paroquianos, venha comigo até ali à casa Paroquial que depressa se fazem 9 horas! 
Estranho: Por favor, senhor padre, eu não posso esperar! Olhe, se rezar a missa para mim, eu dou uma esmola que pode mandar reparar a sua Igreja! 
Padre: Bem falta me fazia, mas eu não posso fazer essa troca! 
Estranho: Não podemos considerar que seja uma troca, porque não vou pagar a missa, apenas dou uma esmola de livre e espontânea vontade! 
O padre Manoel Marques ficou a pensar um pouco e, lembrou-se que tinha colocado o caso nas mãos de Deus e se estava ali a solução na sua frente, só podia ter sido Deus a enviar aquele estranho e aceitou rezar a missa! 
O padre levou alguns minutos a preparar-se e, depois começou a missa como se a Igreja estivesse cheia de paroquianos, o homem estranho acompanhou a missa com muita fé e sabia todos os preceitos, não deixou dúvidas que era católico praticante e assistente assíduo deste ato religioso! Quando findou a missa, o padre fez sinal ao estranho, como que, a dizer-lhe que tinha chegado ao fim e, dirigiu-se à sacristia! O estranho foi à caixa das esmolas que estava na sua frente e começou a meter moedas que, tilintavam e parecia nunca mais parar, quando o padre ouviu os passos do estranho a afastar-se, esperou um pouco, foi a correr à porta da Igreja e viu-o desaparecer pela estrada para sul, voltou para dentro, abriu a caixa das esmolas e ficou boquiaberto, estava quase cheia de moedas, entre as quais, muitas de prata, depressa a esvaziou e levou o dinheiro para a casa Paroquial, para conferir mais tarde, porque ainda tinha de almoçar antes da missa e, não demoravam em começar a chegar os paroquianos! 
O padre Manoel Marques, rezou e cantou uma missa, como ainda nunca ninguém tinha assistido, demonstrava uma satisfação que deixou os paroquianos intrigados, ainda mais, porque na missa nem disse o habitual sermão que, tinham de ajudar nas obras da Igreja! 
Depois de terminar a missa e, dos paroquianos irem às suas vidas, o padre Manoel Marques foi a correr contar o dinheiro da esmola deixada pelo estranho e, embora não soubesse quanto custavam as obras, teve a certeza que, chegava bem para o essencial e a Igreja de Santo António estava salva! 
No dia seguinte, segunda feira à tarde, o padre estava na casa Paroquial escrevendo uns assentos de batismos que tinha atrasados quando o sacristão o foi chamar porque estavam dois criados do lavrador da Defesa Del - Rei que traziam um homem que tinham encontrado afogado no rio Guadiana! O padre foi à rua falar com os homens para recolher o seu depoimento sobre o que tinha acontecido ao desgraçado que ali traziam, quem era, o que sabiam dele, mas os homens pouco adiantaram, disseram que o viram passar a cavalo no dia anterior na direção da Moinhola no Guadiana e como de manhã viram o cavalo perdido na margem do rio, foram contar ao lavrador e ele mandou-os ir procurar esse homem que tinham visto passar no cavalo preto! Cavalo preto? Perguntou o padre! Sim, um cavalo preto e, parece que o homem é um fidalgo, porque tem a divisa de uma casa real do reino nas roupas! Disse um dos criados! E continuou, o lavrador mandou o feitor falar com o capitão dos ordenanças a Terena e depois vem ter aqui a dizer se o homem pode ser sepultado aqui ou se temos de o levar para Terena, assim, temos de esperar pelas ordens! O padre aproximou-se  do defunto e pediu para o ver! Quando olhou para o estranho deu um salto para trás, parecia assustado! Então senhor padre, nunca viu um defunto? Disse um dos homens! O padre não respondeu mas murmurou baixinho: "olha para o que ele tinha tanta pressa, era por isso que não podia esperar pela missa das 9 horas"! Logo a seguir, chegou o sargento das ordenanças de Terena e o feitor da Defesa com instruções de sepultarem o estranho na Igreja de Santo António, porque não adiantava levá-lo para Terena, uma vez que, não sabiam nada sobre ele! O cavalo preto ficava na Defesa e se fosse reclamado tinham de acertar contas com o lavrador, caso contrário, ficava para ele em troca de o tratar e, fizeram o funeral do estranho que ficou sepultado na 6ª cova da terceira carreira contando da mão esquerda de cima para baixo! 
