terça-feira, 27 de setembro de 2022

A lenda do Peleiro de Elvas

 A lenda do Peleiro de Elvas  

Num dia do mês de Janeiro do ano de 1760, um peleiro ou negociante de peles, o Ti Peleiro, como o apelidavam por aqui, tanto  comprava como vendia peles de animais, que alguns contrabandeavam para Espanha, residia em Elvas, onde passava pouco tempo, tinha dois burros e andava pelas terras da raia, desde Elvas, Juromenha, Mina do Bugalho, Vila de Ferreira às Neves, Capelins de Cima, Capelins de Baixo, Cabeça de Carneiro, até Monsaraz! Depois, voltava por Reguengos, Santiago Maior, Hortinhas, Terena, Alandroal, Vila Viçosa, São Romão, até Elvas, levava cerca de quinze dias nessa volta, fazendo esse trajeto duas vezes por mês, sendo bem conhecido por estas gentes raianas, muitas pessoas esperavam-no só para saber as novidades que ele trazia e que ouvia pelas localidades por onde ia passando. Nunca tinha pressa, porque o seu negócio exigia que verificasse bem as peles e regateava, porque arranjava sempre algum defeito para pagar o menos possível. Em Janeiro de 1760, como habitualmente, um dia o ti Peleiro passava a Ribeira do Lucefécit no porto romano das Águas Frias de Baixo e começou a ouvir um homem a gemer com dores, deixou os burros presos a um chaparro e seguiu a direção dos gemidos na margem direita da Ribeira e, logo acima do Moinho Velho das Águas Frias, encontrou um homem enrolado no chão contorcendo-se com dores e a tremer! O ti Peleiro, viu que o caso era grave e ficou sem saber o que fazer, começou a perguntar-lhe onde lhe doía, se tinha caído, se estava ali há muito tempo, mas não percebia as respostas, então pensou que era uma cólica e voltou ao lugar onde tinha os burros, levou-os pela Ribeira abaixo, prendeu-os e tirou uma manta muito boa do alforge, que usava para passar as noites tão frias naquela região, estendeu-a, levantou o homem do chão, deitou-o na manta tapou-o e ficou muito bem aconchegado, daí a pouco já não tremia quase nada! Foi apanhar lenha, fez um lume e pôs uma cafeteira com água a aquecer, quando a água estava a ferver pegou num pequeno pano apanhou dois "cagalhões" dos burros, atou as pontas do pano e meteu-os na cafeteira, deixou ferver e fez um chá, arredou a cafeteira do lume, deixou-o arrefecer um pouco, despejou para um quartilho e começou a dar de beber o chá ao homem que, com alguma dificuldade foi bebendo. A dor foi diminuindo e, não demorou, deixou-se dormir! O ti Peleiro, ficou sentado junto dele mais de duas horas até acordar, já quase sem dor! Como trazia farinha de trigo nos mantimentos, para quando fritava peixe do rio, fez-lhe umas papas com água e sal e, muito devagar, o homem foi comendo! Antes do meio dia estava em condições de continuar a sua viagem para a Vila de Ferreira, o mesmo caminho do ti Peleiro! Foram falando e o homem contou-lhe que se chamava Joaquim, era de Terena e vinha guardar umas ovelhas para a Defesa de Ferreira, mas que chegar ali tinha tido uma dor (cólica) tão forte que nem o deixava pôr em pé! Contou-lh que já tinha ouvido falar no ti Peleiro e agradeceu-lhe muito por lhe ter salvado a vida! Chegaram à Vila de Ferreira nas Neves, o ti Joaquim tornou a agradecer, separaram-se e cada um foi à sua vida! 
O ano de 1760, decorria muito chuvoso, mas a vida do ti Peleiro obrigava-o a andar debaixo de chuva, atravessando Ribeiros e Ribeiras com muita água durante o inverno, ele conhecia muito bem todos os lugares onde podia passar, assim, num dia do mês de Março, o ti Peleiro, como já tinha feito dezenas de vezes, foi passar a Ribeira do Lucefécit que levava grande cheia, no porto das Águas Frias de Baixo, tentou saltar de passadeira em passadeira, mas elas estavam submersas e chegou a meio parou indeciso, mas já era tarde para voltar para trás, ainda olhou, para avaliar a situação, mas nesse momento veio uma enxurrada com mistura de grandes ramos de árvores que o arrastou e aos burros pela Ribeira abaixo, foi obrigado a largar a arreata dos burros e deu por si agarrado a um silvado, logo acima do Moinho Velho. Estava agarrado às silvas, mas nem sentia as picadas, só pensava em salvar a vida, mas encontrava-se numa posição que a qualquer momento podia ser arrastado e seria o seu fim! Começou a gritar por socorro, socorro, na esperança que alguém lhe prestasse auxílio. O ti Joaquim, já estava a voltar as ovelhas para o lado da choça e ouviu os gritos de aflição, foi a correr e viu o ti Peleiro agarrado às silvas, entrou no silvado até onde achou seguro e com o graveto de apanhar as ovelhas agarrou-o pelo casaco junto aos ombros e gritou-lhe para se agarrar bem e ir rodando para a direita a fim de se livrar da corrente! O ti Peleiro assim fez e o ti Joaquim aplicou toda a força que conseguiu e puxou-o para a margem. O ti Peleiro estava esgotado e enxarcado até aos ossos, o ti Joaquim tirou-lhe o casaco e vestiu-lhe o pelico. O ti Peleiro esteve meia hora deitado a descansar, depois com a ajuda do ti Joaquim lá se conseguiu pôr em pé e caminharam na direção da Vila de Ferreira, Neves, para os lados da choça. O ti Peleiro ia a lamentar-se que os seus burros se tinham afogado, era a desgraça da vida dele e mais isto e mais aquilo e o ti Joaquim acalmava-o e dizia-lhe que no dia seguinte logo os procuravam e podiam estar vivos! Quando iam no outeiro a norte das Neves, olharam para os lados da Ribeira e de Santa Luzia e viram os dois burros do outro lado. O ti Joaquim foi a correr assobiar e gritar ao pastor de Santa Luzia, que andava por ali com as ovelhas e pediu-lhe para os levar para a choça que no dia seguinte ia lá buscá-los! Dali seguiram para a choça e o ti Joaquim tratou muito bem o ti Peleiro e só o deixou partir ao fim de três dias, quando já estava bem! O ti Peleiro agradeceu-lhe muito por lhe ter salvado a vida e por o ter tratado tão bem! 
Em tão pouco tempo  a história repetiu-se! Por isso, assenta aqui bem o provérbio: "Faz bem, não olhes a quem"!
O ti Peleiro continuou naquela vida, mais alguns anos, nunca mais passou pela Vila de Ferreira sem visitar o ti Joaquim e, ficaram como irmãos.

Fim 

Texto: Correia Manuel

Porto das Águas Frias de Baixo 


Sem comentários:

Enviar um comentário

Povoado de Miguéns - Capelins - 5.000 anos

  Povoado de Miguéns -  Capelins - 5.000 anos Conforme podemos verificar nos estudos de diversos arqueólogos, já existiam alguns povoados na...