terça-feira, 4 de outubro de 2022

Memórias do Chiquinho de Capelins, quando foi benzido ao nervo torto

 Memórias do Chiquinho de Capelins, quando foi benzido ao nervo torto

O Chiquinho de Capelins gostava de todas as brincadeiras que faziam na escola, jogar ao berlinde, pião, pateira, apanhada, escondidas, mas de nenhuma, como a de jogar futebol, formavam duas equipas com meia dúzia de rapazes de cada lado e era correr, correr atrás de uma bola de borracha, para uma e outra baliza, marcadas com duas pedras sobrepostas lado a lado com distância de dois ou três metros!
Os jogos de bola realizavam-se a toda a hora, nos recreios, antes e depois das aulas e foi num desses jogos que o Chiquinho levou uma canelada de um lado do tornozelo direito e bateu com o outro lado no que restava de um poste de cimento e caiu.
Quando se levantou, sentiu dores no tornozelo que não lhe permitiram continuar a jogar, pegou na mala do material escolar e foi para casa, mas mal assentava o pé no chão, indo por vezes ao pé coxinho, sempre na esperança da dor passar, mas já estava há algum tempo em casa e não passava, o tornozelo estava em brasa e cada vez pior, até que teve de dizer à mãe que estava à rasca do pé.
A mãe ao vê-lo sentado tão quietinho, já estava desconfiada que alguma coisa não estava bem e disse-lhe:
Mãe: Mostra lá o que tens para aí! Para tu te queixares, não deve ser coisa boa!
Chiquinho: Não é nada! Pronto, já está a passar, não sinto quase nada!
Mãe: Mau, mau Chiquinho! Mostra lá o pé!
O Chiquinho não teve maneira de se safar e mostrou o pé à mãe que, ficou aflita e disse-lhe que tinha o pé torcido, ou partido, tinham de ir mostrá-lo à comadre Maria que fazia benzeduras do torcido e sabia se estava, ou não partido e continuou:
Mãe: Oh Chiquinho, como é que tu fizeste uma coisa destas?
Chiquinho: Olhe, foi além na parede da tapada, vinha à pressa, não fizesse cá falta, vim logo a direito por cima da parede e deu nisto!
Mãe: Ainda por cima és mentiroso! Isto foi uma pancada! Mas agora temos de ir tratar disso, depois logo falamos!
Chiquinho: Mau, mau mãe, estou a dizer a verdade, assim, não sei para que serve eu dizer a verdade, nunca acredita no que eu digo!
Mãe: Oh Chiquinho, como é que eu posso acreditar, vê-se logo que isso não foi feito na parede! O que andarias tu a fazer?
Chiquinho: Nada, mãe, nada! É verdade que foi quando pulei de cima da parede para dentro da tapada, caí e bati com o tornozelo numa pedra que lá estava e ainda lá está, quer ir lá ver?
A mãe do Chiquinho, não insistiu mais e levou-o à casa da comadre Maria que lhe observou o tornozelo com muita atenção, pressionou para os lados, para baixo e para cima, passou a mão e disse que não era partido, era carne quebrada, linha torcida, ou nervo torto, precisava de ser benzido, mas como a benzedura levava muito tempo, primeiro tinha de ir fazer a travia (papas de farinha de cevada e aveia) ao bacro, senão ainda saia do chiqueiro com fome, e a tratar das galinhas, depois, fazia a benzedura com mais vagar.
Quando a comadre Maria acabou de tratar dos animais, trouxe a cesta da costura e procurou uma agulha nova que, nunca tinham servido, pegou num novelo de linhas de meias, sentou-se e explicou ao Chiquinho o que tinha de dizer cada vez que ela dissesse a palavra "coso" e a comadre Maria começou a benzedura:
Comadre Maria: Coso!
Chiquinho: Carne quebrada, linha torcida, nervo torto!
Comadre Maria: É mesmo isso que eu coso,
Se é carne quebrada, torne a soldari,
Se é linha torcida, vá ao seu lugari,
Se é nervo torto, torne a endireitari!
Em louvor de Deus e da Virgem Maria,
Padre-nosso e Ave-Maria.
A comadre Maria repetiu vezes sem conta, umas nove vezes e no fim, massajou a área torcida com azeite, por pouco o Chiquinho começava a rir, mas lembrou-se que podia levar alguma orelhada e aguentou-se, a benzedura acabou e quando o Chiquinho pensava que já estava curado, estava na mesma, mal assentava o pé e lá foi para casa ao pé coxinho.
As melhoras estavam demoradas e um dia o pai do Chiquinho disse à mãe que era melhor amostrar o gaiato ao Dr. Galhardas, mas a ideia foi logo afastada, desde quando é que o Dr. Galhardas percebia de benzeduras do torcido? Nem do torcido, nem nenhuma! Respondeu a mãe! 
Assim, o Chiquinho continuou a ir à benzedura da comadre Maria e andou, diariamente a cumprir o ritual da benzedura da carne quebrada, linha torcida, nervo torto, mais de uma semana, as melhoras continuavam muito lentas, mas as dores foram passando até que a comadre Maria deu-lhe alta da benzedura e disse-lhe que, podia voltar à sua vida normal, sem castigar muito o pé, mas estava curado e, logo no dia seguinte, o Chiquinho começou a jogar à bola.
Fim
Texto: Correia Manuel 


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