segunda-feira, 3 de outubro de 2022

A lenda da tragédia no Baldio de Capelins

 A lenda da tragédia no Baldio de Capelins 

Na madrugada do dia onze de Outubro de 1736, o padre da Paróquia de Santo António, Termo da Villa de Terena, Miguel Gliz Galego, foi acordado pelo sacristão Francisco Diogo, mais cedo do que era habitual e, ainda atarantado devido ao sono foi ouvindo a notícia do sacristão: 
Sacristão: Senhor prior está ali na rua o Zé Ameixas a participar que acharam um rapaz morto no Baldio, com aspeto de ser muito novo e, quando o encontraram já não tinha cara, parece que foi comida pelos lobos, por isso, não sabem quem é, nem de onde é!
O padre Miguel Galego ouviu o sacristão com muita atenção e, por fim perguntou-lhe: 
Padre: Oh Xico, o que andava o Zé Ameixas fazendo a esta hora da noite naquele Baldio? Ele não mora em Capelins de Cima? 
Sacristão: Sim, ele mora ali, mas é jornaleiro na herdade do Azinhal Redondo de Cima, para onde ia com mais dois ou três homens! 
Padre: Isso agora não interessa! Vamos lá ver o que é que fazemos a esse rapaz?
Sacristão: Pois, senhor prior! Vamos ter de participar à justiça de Terena! A justiça tem de averiguar se foram os lobos que o atacaram ou se foram esses meliantes que andam por aí! E, também têm de saber quem é o rapaz!
Padre: É isso mesmo, Xico, vamos lá tratar disso! Então, eu vou almoçar (pequeno almoço) e depois vou lá a Terena participar ao sargento das ordenanças e tu deixa-me aí a burra albardada, vai com o Ameixas e ficas lá a guardar o corpo, porque os lobos podem voltar, depois, quando os ordenanças lá chegarem, vens e tratas ali da sepultura, eles resolvem o assunto com a Câmara! 
Sacristão: Está bem, senhor prior! Vou albardar a burra e depois vou só ali a casa tirar um bocadinho de pão para ir comendo pelo caminho e vou andando com o Ameixas!
(O Zé Ameixas ganhou este apelido, porque, por tudo e por nada, andava sempre a ameaçar: "levas uma ameixa", logo, ficou o "Ameixas" mas, parece que, era um homem bom, de Capelins de Cima).
O Padre Miguel vestiu-se, comeu as migas com toucinho frito que a Maria a sua criada lhe fez e, com muita calma, preparou o que tinha de levar, montou a burra da Paróquia e partiu para a Villa de Terena, por Faleiros, Ai Ai, Monte Branco, Ribeiro do Alcaide e Vila Velha! 
Dirigiu-se ao quartel das ordenanças, onde foi recebido pelo sargento mor, ao qual contou exatamente o mesmo que o sacristão lhe tinha transmitido! O sargento mor anotou tudo e disse-lhe que ia já enviar uma patrulha averiguar o caso e, só depois de saberem quem era o rapaz e como tinha falecido, dariam a ordem para o sepultar!
O padre despediu-se do sargento e foi tratar de outros assuntos da paróquia, depois, voltou para Santo António, onde chegou a horas de jantar (almoçar) as sopas de grãos com toucinho e carne! 
Passado pouco tempo, o sacristão entrou em casa, deixando o caso entregue à justiça! 
Os ordenanças, fizeram as diligências, um foi à herdade do Azinhal Redondo de Cima falar com os homens que tinham encontrado o rapaz e saber se tinham visto alguém perto daquele lugar, ou alguma coisa que pudesse ajudar na investigação! Anotou as respostas e voltou ao Baldio! Como não tinham mais nada a fazer ali, um ordenança ficou no lugar e o outro foi à Câmara da Vila de Ferreira, dar ordem para fazerem o funeral do rapaz!
Pelas quatro horas da tarde, chegaram à Igreja, dois homens da Câmara com uma carroça para levarem o esquife e, com os ordenanças levantarem o corpo para ser sepultado na Igreja de Santo António.  
À tardinha, o rapaz foi sepultado enrolado num lençol da casa do padre, sem saberem quem era! 
Todos os sinais que no futuro o pudessem identificar, ficaram registados pela justiça e, também, o padre Miguel anotou no registo do óbito a descrição da roupa que ele vestia, calções compridos, de burel, uma jaqueta escura forrada e escreveu que, mesmo sem cara, aparentava ter uns vinte anos, ou menos, assim como, o lugar exato onde tinha sido encontrado! 
