quarta-feira, 14 de setembro de 2022

A lenda do lavrador da orelha rachada

 A lenda do lavrador da orelha rachada

Cerca do ano de 1800, havia um lavrador de uma herdade das terras de Capelins, que gostava de se armar em "cuco", ia pôr o ovo nos ninhos alheios e diziam que tinha cinco ou seis filhos de mulheres diferentes.
Nesta época morava um sapateiro no Monte do Salgueiro que tinha quatro filhas, todas muito bonitas, mas uma, chamada Joana, destacava a sua beleza das restantes e foi por ela que o lavrador se veio embeiçar. Começou a frequentar a oficina do mestre sapateiro a mandar fazer e arranjar botas, mas sempre insistindo para que o sapateiro deixasse ir a Joana trabalhar para o seu Monte. O sapateiro sabia qual era a sua ideia e dizia-lhe sempre que nem pensar, mas ele não desistia. Quando percebeu que não conseguia convencer o sapateiro começou a assediar e sair ao caminho à Joana, e dizia-lhe que se fosse para o Monte dele, ajudar na cozinha e nas limpezas, deixava de trabalhar no campo e depois casava-se lá da sua casa com o filho de um lavrador, ia ser uma senhora rica, que ele arranjava tudo. A conversa era sempre a mesma e a Joana já andava de cabeça perdida. Algumas pessoas contaram ao sapateiro que o lavrador andava a desorientar a rapariga e a sair-lhe ao caminho quando ela ia ao poço e ele começou a andar preocupado. Um dia, a Joana saiu de casa para ir ao poço e o sapateiro foi atrás, seguindo-a encoberto por oliveiras e uma parede, quando ela ia chegando ao poço esperava-a o lavrador, começou a falar com ela, pôs-lhe a mão em cima do ombro e ela nem o afastou, tal andava a sua cabeça, andaram um pouco e ele puxou-a para dentro de uma seara, onde desapareceram. O sapateiro, correu na sua direção, puxou o lavrador para trás e deu-lhe um grande murro, o lavrador baixou-se para apanhar o bordão para se defender, mas o sapateiro deu-lhe um pontapé na cara com as botas cardadas que o atirou ao chão, levou a Joana para casa e não disse uma palavra sobre o que tinha acontecido. O lavrador levantou-se, com a cara ensanguentada e bem marcada, jurando vingança, montou o seu cavalo e foi para o Monte. Ao chegar naquele estado, a mulher, os filhos e criados perguntaram-lhe o que lhe tinha acontecido e ele disse que tinha sido um coice do cavalo, mas algumas pessoas que vinham chegando ao poço assistiram ao sucedido e no dia seguinte já toda a gente sabia a verdade nas terras de Capelins e não se livrou da chacota. A partir daquele dia, o lavrador começou a imaginar a forma de matar o sapateiro do Salgueiro e começou a dizer que ele era um homem morto, o que não demorou a chegar aos ouvidos do sapateiro, que também começou a planear a forma de não ser morto. O lavrador continuava a dar voltas à cabeça, então lembrou-se que o sapateiro quando tinha pouco material ia a Vila Viçosa ou a Elvas na sua burra comprar o que lhe fazia falta, mas como não tinha um dia certo, e também algumas vezes não ia sozinho, precisava de saber em que dia o sapateiro ia sair e depois no caminho tirava-lhe a vida, encerrava o caso e ainda ficava com a Joana. Chamou um criado de confiança, contou-lhe a ideia e disse-lhe que lhe comprava umas botas novas e dispensava-o para passar algum tempo na oficina do sapateiro à conversa, para ele saber em que dia o sapateiro ia sair para ele concretizar o plano. O criado foi logo para o Salgueiro, entrou na oficina do sapateiro e este percebeu logo, o que ele vinha fazer, mas disfarçou, o criado cumprimentou os presentes e disse que vinha encomendar umas botas novas, tirou medidas e ficou muito tempo a conversar com o sapateiro, gabando o seu trabalho, que não havia um mestre como ele, até que lhe perguntou onde comprava aquele material tão bom? O sapateiro disse-lhe que era em Vila Viçosa! O criado perguntou-lhe em que dia ia a Vila Viçosa? O sapateiro percebendo tudo, disse-lhe que ia na segunda- feira! Então e vai muito cedo? Perguntou o criado! Vou levantar-me pelas três da manhã, mas tenho de arrumar algumas coisas, albardar a burra, vou sair um pouco antes das quatro da manhã! Disse o sapateiro! O criado despediu-se e foi dali a correr contar esta conversa ao patrão, que logo engendrou a forma e em que lugar ia matar o sapateiro! 
