segunda-feira, 3 de outubro de 2022

Memórias do Chiquinho de Capelins, quando foi à Caça

 Memórias do Chiquinho de Capelins, quando foi à Caça

Na década de 1960, grande parte da Freguesia de Capelins estava ocupada por coutadas de caça, desde as Defesas de Ferreira e Bobadela até à herdade do Roncanito, no entanto, ao contrário de hoje, havia grandes quantidades de coelhos, lebres e perdizes. A coutada da Defesa de Ferreira encabeçava com as paredes dos quintais da aldeia de Ferreira de Capelins, ou seja, era até aos limites desta herdade! Porém, existia outra coutada na herdade da Defesa de Ferreira de Cima, da Casa Rendeira que, só não ligavam uma com a outra, porque era obrigatório existir uma faixa mínima de 600 metros de espaço livre entre elas, onde todos os habilitados para o efeito, podiam caçar sem restrições! Estas faixas, eram muito povoadas por animais, talvez, por motivo de marcação de território,  saiam das coutadas, onde não lhe faltava nada, desde a proteção, exceto  no dia das batidas, água e comida. 
No início do mês Outubro de 1968, começou a caça! Alguns dias antes, já existia grande agitação na aldeia de Ferreira, porque, vinham os caçadores lisboetas que alteravam a natural pacatez aqui vivida o resto do ano! Meses antes, já se falava quem vinha nesse ano, porque, ou deixavam já tudo falado pela abertura da caça às rolas, em 15 de Agosto, ou escreviam cartas a marcar, com antecedência, a estadia nas casas das pessoas que os recebiam e, alguns traziam a família, passando vários dias em convívio com os capelinenses.  
O Chico Manel, ou seja, o Chiquinho de Capelins, gostava muito da abertura da caça geral, porque era uma festa em Ferreira, já conhecia alguns caçadores lisboetas e seus familiares que os acompanhavam e lhe contavam como era a sua vida em Lisboa, onde moravam o que faziam, onde trabalhavam e o que por lá se passava, causando-lhe grande admiração e desejo de rapidamente ir para aquela grande cidade! 
Todos os anos, no dia da abertura da caça, já de noite ouviam-se tiros, era sinal que havia algum caçador lisboeta perdido e, com os tiros orientava-se e conseguia voltar à aldeia, essa situação, mobilizava muitas pessoas conhecedoras da região que, se prontificavam a ajudar a procurar os desaparecidos, acabava sempre bem e em festa, por o desaparecido ter aparecido são e salvo! 
O Chiquinho era pouco entusiasmado com a caça, mas o seu pai fazia parte dos cerca de 90% de caçadores de Capelins, sendo obrigado a envolver-se algumas vezes nessa atividade! Assim, na noite de 6 de Outubro de 1968, depois da ceia (jantar), o pai do Chiquinho sentenciou:
Pai: Chico Manel, não te demores em deitar! Amanhã, temos de levantar muito cedo, pelas cinco e meia, para ir-mos à caça! 
Chiquinho: Oh pai, mas eu gosto pouco de ir à caça! Ainda por cima tenho de me levantar tão cedo! O que vou eu lá fazer? 
Pai: Gostes, ou não gostes, fazes-me falta, vais comigo e mais nada!  
Chiquinho: Está bem! Então, vou-me já deitar! 
Pai: Ao meio dia vens embora, trazes a caça, jantas (almoço) e, depois descansas e dormes uma sesta! Ainda vai muito calor e não posso andar lá com a caça o dia todo! Vamos pela faixa até à Ribeira de Lucefécit e quando voltarmos para cima, tu vens para casa e eu vou por Nabais, Sina e dou uma volta pelo Terraço que andam por aí umas lebres! 
O Chiquinho, foi deitar-se amuado, mas depressa adormeceu e, parecia que tinha acabado de adormecer e já o pai o estava a abanar para acordar! 
Pai: Chico Manel! Oh Chico Manel, está na hora, levanta-te e vai lavar a cara! 
Chiquinho: É já para me levantar? Então, mesmo agora me deitei! O que vamos fazer para a caça a esta hora da noite? 
Pai: Qual hora, nem hora da noite, já é manhã, põe-te em pé e depressa que ainda temos de comer! 
Chiquinho: Temos de comer outra vez? Então, não comemos mesmo agora? 