Este caso, foi muito comentado na Villa de Ferreira e arredores, porque, os ordenanças concluiram que, tinha sido assassinado à facada por ladrões e se, eventuamente trazia papéis com a sua identidade, foram roubados, não sendo possível conhecer a sua identificação. 
Este caso, foi muito falado nas terras de Capelins e nas vizinhas, o acontecimento foi divulgado por todo o lado mas, não aparecia ninguém a procurar o rapaz, por isso, deduziam que tinha de ser de muito longe! Porém, com o passar do tempo e porque surgiram outras novidades, o caso foi ficando esquecido, até que, passado quase um ano, no dia de S. Miguel, 29 de Setembro do ano de 1737, era perto de meio dia, chegou à Igreja de Santo António, um homem com aparência de muito cansado, montado numa burra! Ordenou a sua paragem e apeou-se, prendeu a burra a uma das argolas fixada na parede da casa paroquial e começou a andar de um lado para o outro, parecia perdido, depois bebeu água de um barril que trazia no alforge, passou a mão pelo rosto e começou novamente a andar, em circulo! 
O sacristão que desde a sua chegada o estava a observar, achou o seu compotamento muito estranho, decidiu aproximar-se da criatura e meteu conversa: 
Sacristão: Bom dia homem! Então, precisa de alguma coisa daqui? Eu sou o sacristão! 
Desconhecido: Bom dia, sacristão! Olhe, preciso e não preciso! 
Sacristão: Mau! Assim, não o entendo! Ou precisa, ou não precisa! 
Desconhecido: Quero dizer, não preciso do serviço do sacristão, mas preciso da sua ajuda por outro assunto! 
Sacristão: Então, diga lá homem! Logo vejo se o posso ajudar!
Desconhecido: Eu chamo-me Manoel Ramos e sou de uma Aldeia chamada Amieira, ao pé de Portel! 
Sacristão: Eu sei onde é essa Aldeia! E vocemecê anda à procura de trabalho, não? 
Ti Manoel: Não, não ando! Ando é metido num grande sarilho! Há uma semana que ando de terra em terra, de herdade em herdade, de Monte em Monte, de Monsaraz para cima, à procura do meu filho que abalou de casa há quase um ano e nunca mais deu notícias! Eu a minha mulher e os meus filhos desconfiamos que ele não está por bem, por isso, queria saber se alguém o viu por aqui! 
Sacristão: Oh homem, como quer que eu saiba? Passa aqui tanta gente! Isso não é fácil, sem saber o nome dele, ou a aparência e, mais ou menos a idade! Eu, de verdade, não tenho visto ninguém desconhecido por aqui nas missas nem pela Freguesia e olhe que eu conheço toda a gente e até nos arredores! 
Ti Manoel: O meu filho chama-se Miguel Ramos, tem agora vinte anos, é alto, cabelo escuro e muito parecido comigo! 
O sacristão olhou o homem de alto a baixo, mas nada, abanou a cabeça em sinal negativo, não se lembrava de ver por aqui nenhum rapaz parecido com o ti Manoel Ramos! 
Sacristão: Não, não me lembro de ver por aí ninguém com essas parecensas! Mas tem algum indício que o leve a pensar que o seu filho veio para estas bandas?
Ti Manoel: Tenho, tenho! O meu Miguel ainda era pequenino, apontava o dedo para o outeiro de Monsaraz e dizia-me: "Pai, além daquele outeiro para riba é que eu quero ir morar quando for grande" e no dia que abalou de casa disse-me que ia procurar a terra dos seus sonhos! Agora, diga-me lá, para onde é que ele havia de ir? 
Sacristão: Tem razão, tem! Então e procurou-o ali pela Aldeia de Mato e por aquelas aldeias e herdades? 
Ti Manoel: Procurei por todo o lado, ninguém o viu por ali! 
Sacristão: Ora essa! Então, e ele veio a pé? Ou trazia alguma montada? 
Ti Manoel: Abalou a pé, com pouco mais do que a roupa que trazia no corpo, lembro-me tão bem, eram uns calções compridos de burel, uma jaqueta escura e, um chapéu castanho e num saco de serapilheira trazia uma manta, um pão, azeitonas e toucinho!  
Nesse momento, o sacristão estremeceu, fez-se luz, e perguntou: 
