domingo, 2 de outubro de 2022

A lenda da burra manhosa e da burra coxa

 A lenda da burra manhosa e da burra coxa

Conta-se que, o ti Manel João, natural e residente na Aldeia de Ferreira de Capelins, no início da década de 1950, decidiu ir à Feira de S. Francisco, no dia quatro de Outubro na Vila de Redondo, comprar uma burra velha e mansa para ter um transporte quando ia a Terena, Alandroal e outras localidades, tratar de assuntos e para carregar a bolota (boleta) e a azeitona das suas courelas e também para quando a sua mulher, a ti Maria Ribeira, fosse lavar a roupa à Ribeira de Lucefécit ou ao rio Guadiana.
O ti Manel lá foi no dito dia, e mal entrou na Feira do gado, foi logo recebido por um vendedor e comprador de gado, senhor cigano que, depois de ouvir o que ele queria, disse-lhe que tinha ali uma burra mesmo boa para ele, ainda lhe mostrou mais duas ou três, mas ficavam muito atrás daquela, que era a melhor burra da feira, mostrou-lhe os dentes do animal, pelos quais sabiam a idade e afiançou-lhe que não tinha mais de nove ou dez anos, passou-lhe as mãos pelas orelhas, por baixo e por cima e ela muito quietinha, não deixando dúvidas que era muito mansinha, montou-a e andou uns cem metros para cá e para lá, fazendo uma boa demonstração de mansidão que convenceu o ti Manel a comprá-la e, quando deu por si já estava saindo da Feira com ela pela arreata e até esqueceu as encomendas da ti Maria.
Quando chegou junto à Aldeia de Foros da Fonte Seca, apanhou algum pasto para dentro de um saco de serapilheira para servir de albarda, encostou a burra a uma barreira da estrada e montou-se, seguindo quase em linha reta pelos Orvalhos, Hortinhas, Ferreira de Capelins, parando a descansar três ou quatro vezes, chegando ao seu destino ao fim da tarde, convencido que tinha feito um bom negócio, não tinha sido enganado pelo senhor cigano e, decerto tinha comprado a melhor burra da Feira, como ele lhe tinha afiançado.
Como se tinha levantado de madrugada e com uma viagem tão grande em cima, depois de ter ter metido a burra no cabanão, (cabana) deu-lhe água e palha, foi comer umas sopas de grãos que a ti Maria já tinha prontas, deitou-se e dormiu algumas horas, depois foi ver se estava tudo bem e nesse dia já não quis saber mais da burra.
Na madrugada seguinte, cinco de Outubro, depois do almoço (pequeno almoço), o ti Manel dirigiu-se ao cabanão para albardar a burra e ir para as suas courelas, mas quando foi a tentar pôr-lhe o cabresto não conseguiu, o animal dava cabeçadas e coices, que parecia um touro dos rodeios, o ti Manel começou a pensar que tinha sido enganado pelo senhor cigano, a burra era manhosa, mas lá na Feira parecia mansa, porque, conforme diziam, os senhores ciganos, decerto, tinham-lhe dado uma xaropada, ou metido uma garrafa de aguardente áspera pela goela abaixo, ficando bêbeda durante algumas horas, o suficiente para deixar fazer aquilo tudo e depois com o cansaço de tão grande caminhada da Vila de Redondo até à Aldeia de Ferreira, não se tinha manifestado naquele dia.
O ti Manel estava de mãos atadas, sem saber o que fazer, então, foi chamar um irmão e ambos concluíram que a burra era manhosa e bem manhosa, mas entre os dois, tentaram pôr o cabresto no animal, mas mesmo apernada com cordas não conseguiram, até fez um buraco na parte de trás do cabanão com tantos coices que deu.
O ti Manel era mestre em amansar muares e bois, por isso, pensou que não seria uma burra que o ia deixar mal, disse ao irmão para ir por trás do cabanão e pelo buraco que ela tinha feito com os coices, picar-lhe a traseira com um pau, enquanto ele, ao mesmo tempo, em frente lhe punha o cabresto, depois já a dominava, e assim foi.
Nesse dia, o ti Manel lá na courela, usou a sua arte de amansador de muares e de bois, acabando por ficar todo derreado das cruzes, mas a burra quando voltou ao cabanão parecia outra, e ele estava convencido que a amansava, porque tinha a certeza que tinha ali uma boa burra, entrou em casa e disse à mulher que não demorava em ter burra para ir lavar a roupa à Ribeira, porque estava quase mansa e a ti Maria acreditou.