Pai: Deixa-te de conversas parvas e despacha-te! 
O Chiquinho sentou-se na cama, espreguiçou-se vezes sem conta e, só saltou para o chão quando ouviu os passos do pai que ia ver o que se passava com ele, lavou a cara e sentou-se à mesa! Comeu pouco, porque não conseguia comer às cinco e meia da manhã! Depois de tudo preparado, o pai do Chiquinho chamou os cães, deu-lhe uns restos de comida e, em poucos minutos estavam a caminhar para a dita faixa de caça, na Defesa de Ferreira, em direção à Ribeira de Lucefécit! Passaram junto ao eucaliptal da Casa Dias ainda não se via nada, mas no ribeiro da aldeia os cães sentiram a presença de coelhos, mas a sua investida não teve êxito por falta de visibilidade! Foram encostando à esquerda aos limites da herdade da Casa Rendeira e, quando chegaram ao alto das Colmeadas já se via um clarão no sítio onde o sol anunciava o seu nascimento! Foram descendo e, os cães levantarem um coelho que foi logo travado na sua corrida, com apenas um tiro certeiro! 
O Chiquinho, seguia as instruções do pai, ia atrás, mantendo sempre uma distância de segurança de cerca de dois metros, já carregava alguns coelhos e perdizes, entretanto abatidos e, com a manhã a mais de meio estavam junto do Moinho das Neves, sentaram-se sobre umas rochas, comeram uma bucha, beberam água e descansaram um pouco! Mas como não estavam ali para admirar a paisagem, continuaram pelo Ribeiro das Neves acima! O sol estava quente, obrigando a consumir água, por isso, quando subiam o vale de enxofre o pai do Chiquinho lembrou-se de ir beber e encher o barril de água fresca à fonte do ti Mutchaco, uma fonte pequenina de onde corria água muito limpida e, que se situava na margem esquerda do Ribeiro das Neves, a qual, em relação ao sítio por onde iam, estava separada por grandes silvados, mas o pai do Chiquinho não podia dispensar o abastecimento de água, porque quanto mais para cima iam, menos água havia, então, decidiu voltar atrás para contornar os silvados, ir à fonte e depois seguir em frente até onde pudesse voltar ao outro lado do Ribeiro, mas lembrou-se de entregar a espingarda ao Chiquinho e disse-lhe: 
Pai: Chico Manel, tu já és um homem e como já percebes a espingarda, ficas com ela e segues em frente, porque está aí um matinho à frente que deita sempre coelhos aqui para as silvas, tem cuidado com os cães, se sair algum coelho não atires para o lado deles, não acertes em algum, ou se aparecer aí alguém, mesmo que apareça algum coelho não atires! A espingarda fica pronta a disparar, tem cuidado com os gatilhos e nunca a vires para ti! Eu vou ali à fonte, porque não podes ir lá tu, ela é muito pequenina e a água tem de ser tirada com cuidado, não é para ti, senão chafurdas tudo e sujas a água, depois, vou ter contigo além acima naquele alto, esperas lá por mim! Ouviste? 
O Chiquinho ouviu tudo com muita atenção e pegou na espingarda, com algum nervosismo, embora já tivesse pegado nela algumas vezes, nunca tinha dado um tiro, mas agora quase de certeza que ia aparecer algum coelho, logo, seria a primeira vez a dar um tiro, mas ao mesmo tempo, estava muito orgulhoso pela confiança depositada pelo pai, que lhe disse que já era um homem! Fosse, como fosse, tinha de mostrar que o pai estava certo, só faltava o coelho aparecer e nada podia falhar!
O pai do Chiquinho dirigiu-se à fonte e, ele seguiu com os cães, de espingarda na mão na direção que lhe foi indicada, sempre alerta e atiçando os cães: busca, busca, mas não aparecia nada por ali! O pai do Chiquinho bebeu água fresquinha, encheu o barril e, quando se preparava para ir ter com ele, ouviu um tiro tão forte que ficou atarantado e, assim que se orientou gritou ao Chiquinho: 
Pai: Chico Manel, foste tu que deste este tiro? 
Chiquinho: Fui eu, fui, pai! 
Pai: E estás bem? Está tudo bem? 
Chiquinho: Está, sim senhor! 