Sacristão: Vocemecê disse, uns calções compridos de burel e uma jaqueta escura forrada? 
O sacristão levantou os olhos ao céu e murmurou baixinho "ai meu Deus é ele"! O ti Manoel notou no gesto que, ele sabia alguma coisa do filho e decerto não era boa! Deitou as mãos à cabeça, começou a chorar e suplicou ao sacristão para lhe contar o que tinha acontecido! 
O sacristão, já não podia voltar atrás, pediu-lhe para entrar na sua casa, sentaram-se e contou-lhe tudo o que se tinha passado naquele fatídico dia 11 de Outubro de 1736! 
O ti Manoel, chorou muito, depois, pediu ao sacristão se podia ver onde o filho estava sepultado! O sacristão levou-o à Igreja e, com um aceno da cabeça indicou-lhe o lugar da sepultura! O ti Manoel ajoelhou-se e debruçou-se a chorar sobre a sepultura do filho, o sacristão afastou-se devagarinho, deixou-o sózinho e foi contar ao padre Miguel Galego o que se estava a passar! 
O ti Manoel Ramos esteve quase uma hora na Igreja e, quando saiu, o padre estava à sua espera para o confortar! Ele agradeceu ao padre e ao sacristão com um abraço, por terem feito o funeral ao filho! Por fim despediu-se, montou na burra e disse que, depressa voltava ali, ía já embora para ir dormir a Reguengos e no dia seguinte seguia para a sua Aldeia contar a triste notícia à família. 
A notícia do triste acontecimento, depressa se espalhou na Aldeia da Amieira, fizeram o velório, a cerimónia religiosa e, a família iniciou o luto quase um ano após a morte do Miguel!
No dia 10 de Maio de 1738, já muito calor, antes do meio dia, o ti Manoel Ramos, a mulher e quatro filhos,  chegaram à Igreja de Santo António, com tudo o que tinham, transportado por duas burras!
O burburinho à chegada, despertou a atenção do sacristão que andava por ali e, assim que reconheceu o ti Manoel, aproximou-se e meteu conversa:
Sacristão: Bom dia! Olha o ti Manoel! Bem disse que voltava! 
Ti Manoel: Bom dia, sacristão! Como lhe disse, cá estamos! E não viemos mais cedo, porque tivemos muitas coisas a tratar lá na nossa Aldeia! 
Sacristão: Quer dizer, que vieram para ficar por cá? 
Ti Manoel. Sim, sim! Para ficarmos na terra dos sonhos do nosso filho, para sempre! Por isso, quero pedir-lhe se nos pode recomendar a algum lavrador? 
Sacristão: Posso, posso! Há aí muita falta de gente! Como lhe disse o ano passado, conheço aqui tudo, sei quais são as melhores casas! Fique descansado que vão ficar bem! 
Ti Manoel: Obrigado, mas antes disso, ainda quero pedir-lhe se hoje, ou amanhã, nos pode indicar o lugar exato onde encontraram o nosso filho? 
Sacristão: Quando quizer vamos lá, hoje tenho muito vagar e não é longe daqui! 
Ti Manoel: Então, agora podemos ir à sepultura do nosso Miguel? 
Sacrsitão: Olhe, a porta da Igreja está sempre aberta, podem entrar quando quizerem! 
O ti Manoel e a família entraram na Igreja de Santo António, já a chorar e o sacristão entrou em casa, porque a mulher já tinha arredado do lume, as sopas de grãos e estava a pôr a mesa para o jantar (almoço)! 
O sacristão depois de comer saiu de casa e, não demorou, o ti Manoel e a família foram ter com ele!
Ti Manoel: Como ficamos aqui até amanhã, onde é que nos podemos aí arrumar?      
Sacristão: Olhe, podem ficar aí debaixo desses chaparros! É aí que ficam os almocreves e toda a gente que por aqui passa! Aí não há perigo, há aqui muita gente e temos aqui os cães! 
O ti Manoel tirou dois panejões de cima de uma das burras e com a ajuda da mulher ataram uns cordéis e prenderam-nos a um chaparro fazendo uma tenda improvisada que dava abrigo a todos! 
A seguir comeram uma bucha e foram novamente ter com o sacristão para os levar ao lugar onde o Zé Ameixas e os outros jornaleiros tinham encontrado o corpo do Miguel, no Campo do Gracia, no Baldio! 
Quando chegaram ao lugar, o sacristão contou-lhe tudo o que viu e depois voltou para casa! Eles ficaram lá o resto da tarde a chorar, a rezar e a lamentarem-se! O ti Manoel jurou ali, que havia de apanhar os bandidos! 