O sapateiro do Monte do Salgueiro, começou imediatamente a pensar como poderia evitar a sua morte marcada para a madrugada de segunda-feira. Durante a noite, não fechou os olhos, mas foi construindo o plano que ia levar em frente, contou à mulher tudo o que estava planeado e sossegou-a, garantindo-lhe que nada lhe aconteceria. No domingo à noite apanhou um molho de buinho (palha para o assento de cadeiras e para fazer esteiras) e dividiu-o em dois, atou cada um com cordéis e depois os dois molhos ao meio, desenhando uma cintura humana, fez uma cruz com dois paus, meteu-a por dentro do buinho, fazendo um boneco, que vestiu com a sua roupa, colocou-lhe um chapéu e na escuridão da noite parecia uma pessoa! Levantou-se de madrugada, albardou a burra, pôs-lhe um alforge, (duas bolsas ligadas), uma de cada lado da albarda e meteu as pernas do boneco dentro do alforge, sentado na burra, cortou uma saca de serapilheira em quatro partes para embrulhar os cascos da burra para não deixar marcas à saída da cabana e para ninguém o ouvir sair, (e foi a sua sorte), depois de se afastar de casa retirou os bocados da saca, das patas da burra e escondeu-as ao lado da estrada, para usar quando voltasse. Eram quase quatro horas da madrugada, e pôs-se supostamente a caminho de Vila Viçosa, quando estava a chegar ao ribeiro do quebra, onde ele tinha a certeza que o lavrador o esperava, mandou a burra andar e ficou um pouco para trás, escondeu-se entre os arbustos e quando a burra ia passando o ribeiro, um dos criados saltou-lhe à frente, segurou-a e obrigou-a a parar, ao mesmo tempo o lavrador já preparado descarregou o pau ferrado (com a ponta em ferro), no boneco que estava em cima da burra, o outro criado (o da encomenda das botas novas), ainda gritou ao patrão que aquele não era o sapateiro, mas já era tarde, o buinho cedeu e o pau foi cair na cabeça do criado que se tinha aproximado muito da burra, porque percebeu que a silhueta não era a do sapateiro, e caiu de costas sem sentidos. O lavrador, apesar da escuridão, sentiu logo que alguma coisa não estava a correr bem, naquele momento ouviu uns passos apressados atrás dele, virou-se, mas não teve tempo de se defender da pazada que vinha a caminho da sua cabeça e ficou prostrado e inerte no chão, soube-se mais tarde que a orelha direita ficou cortada ao meio e presa por poucas linhas, o criado que estava a segurar a burra, viu-se sozinho e fugiu a correr o mais que podia, só parou quando já não conseguia correr mais, então parou para pensar no que tinha acontecido e no que devia fazer, sentou-se no chão e depois de acalmar um pouco voltou para trás com muita cautela para tentar saber se os companheiros estariam mortos ou vivos. Já perto do lugar do acontecimento viu o outro criado sentado, agarrado à cabeça, começou a chamá-lo e, como não via nenhum vulto por perto, foi-se aproximando, falaram pouco e decidiram que tinham de levar o lavrador para casa, estivesse, ou não morto. Carregaram o lavrador até onde tinham as montadas, atravessaram-no em cima de uma das burras e seguiram para o Monte, chamaram a lavradora e contaram-lhe que o patrão tinha sido atacado por desconhecidos e estava morto. Houve grande alarido no Monte, mas deitaram-no na cama e concluíram que não estava morto, mas em coma, e as criadas começaram logo a tratá-lo, com paninhos, água quente e outras mesinhas, mas o homem estava numa lástima e a lavradora mandou chamar curandeiros e a patrulha de ordenanças de Terena (guarda do reino) para apanhar os malfeitores! 

