segunda-feira, 3 de outubro de 2022

A lenda do moleiro do Moinho da Cinza, em Capelins

 A lenda do moleiro do Moinho da Cinza, em Capelins

Conta-se que o ano de 1880, foi dos mais secos de que há memória,  nas terras de Capelins, secaram as nascentes, as Ribeiras do Lucefécit e do Azevel e, no rio Guadiana foram poucos os pegos que não ficaram sem água. 
As searas produziram pouco e, para agravar a situação surgiu uma praga de gafanhotos que atravessaram a Espanha, vindos de Marrocos e quase dizimaram o que restava. 
As fracas colheitas, o rio Guadiana quase seco, logo os seus moinhos não trabalhavam, não moiam, alguns moleiros tiveram de ir fazer outros trabalhos, ou abalaram para outras terras, mas o ti José Maruta que era o moleiro do Moinho da Cinza, teimou em não abandonar a casa do dito moinho, onde morava com a sua mulher a ti Anna Patusca e cinco filhos com idades entre os três e os doze anos, três raparigas e dois rapazes.
Como, ainda tinha guardados quatro sacos de farinha, das maquias de antes do verão, fez as contas e, davam amassaduras para fazer pão e papas de farinha torrada, até ao fim do ano, com a ajuda de alguma caça e contrabando de alguns burros para Espanha, decerto que se aguentavam até a situação melhorar.
O tempo foi passando, com algumas dificuldades, o ti Maruta, não tinha nada para fazer no Moinho, mas tinha de arranjar a estrada, por onde passavam os fregueses, por isso, passava o tempo por ali, dando voltas e mais voltas à cabeça a tentar encontrar uma maneira de melhorar a vida, mas não descobria o caminho que o conduzisse a uma vida melhor.
De tanto pensar, já tinha visões, sonhava acordado, até que, um dia, chamou a ti Anna Patusca para lhe contar o que lhe andava a dar cabo da cabeça: 
Ti Maruta: Oh Anna, tenho de te contar o que me anda a acontecer há  mais de um mês, todas as noites sonho com um tesouro, uma panela cheia de moedas de ouro e de prata, enterrada num sítio lá na serra da sina!
Ti Anna: Oh homem, cá para mim, andas é doido da cabeça! Tu acreditas nessas conversas que te trazem aí ao Moinho? 
Ti Maruta: Eu não, Anna! Sei que muitas são mentiras, mas há outras, que não sei, não sei!  
Ti Anna: Oh José Maruta, há por aí muitos mentirosos, quando aqui chegam, já trazem as mentiras feitas e, depois metem-te essas coisas na cabeça! Em cabeças como a tua! Eu, não acredito nesses sonhos de tesouros enterrados por aí!  
Ti Maruta: Cala-te mulher! Não se pode falar contigo, és sempre do contra! Eu sei que ali para os lados de Monsaraz, de Montoito, de Elvas e, outros sítios, têm achado muitos tesouros e, quem os achou, antes sonhou com eles! Por isso, quem te disse a ti, que o meu sonho não é desses?  
Ti Anna: Ninguém me disse! Mas como já te disse, eu não acredito nesses sonhos! Tu faz o que quiseres, vai lá ver do teu tesouro à serra da sina! 
Ti Maruta: Hoje ainda não vou, mas se continuar a sonhar com ele, podes crer que vou!  
Ti Anna: Tu lá sabes! Mas para andares fazendo essa figura, o melhor é agarrares o caminho para lá e logo te desmaginas!  
Ti Maruta: Acabou a conversa, mulher! Não se pode falar contigo! Já disse que vou, e vou! 
O ti José Maruta, passou por ali o resto do dia arranjando o caminho e a andar de um lado para o outro, a pensar como fazia para desenterrar o tesouro e trazê-lo para casa no Moinho da Cinza e, assim, se passou o dia.
À noite, assim que cearam (jantaram) deitaram-se logo, o ti Maruta adormeceu e, começou logo a sonhar com o tesouro, foi a noite toda, de madrugada acordou, levantou-se e subiu o rio Guadiana para desanuviar a cabeça, e ao nascer do sol, entrou em casa, já a ti Anna estava acabando de fazer as migas para o almoço (pequeno almoço), o ti José Maruta sentou-se à mesa, comeu as migas, sem dizer uma palavra. 