Três dias após o funeral do estranho, chegaram alguns fidalgos e criados destes com o sargento das ordenanças de Terena à Igreja de Santo António, pediram ao sacristão para falar com o padre Manoel Marques! Quando o padre veio à rua cumprimentaram-se e o sargento apresentou o fidalgo que estava a seu lado como sendo D. Lopo Gonçalves, de Estremoz, fidalgo do Reino! O padre no início não percebeu o que significava a presença daquele grupo de cavaleiros, mas lembrou-se que devia ser por motivo da morte do estranho que ali tinha sepultado! O padre mandou-os entrar para a casa Paroquial! O fidalgo começou por informar o padre que era o pai de António Gonçalves que ele tinha sepultado e, agradeceu-lhe pelo que tinha feito!  Disse-lhe que, era seu desejo levá-lo para a capela da família em Estremoz, mas já sabia que não o podia fazer, porque o capitão das ordenanças explicou-lhe que era proibido abrir a sepultura antes de cinco anos, caso contrário podia ser mal interpretado pela Santa Inquisição, assim, teria de esperar esse tempo para o levar para casa! Contou ao padre que não tinha chegado a tempo de o salvar, porque tinham sido induzidos em erro, seguiram o cavaleiro errado até Arraiolos e, quando encontraram a verdadeira pista do caminho seguido pelo António já era tarde, e adiantou que há muito tempo que o filho andava com tendência em se suicidar, tinham sempre um homem a vigiá-lo, mas durante a noite conseguiu escapar de Estremoz e o resto já o senhor padre sabia! Assim, o filho ficaria ali sepultado e sempre que possível a família vinha às missas que mandariam rezar pela sua alma! O fidalgo contou ao padre que o filho andava de cabeça perdida devido a uma grande paixão por uma rapariga com traços de cigana  que tinha conhecido na feira de Estremoz, andou algum tempo envolvido com ela mas a família teve de o proibir de a ver, porque não podia passar por aquela desonra, então a partir daí, com o desgosto, ficou perdido! O padre só ouvia e abanava a cabeça, umas vezes para baixo e para cima, outras vezes para os lados!
Depois, ditou ao padre os elementos de identificação referentes ao seu filho António, idade, 28 anos, filiação e, naturalidade Estremoz, para constar no respetivo assento do óbito! A seguir, foram todos à Igreja junto da sepultura do António, onde choraram e rezaram com o padre, durante alguns minutos!
O fidalgo levantou os olhos e ficou ainda mais triste, por deixar o filho sepultado numa Igreja quase em ruínas e perguntou ao padre porque motivo a Igreja estava naquele estado? E acenou com a cabeça para o sítio pior! O padre explicou-lhe a situação, que era falta de dinheiro e disse-lhe que no dia que o filho ali esteve, deixou uma boa esmola para a reparar, a não ser que o fidalgo quisesse que fosse devolvida! Nem pensar, se foi a última vontade do meu filho, isso seria impensável, respondeu o fidalgo! Depois, perguntou ao padre quando pensava fazer as obras, porque dentro de um ou dois meses queria voltar com a família e gostaria de ver tudo arranjado! O padre disse-lhe que, dentro desse tempo seria difícil, porque havia por ali poucos alvanéus e carpinteiros e teria de esperar que eles acabassem outras obras que estavam a fazer! Então o fidalgo disse-lhe que no máximo dentro de dois dias estaria ali um mestre de obras de Estremoz, para fazer a avaliação e, depois se o padre pudesse ir com ele para Estremoz comprava lá os materiais necessários, dormia na sua casa e, depois voltava com os alvanéus e carpinteiros que ele contratava e pagava os salários, assim, seguramente as obras estariam terminadas em dois meses! 
O padre concordou e acertaram tudo, o fidalgo esteve mais alguns minutos a chorar e a rezar junto à sepultura do filho, a seguir dirigiu-se à caixa das esmolas e meteu lá dentro a mão cheia de moedas, algumas de prata, despediram-se do padre e dos presentes e seguiram para Estremoz! 
Dois dias depois, conforme combinado, chegou à Igreja de Santo António o mestre de obras, passou algumas horas a averiguar, a tomar notas e, depois do jantar (almoço) partiram para Estremoz! 
Quando chegaram à casa do fidalgo, este veio receber o padre e começou logo por lhe dizer que durante a viagem de volta a Estremoz pensou em alterar o que tinham falado, mas para melhor, isso, se o senhor padre estivesse de acordo! Se é para melhor decerto estou de acordo! Disse o padre! Então a minha proposta é pagar eu tudo, os materiais de reforço das paredes e do teto, assim como aos alvanéus e carpinteiros e o padre pode mandar restaurar algumas imagens e outras coisas que achar necessárias! O padre Manoel Marques agradeceu a oferta do fidalgo e as obras de reparação da Igreja de Santo António, começaram uma semana depois, decorrendo como foi previsto! Os lavradores emprestaram alguns criados para ajudar e, antes do Natal a Igreja de Santo António estava pronta e tudo a brilhar! O fidalgo Lopo Gonçalves e a família vieram à missa de inauguração e continuaram a assistir a outras missas que mandaram rezar por alma do António, mas com o passar do tempo as visitas começaram a ser cada vez mais raras, passaram os cinco anos e muitos mais e nunca foi transladado para a capela da família em Estremoz, ficando para sempre sepultado na Igreja de Santo António em Capelins, no lugar antes descrito. 
Devido à desgraça do António, a Igreja de Santo António foi salva, ele já estava perdido, a Igreja estava a perder-se, o padre Manoel Marques estava a ficar de cabeça perdida, mas ficou tudo resolvido. 

Fim 

Texto: Correia Manuel 


Serra da Sina



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