O pai mal convencido correu na direção do lugar onde tinha ouvido o tiro e, assim que encontrou uma passagem no silvado, nem se importou de se arranhar, passou naquele lugar e ficou junto do Chiquinho, ainda a espingarda deitava fumo por todo o lado! 
Pai: Então filho, que tiro foi este? Até o vale de enxofre tremeu! Parecia um tremor de terra! Ainda pensei que tinhas ido pelos ares! Até tenho as pernas a tremer! 
Chiquinho: Vocemecê tem as pernas a tremer e eu estou mouco do ouvido direito e tenho este ombro (direito), todo escangalhado! 
Pai: Mau. mau, mostra lá! Vamos lá ver o que para aí está! 
O pai do Chiquinho esteve a observar, mandou-lhe mexer o braço e concluiu que, não devia ser nada partido, era só a clavícula toda esfolada do coice da espingarda! E continuou:
Pai: Mas como é que tu fizeste uma coisas destas? 
Chiquinho: Oh pai, não sei como foi, quando puxei o gatilho ouvi um grande estrondo e senti uma lambada no ombro que me fez ir de marcha atrás até ali, não sei como não me atirou ao chão, mas esteve quase! 
Pai: Dá cá a espingarda! Olha, estão os dois cães da espingarda em baixo! Está explicado! Puxaste os dois gatilhos ao mesmo tempo! Foi sorte ela não ter rebentado e acabar contigo! O que tu ias arranjando! Não tens tato nenhum! Não te mataste porque não calhou! Mas afinal mataste alguma coisa? 
Chiquinho: Oh pai, eu só puxei um gatilho! Deve ter disparado sozinha! Mas desconfio que matei alguma coisa! 
Pai: Então, se mataste, onde está a peça? 
Chiquinho. Qual peça? Da espingarda? 
Pai: Não, a peça de caça, o coelho, a lebre, a perdiz que mataste? 
Chiquinho: Deve estar além para cima!  Foi para além que eu atirei!
Pai: Mas atiras-te a quê, Chico? 
Chiquinho: Atirei a um coelho! 
Pai: Ah, um coelho! E onde está ele rapaz? 
Chiquinho: Deve estar além para cima! 
Pai: Mas além para cima, onde? Então, os cães não foram buscá-lo?
Chiquinho: Os cães, nem se mexeram daqui! 
Pai: Ora essa! Devem ter ficado assustados com o tiraço que deste, ainda estão aparvalhados! Bom, vamos lá apanhar o coelho! 
Chegaram ao primeiro alto em frente, o pai chamou os cães e deu ordens: Pluto, busca, busca, busca! Como os cães não encontravam nada, o Chiquinho disse ao pai: 
Chiquinho; Oh pai, não foi aqui que eu matei o coelho! 
Pai: Não foi aqui? Então onde foi? 
Chiquinho: Foi além no outro alto! 
Pai: Além naquele alto? Mas isso são mais de duzentos metros do lugar onde estavas! Como é que tu querias matar um coelho a essa distância? Ai valha-me Deus! Vamos embora!
Chiquinho: Oh pai, até podia não o matar, então e se o chumbasse, já os cães depois o apanhavam! 
Pai: Tu não regulas bem! Como é que chumbavas um coelho a mais de duzentos metros? 
Chiquinho: Não sei, mas podia ser! Se não lhe atirasse é que de certeza não o chumbava! 
Pai: Anda daí, vamos mas é andando para cima, já vi que não tens astúcia nenhuma para caçador! Nem para caçador, nem para nada! 
O Chiquinho seguiu o pai e, pouco falou o resto do percurso que fizeram juntos, até perto do poço da bomba, ficou com o orgulho beliscado e só pensava: "nunca mais me vou embora daqui, eu quero lá saber da caça, nem quero ser caçador"! Logo a seguir, o pai virou à direita para o Gomes e mandou o Chiquinho em frente para casa, em Capelins de Cima, com as peças que tinha caçado durante a manhã. 
O Chiquinho depois de jantar (almoçar) em vez de descansar e dormir a sesta, como o pai lhe ordenara, durante a tarde foi passar a ronda pela aldeia de Ferreira e arredores aproveitando as brincadeiras que foi encontrando, mas quando o pai chegou já estava em casa!
O Chiquinho, nunca mais esqueceu este episódio decorrido no dia 6 de Outubro de 1968, que correu mal e, provavelmente, teve influência na decisão de, mais tarde, não querer ser caçador. 

 Fim 

Texto: Correia Manuel



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