A ti Anna notou logo que, ele não estava bom e iniciou a conversa:
Ti Anna: Então, José Maruta, o que tens hoje? Já vi que não estás bom! Foi o sonho, não?
Ti Maruta: Não tenho nada! O que queres que eu tenha? 
Ti Anna: Não quero que tenhas nada, já vi tudo! É o raio desse sonho do tesouro que anda a dar cabo de ti, homem! 
Ti Maruta: Não sei, se é o sonho, se não é, só sei que ele não me larga! Esta noite, foi a noite toda a sonhar com o tesouro! O que faço eu à minha vida, Anna? 
Ti Anna: Oh homem, se isso te anda a moer, tens bom remédio, agarra na burra e vai lá à serra da sina a ver do tesouro! 
Ti Maruta: Então, e é só ir buscá-lo, não? Não te disse que está enterrado? 
Ti Anna. Então e o queres fazer? Olha, leva a enxada, desenterra-o e trá-lo para casa! 
Ti Maruta: Tu estás é a desconversar, Anna, mas isto é um caso sério! Se esta noite continuar a ter o sonho, então, não tenho outro remédio, senão ir de madrugada a ver dele! 
Ti Anna: Vai, sim vai, José Maruta, pelo menos a ver se te desmaginas, senão ainda dás em doido, se é que não estás já, homem! Prepara a enxada a pá e uma saca de serapilheira para o trazeres, vai bem cedo para ninguém te ver nessa figura, senão ainda fazem pouco de ti! 
O ti José Maruta, nem a ouvia, só pensava no tesouro, andou arranjando o caminho do Moinho e vagueando pela margem do rio Guadiana, sempre pensando no que havia de fazer à sua vida e planos para depois de trazer o tesouro. 
Após a ceia (jantar), foi deitar-se e assim que adormeceu, apareceu o mesmo sonho, mostrava-lhe o tesouro sempre no mesmo sitio, não podia haver engano. De madrugada, o ti Maruta levantou-se, comeu um bocado de pão com toucinho, albardou a burra, pegou na enxada, numa pá, num saco de serapilheira e partiu para a serra da sina. Como conhecia bem a serra, foi direitinho ao sítio que via no sonho e, começou logo a cavar,  mas a enxada batia na terra e saltava, porque a mesma era de barro vermelho e estava tão dura que parecia cavar em cima de pedras, mas a vontade de chegar ao tesouro era tanta que, com muito esforço foi cavando, cavando, sem aparecer nada, então, começou a pensar que, podia estar enganado no sítio, porque aquela parte da serra da sina era toda igual e, começou a ficar desorientado, olhou, olhou e mudou-se para outro lado, cavou, cavou e nada, já de cabeça perdida e a cair de cansaço, tornou a mudar de lugar, fazendo isso várias vezes, já estava tão cansado e tonto que nem viu chegar o feitor da herdade da Sina junto dele, que lhe gritou: 
Feitor: Oh homem, o que anda vocemecê fazendo aqui? 
Ti Maruta: Eu? Eu, nada, nada! 
Feitor: Nada como? Então, vocemecê tem aqui a serra toda esfuracada e diz-me que não anda a fazer nada? 
Ti Maruta: Então, quem é que vocemecê é?
Feitor: Eu sou o feitor aqui da herdade! Porquê? 
Ti Maruta: Por nada, por nada, senhor feitor! 
Feitor: Estou à espera que me diga que trabalho é este? Ou tenho de o levar para o Monte e chamar cá a ordenança de Terena? 
Ti Maruta: Oh senhor feitor, eu não quero arranjar fezes! Eu conto-lhe tudo! 
Feitor: Então, é melhor contar, eu estou à espera! 
O ti Maruta, não teve outra remédio, senão, contar tudo ao feitor, que o ouviu com muita atenção, sem troçar dele, parecia acreditar em tudo o que estava a ouvir e. só depois do ti Maruta acabar se pronunciou: 
Feitor: Vocemecê é o Moleiro do Moinho da Cinza, o ti Maruta, não é? 
Ti Maruta: Sou, sim senhor, mas por favor não conte isto a ninguém, senão ainda vão fazer para aí pouco de mim! 
Feitor: Fique descansado, dou-lhe a minha palavra de honra que de mim, ninguém vai saber de nada! Mas, agora diga-me lá, vocemecê acredita nesses sonhos com tesouros enterrados aqui ou ali? 
Ti Maruta: Ora! Tenho ouvido contar tanta coisa lá no Moinho! A gente, não pode acreditar em tudo o que ouve, mas sabemos que os antigos tinham de enterrar o dinheiro e o ouro para não o roubarem e ficaram por aí muitos tesouros! 