O sapateiro, voltou dali para o Salgueiro, meteu a burra na cabana sem barulho, arrumou tudo e foi deitar-se, como se nada tivesse acontecido, quando os aprendizes chegaram e alguns clientes, apareceu à porta em ceroulas e esfregando os olhos, fingindo muito sono, e todos pensaram que estava a levantar-se naquele momento! 
A lei e a ordem nas terras de Capelins eram da responsabilidade da Casa do Infantado, mas em caso de intervenção militar era usado o Regimento da Casa Bragança. A este caso acudiu a patrulha de ordenanças de Terena, comandada por um tenente com fama de muito severo e esperto. Ao chegar ao Monte do lavrador, falou com a lavradora e inteirou-se do que se tinha passado, interrogou os criados que tinham acompanhado o patrão, e todas as provas indicavam que o atacante tinha sido o sapateiro do Monte do Salgueiro, o tenente ainda tentou falar com o lavrador, mas o homem não acertava a conversa. Assim, dirigiu-se ao lugar do crime, acompanhado dos criados, que lhe explicaram como tinham sido atacados, mas nada dava certo, cada um contava à sua maneira, o tenente mediu algumas pegadas, fixou sinais e dali foi a casa do sapateiro. Depois de se apresentar e dizer o que ia fazer disse ao sapateiro que queria falar com ele em privado e foram para um "cabanão" ao lado da casa, fez-lhe muitas perguntas sobre o seu anterior desentendimento com o lavrador e se tinha saído de casa com a burra na ultima madrugada! O sapateiro foi sempre muito seguro nas respostas e respondeu que não tinha posto o pé fora de casa, nem ele, nem a sua burra, neste caso as patas. O tenente andou de gatas a averiguar se existiam pegadas frescas da burra à saída da cabana, como nesses tempos o piso era térreo ficavam sempre pegadas, mas não encontrou nada, interrogou os vizinhos um a um e todos garantiram que o sapateiro não podia ter saído de casa, porque, pouco tinham dormido e ouvido até as patadas dos cães de madrugada, não era possível não ouvirem os cascos da burra e o tenente não conseguiu apurar nada, pediu ao sapateiro para descalçar as botas e mediu minuciosamente o tamanho e não encontrou as medidas que tinha tirado nas pegadas no ribeiro das cobras (quebra), porque o sapateiro calçou as botas de um cliente, dois números acima das dele, mas com uma palmilha ficavam-lhe boas. Quanto às pegadas da burra no lugar do crime, não chegou a nenhuma conclusão porque havia lá muitas do mesmo tamanho. O tenente não conseguiu incriminar o sapateiro do Salgueiro e, embora as averiguações continuassem mais algum tempo, o processo acabou por ficar esquecido. Os familiares não concretizaram nenhuma vingança contra o sapateiro, porque, como o lavrador tinha muitos inimigos, devido aos ataques que fazia às mulheres, ficava a dúvida se não teria sido outro o vingador.
O lavrador, fez curativos mais de três meses, a sua orelha direita sarou, mas ficou desligada, rachada, segura por poucos centímetros, por isso o lavrador começou a ser conhecido nas terras de Capelins e arredores pelo orelha rachada. Nunca mais ficou bom da cabeça, saía do Monte pelas estradas sem destino, diziam que estava parvinho e nunca mais foi a mesma pessoa. Doze anos depois, cerca de 1800, faleceu de doença não identificada. O Monte que já era conhecido "do orelha rachada" mais tarde, passou a ser o Monte da rachada, mas conforme podemos constatar nos Assentos Paroquiais de Santo António, como o Monte já era da lavradora, ficava mal, "Monte da Rachada" então, os Párocos registaram, nos Assentos de batismos, casamentos e óbitos, "Monte da Rexiada", que veio ser o nosso conhecido, "Monte da Recheada"!
O sapateiro ficou muitos anos calado, só a mulher sabia, mas no fim da sua vida, já livre de perigo, contou aos familiares e a alguns amigos como tudo se tinha passado, naquela fatídica madrugada de segunda-feira no ribeiro das cobras! 
A Joana casou com um dos aprendizes de sapateiro, depois mestre, ficaram a residir no Monte do Salgueiro, tiveram cinco filhos e uma vida muito feliz, ainda hoje, por aqui há descendentes. 

Fim 

Texto. Correia Manuel 

Salgueiro - Montejuntos


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