No dia seguinte, depois de se aprontar, o ti Manel dirigiu-se ao cabanão para albardar a burra e ir para as suas courelas, mas quando foi tentar pôr-lhe o cabresto, não conseguiu, e teve de ir chamar o irmão para a picar pelo buraco do cabanão e ele fazer como tinha feito no dia anterior, e esta situação foi-se repetindo, diariamente até o ti Manel ficar convencido que não conseguia amansar a burra, nunca tinha visto um animal tão mau, muito melhor amansava um touro bravo.
Como em Capelins ninguém lhe comprava a burra manhosa, esperou até à Feira de Janeiro, de Vila Viçosa, no dia 29 desse mês, para ir a trocar por outra, que fosse velha e mansa.
Chegou o dia, e lá marchou antes das quatro da madrugada, logo à entrada da Feira do gado, estavam uns senhores ciganos com o olho em quem chegava e receberam-no muito bem, tratando-o pelo seu nome, ti Manel para cá, ti Manel para lá, e passado pouco tempo já era dono de outra burra, mas desta vez, teve mais cuidado, tirou-lhe o cabresto, pôs-lhe o cabresto, pôs-lhe a albarda, deu umas voltas montado na burra, viu-lhe os dentes, para saber a idade e não encontrou nenhum defeito no animal, regateou o preço, que incluiu a entrega da burra manhosa, e depressa fechou o negócio, pôs-se logo a caminho da Aldeia de Ferreira, onde chegou sem nenhum problema.
Quando chegou, chamou a mulher e o irmão, para lhe mostrar a nova burra e, principalmente quanto ela era mansinha, e adiantou que estava convencido que, desta vez, tinha feito um bom negócio, depois meteu-a no cabanão, tratou-a e foi comer, a seguir deitou-se e nesse dia como estava muito cansado já não foi para as courelas.
No dia seguinte, levantou-se cedo, comeu, arrumou o que tinha de levar para a courela e foi ao cabanão buscar a burra, pôs-lhe o cabresto, a albarda e confirmou que era muito mansinha, quando chegou à rua estava lá a ti Maria para ver melhor a burra e confirmar se estava tudo bem, mas não estava, ainda antes do ti Manel se aperceber, a mulher levou as mãos à cabeça e exclamou em voz alta: - Ai valha-me Deus! Manel a burra é coxa! Foi então que o ti Manel olhou e viu que o animal mal sentava uma das patas da frente no chão, era coxa e bem coxa.
O ti Manel ficou desolado, não tinha dúvidas que, mais uma vez, tinha sido enganado, foi chamar o irmão para o ajudar a observar o que se passava com o animal, pensou que, talvez fosse algum prego, ou arame ou mesmo um pau, espetado no casco, e se fosse isso, tinha solução, mas tanto ele como o irmão confirmaram que não era nada disso, a burra era mesmo coxa e os vendedores, conforme se ouvia, para ela não coxear lá na feira, tinham-lhe dado uma pancada com um pau na outra pata, ficando equilibrada em termos de dores e, assim, já não coxeava enquanto tivesse dores em simultâneo nas duas patas.
O ti Manel e a ti Maria, ainda ficaram na esperança da burra deixar de coxear, de ser uma dor passageira, ou pelo menos melhorar, até a levaram ao ti Xico da Boavista que lhe ensinou algumas mesinhas, mas não teve melhoras, era um dó ver o animal a sofrer quando caminhava, e o ti Manel, não teve outro remédio senão levá-la à Feira de Reguengos de Monsaraz, no dia 15 de Maio e vendê-la aos senhores ciganos pelo valor que lhe ofereceram, quase nada, depois de ser enganado duas vezes, o ti Manel nunca mais na sua vida comprou outra burra.
Ainda nesse ano, o ti Manel João comprou uma mula que conhecia muito bem, uma carroça e as alfaias agrícolas, a um tio, e tornou-se seareiro, mais tarde, comprou outras muares que conhecia, em Capelins, e nunca mais foi enganado.
Quanto à ti Maria Ribeira, nunca chegou a ir de burra fazer a lavagem da roupa à Ribeira, mas foi muitas vezes na sua carroça.
Fim
Texto: Correia Manuel



Sem comentários:

Enviar um comentário

Povoado de Miguéns - Capelins - 5.000 anos

  Povoado de Miguéns -  Capelins - 5.000 anos Conforme podemos verificar nos estudos de diversos arqueólogos, já existiam alguns povoados na...