Feitor: Sim, acredito que os antigos tinham de enterrar alguns haveres para não serem roubados! Eu refiro-me à parte dos sonhos! Eu não acredito nisso! Olhe, vou contar-lhe uma coisa que nunca contei a ninguém! Sabe que também já estive de cabeça perdida por causa de um sonho desses? Começou lá na minha terra em S. Miguel do Adaval, ainda eu era gaiato! 
Ti Maruta: Ah sim? Não está a fazer pouco de mim? 
Feitor: Qual fazer pouco, não ti Maruta, é a verdade! Eu conto-lhe como era esse meu sonho, via sempre o mesmo outeiro, muito alto na margem do rio Guadiana, lá em cima tinha os restos de um castelo e, o meu tesouro estava dentro desse outeiro, entrava num buraco do lado do rio a seguir estavam umas paredes em pedra, no lado esquerdo estava uma casa com uma grande lage e debaixo dela, estava o tesouro dentro de um saco de couro e sabe o que era esse tesouro? 
Ti Maruta: Não sei, não senhor, algumas moedas de ouro? 
Feitor: Não, ti Maruta! Eram quatro barras de ouro! Ainda andei convencido que podia ser verdade! Mas, olhe, ainda bem que me curei e deixei de sonhar com o tesouro, porque isso são coisas criadas pelas nossas cabeças, de tanto pensarmos nelas convencemo-nos que são verdade! Veja lá se não foi o que aconteceu consigo? Vá para casa ti Maruta e descanse a sua cabeça! Passe bem, tenho de ir até ao Monte, estão à minha espera para o jantar (almoço)! 
Ti Maruta: Passe bem, senhor feitor! 
O ti Maruta ainda ficou algum tempo sentado no chão e até chorou, com pena dele próprio, depois levantou-se e montado na sua burra voltou à sua casa na Cinza.
A ti Anna Patusca assistiu à sua chegada e, pela cara dele, viu logo que a viagem não tinha corrido bem, ia para lhe perguntar pelo tesouro, mas não o fez com receio de ouvir o que não queria.
Estava na hora do jantar (almoço), ela pôs a mesa, o ti Maruta migou as sopas de pão para dentro do barrenhão sem dizer nada, comeram as sopas de grãos e logo a seguir o ti Maruta deitou-se e dormiu quase toda a tarde, quando acordou, ficou surpreendido, porque pela primeira vez desde há vários meses, não tinha sonhado com o tesouro da serra da sina e nem parecia o mesmo, começou a falar com a ti Anna com boa disposição, como se não se tivesse passado nada, até deu para a ti Anna desconfiar se ele não teria achado alguma coisa, mas não, já tinha visto o saco vazio.  
Nos dias seguintes, o ti Maruta começou a trabalhar como jornaleiro na herdade da Defesa de Bobadela e, na sua casa, nunca mais se ouviu falar do tesouro da serra da sina, até que um dia o ti Maruta estava tão bem disposto que puxou a conversa:
Ti Maruta: Oh Anna, então nunca mais me falaste do tesouro da serra da sina, nem do meu sonho, porquê? 
Ti Anna: Eu? Deus me livre! Cruzes! Ainda bem que estás curado! Eu até já tinha uma promessa a Nossa Senhora das Neves! Tenho de a ir pagar!
Ti Maruta: Ah pois! Se fizeste alguma promessa tens de a pagar! Isso é uma coisa muito séria! Estou curado, mulher, lá isso estou! Mas eu vou-te contar o que me aconteceu naquele dia que fui lá à serra da sina a ver do tesouro! 
Ti Anna: Eu ficava melhor se não me contasses nada! Mas está bem, como isso já passou, então, conta lá! 
O ti Maruta, com calma, contou à ti Anna Patusca, o que lhe tinha acontecido naquele dia, que se ia matando a cavar a terra muito dura e a conversa com o feitor da herdade da Sina que, o tinha apanhado em flagrante a esfuracar a dita serra e por pouco era preso pelas ordenanças de Terena! 
Ti Anna: Ai valha-me Deus, homem! O que tu ias arranjando com essa maldita doença! 
A ti Anna ficou abismada com o que o ti Maruta lhe contou, principalmente, sobre a parte do sonho do feitor com o tesouro dentro de um outeiro muito alto junto ao rio Guadiana e, logo identificou que era o outeiro do Pombo, ali por cima deles e não se conteve: 