À tardinha, voltaram à Igreja, à sua tenda, fizeram um Gaspacho, cearam (jantaram) e, como o cansaço era muito, não demoraram em adormecer em cima de uma manta e de uns restos de palha! 
Na manhã seguinte, por coincidência dia 11, arrumaram as coisas, foram novamente à sepultura do Miguel e, com a recomendação do sacristão, depois da despedida e dos agradeciemntos, seguiram para a herdade da Talaveira, onde ficaram a trabalhar e a residir cerca de dois anos, sem nunca faltar à missa de Domingo! 
O ti Manoel Ramos era um homem alto, forte e bem constituído, bom trabalhador e, depressa se destacou nos trabalhos agrícolas na herdade da Talaveira, mas o seu sonho era ser lavrador ou pelo menos seareiro e, como tinha guardado algum dinheiro da venda de alguns bens na Amieira, comprou uma mula, uma carroça, charrua e outros apetrechos para a lavoura, arrendou algumas courelas e foram morar para o Monte do Meio, entre Capelins de Cima e Capelins de Baixo, passando a ser seareiro! 
Esta família, foi ganhando a simpatia dos moradores da Vila de Ferreira, não só pelo que tinha acontecido com o seu filho, mas porque se davam bem com toda a gente! O ti Manoel era considerado um homem bom, por isso, foi eleito vogal da Câmara da Vila! 
O ti Manoel continuava a dizer por todo o lado que, havia de apanhar os bandidos que lhe tinham matado o filho! Todos os dias treinava o manejo do pau ferrado e, passava muitas noites a andar pelos caminhos do Baldio na esperança de os encontrar! 
Quando lhe contavam que eles tinham aparecido em algum lugar, ele corria lá armado com o seu pau ferrado, mas chegava tarde, já não os encontrava! 
Toda a gente lhe dizia para ter cuidado e que seria melhor deixar-se disso, porque eles eram muitos e andavam armados com paus, facas e outras armas! Nem os ordenanças lhe faziam frente, nem os procuravam! Ele respondia sem hesitação, que não tinha medo dos criminosos! 
No dia 10 de Outubro de 1740, como habitualmente, depois de tratar da mula e de cear (jantar), pegou no pau ferrado e seguiu para o Baldio, antes, disse à mulher que, não se demorava, mas demorou, durante a noite não voltou ao Monte do Meio! A mulher, não dormiu e de madrugada foi bater à porta do Alcaide da Câmara da Vila de Ferreira a pedir ajuda, para o procurar no Baldio, porque, decerto, não estava por bem! 
O Alcaide, foi chamar alguns homens e foram direitinhos ao lugar onde tinham encontrado o filho do ti Manoel Ramos na madrugada do dia 11 de Outubro de 1736, quatro anos antes, por saberem que era por ali que ele costumava andar! Quando lá chegaram, ao Campo do Gracias, encontraram-no morto, sem cara, comida pelos lobos durante a noite, tal e qual, como tinha acontecido ao seu filho Miguel! A tragédia repetiu-se, decerto, tudo planeado pelos mesmos bandidos! 
O Alcaide, mandou chamar os ordenanças da Villa de Terena que, fizeram as diligências necessárias e, à tardinha desse dia 11 de Outubro de 1740, o ti Manoel Ramos foi sepultado na Igreja de Santo António. 
Este acontecimento, causou grande consternação e revolta nos moradores da Vila de Ferreira e, devido a estas situações e a outras semelhantes, a Câmara apresentou um requerimento ao capitão mor das ordenanças da Vila de Terena a pedir mais segurança nesta região, que foi prontamente concedida, permanecendo aqui patrulhas de ordenanças bem armadas, prontas a atuar, assim que surgia algum rumor, sobre a presença de bandidos nas proximidades.  
A viúva do ti Manoel Ramos e os filhos, ficaram a residir no Monte do Meio, fazendo de Capelins, a sua terra para sempre! Ainda hoje, por aqui existem alguns descendentes. 
Os bandidos, que nessa época, abundavam por toda a região, nunca foram eliminados.     

Fim 

Texto: Correia Manuel

Baldio de Capelins 



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