Ti Anna: Oh José Maruta, tu sabes que esse sítio é aqui mesmo ao pé da gente! 
Ti Maruta: Então, mulher, o que é que isso quer dizer? Não me digas que agora já acreditas nos sonhos com tesouros? 
Ti Anna: Eu, não, não José! Mas um dia que tivessemos vagar passavamos por ali, nem é preciso cavar, nem nada, é só ver se está lá a lage e depois tirar o tesouro! Sim, se ele lá estiver! 
Ti Maruta: Mau, mau Anna Patusca! Assim, não te percebo, não acreditas nos sonhos com tesouros e agora queres ir ver do tesouro do feitor? 
Ti Anna: Oh José, já te disse que não acredito, mas não perdemos nada, é aqui mesmo ao pé da gente! 
Ti Maruta: Está bem, mulher, fica descansada que um dia vamos lá, já lá fomos a dentro do outeiro tantas vezes, mais uma, não faz mal nenhum! Um dia vamos lá!
Depois daquela conversa, a vida dos Maruta, continuou a decorrer normalmente, com as dificuldades existentes nesses tempos.
Quando o rio Guadiana tomou água, o Moinho da Cinza começou a moer e, só parou alguns dias em pleno inverno, quando o rio ganhou grandes cheias, que submergiram o Moinho, mas na Primavera de 1881 já estava cheio de sacos de cereais para moer, porém, nos finais do mês de Maio, com grande surpresa dos fregueses e conhecidos, de um dia para o outro, os Maruta desapareceram da Cinza, mas disseram a alguns fregueses e ganadeiros que por ali guardavam gado, que se iam embora para a terra da família, na Serra da Estrela, porque tinham herdado lá umas courelas e iam tratar delas, uma coisa muito normal, que todos acreditaram ser verdade.
Passados cerca de cinco anos, os Maruta começaram a aparecer nas feiras da região a comprar e vender grandes rebanhos de gado, bem apresentados, trajados à grandes lavradores, causando grande surpresa a quem os conhecia que, começaram logo a indagar junto de outros amigos lavradores que os conheciam, como é que eles tinham chegado aquele estado? Mas ninguém conseguia adiantar grande coisa, apenas que, eram os donos de duas grandes herdades na Freguesia de Ventosa, em Elvas.
A notícia foi-se espalhando pelas terras de Capelins e, quem os conhecia e sabia das dificuldades que passavam na Cinza, não acreditavam, nem encontravam explicação plausível para aquela situação, e toda a gente perguntava: - Como é que eles tinham chegado a lavradores? E davam a sua opinião, mas os que sabiam da herança lá na Serra da Estrêla diziam que, talvez ela tivesse sido maior do que eles pensavam, depois venderam tudo e vieram comprar as herdades na Ventosa, era o mais certo e, assim ficou.
Alguns conhecidos, quando os encontravam nas feiras, não se continham em lhe perguntar como tinham conseguido comprar as herdades, e eles respondiam que a herança que tinham recebido era maior do que esperavam, mas também foi, porque acreditámos nos sonhos.
Ninguém percebia o que tinha a ver os sonhos com aquela fortuna, mas os Maruta repetiam, o mesmo:  "Acreditámos nos sonhos"! 
O feitor da herdade da Sina, não acreditou nos sonhos, por isso, lá ficou em feitor, até ao fim da sua vida, acabou por contar a algumas pessoas o que tinha falado com o ti Maruta, naquele dia na serra da sina, mas ninguém associou a fortuna dos Maruta ao tesouro do outeiro do Pombo e nem o feitor se apercebeu que o seu sonho com aquele tesouro era verdadeiro.
O tesouro da serra da Sina, era uma panela cheia de moedas de ouro, o mesmo que aparecia no sonho do ti Maruta, e foi encontrado na década de 1950, no lugar que ele via no sonho, quando alguns jornaleiros, lavravam aquelas terras, por isso, o sonho estava certo, o ti Maruta é que perdeu a orientação. 

Fim 

Texto: Correia Manuel 

Moinho da Cinza - Capelins






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