segunda-feira, 3 de outubro de 2022

A lenda da cozinheira da herdade do Seixo, de Capelins

 A lenda da cozinheira da herdade do Seixo, em Capelins

A herdade do Seixo situa-se na Freguesia de Capelins, tinha o seu Monte que, já consta nos Registos Paroquiais desta Freguesia, nos finais do ano de 1600, sempre conhecida na posse da mesma Família, até aos fins do século XIX, com o apelido de "Jorge"!
Em Outubro de 1900, durante as sementeiras, trabalhavam na herdade do Seixo, mais de trinta homens e mulheres, na agricultura, guardadores de gado, nos trabalhos do Monte, criadas de casa, cozinheiras, lavadeiras e outras! Muitos trabalhadores e trabalhadoras eram afilhados e afilhadas da casa, dos lavradores ou dos seus filhos, entre elas, uma cozinheira chamada Maria Joana, filha de um casal de Cabeça de Carneiro que, ali tinham sido criados, a qual, era afilhada do Manoel Jorge, o filho mais velho dos lavradores!
A Maria Joana, era uma rapariga muito arisca, de nariz empinado, tinha metido na cabeça que também era lavradora, devido à proteção que tinha por parte do padrinho, por isso, já tinha vinte e oito anos e, ainda estava solteira, porque, quem ela queria para casar, não a queria e, aqueles que a queriam, ela não os queria, porque eram pobres, era muito difícil de aturar, queria mandar nas outras criadas e criados e, de verdade, fazia só o que queria!
A Maria Joana, era cozinheira por gosto, não queria outros trabalhos e, tinha muito jeito para a cozinha, sendo ela a cozinheira da casa, mas metia-se em todos os assuntos, relacionados com os trabalhos internos do Monte, só não se metia com a lavradora velha que, impunha muito respeito!
Nos trabalhos da sementeira andavam cerca de doze homens que, nessa altura trabalhavam nas terras perto do Monte, então, de madrugada deixavam as panelas de barro com as sopas de grão, feijão, ou couve para a Maria Joana cozinhar ao lume, tinha de olhar por elas, se ferviam, se tinham caldo para não secar ou queimar e, temperar de sal e de azeite se fosse o caso e, arredar do lume quando estivessem cozidas!
Ao meio dia, os homens chegavam à casa dos ganhões, uns andavam a de comer, outros não, migavam pão para uma tigela de barro, deitavam as sopas por cima do pão, comiam tudo e deixavam a tigela e as panelas para a Maria Joana lavar, para servirem à noite ou no dia seguinte, era sempre a mesma rotina!
Quando a sementeira estava a meio, a Maria Joana desapareceu do Monte do Seixo, mas depressa se soube do seu paradeiro, tinha ido à Aldeia de Cabeça de Carneiro, visitar a mãe, já idosa, porque tinham vindo dizer-lhe que, ela estava nas abaladas! Era verdade que, a ti Maria Rosa estava muito doente mas, longe das abaladas, no entanto, a Maria Joana ficou com a mãe mais tempo do que esperava!
Os jornaleiros da herdade do Seixo continuaram a ir jantar (almoçar) e alguns a cear (jantar) ao Monte, as sopas que, na ausência da Maria Joana, eram cozinhadas pela ti Apolónia, uma mulher de Montes Juntos que, também cozinhava bem, mas não tão bem como a Maria Joana com a mão mais pesada para o sal, dando mais sabor às sopinhas! Alguns homens, enquanto comiam, iam fazendo os seus comentários, diziam que, as sopas faziam diferença e desejavam que a Maria Joana voltasse depressa, porque tudo estava pior, até a lavagem da loiça fazia diferença, oh se fazia, alguns estavam desconfiados que a tigela deles, não era lavada por esta cozinheira!
Um dia, a conversa ficou acesa até que, o escamel do Monte, não se conteve e saiu em defesa da ti Apolónia, dizendo que, a loiça agora era bem lavada, a Maria Joana é que nunca a lavava! Alguns jornaleiros não gostaram do que ouviam, troçaram dele e comentaram: Então não se vê a loiça bem lavadinha, pela Maria Joana, até brilha! Porém, o escamel continuou: É como lhe digo, a Maria Joana não lava a loiça, assim que vocês viram as costas põe as tigelas todas no chão, dá um assobio dobrado, chama os cães e são eles que lambem as tigelas, ficam tão bem lambidas que até brilham, deve ser da baba deles, do piloto é de certeza! Depois, é só guardá-las e vocês comem nelas, não avistam a água!
Não sejas mentiroso Miguel! Gaiato dum cabresto, olha do que havia de se lembrar, para meter nojo à gente! Deixa que, quando ela voltar de Cabeça de Carneiro e souber disso, arranca-te as orelhas e põe-te na rua! Oh se põe!
Ah não acreditam em mim? Então, quando ela voltar, depois do jantar (almoço) fingem que se vão embora para o trabalho, mas ficam aí atrás do cabanão, assim que ela assobiar aos cães, vocês vão ver com o seus olhos os cães a lavar a loiça!
Os homens voltaram ao trabalho e, o tema da conversa nessa tarde foi a lavagem da loiça pela Maria Joana, não acreditavam no Miguel, mas ao mesmo tempo tinham dúvidas, assim, pelo sim pelo não, combinaram que iam tirar isso a limpo!
Passados dois dias, a Maria Joana já estava no seu posto de trabalho, os jornaleiros, ao meio dia, lá estavam a jantar (almoçar), quando acabaram, fingiram que iam embora, mas ficaram atrás de um cabanão de onde viam a porta da casa dos ganhões e, viram logo a Maria Joana a colocar as tigelas na rua, em fila, quando acabou, meteu dois dedos na boca e deu um assobio dobrado! Apareceram logo os cães do Monte que, começaram a lamber as tigelas com sofreguidão até ficarem a brilhar! A Maria Joana, veio apanhá-las, para as guardar, mas já o ganhão, o ti Bento estava na sua frente a questioná-la:
Ti Bento: Olha lá, Maria Joana, tu não tens vergonha? Isto é coisa que se faça?
Maria Joana: Oh ti Bento, que conversa é essa? Veja lá como fala comigo! O que é que eu fiz de mal?
Ti Bento: Ainda perguntas? Assistimos todos à lambedura dos cães e sabemos que fazes sempre isto! Ou não te lembras que nunca lavas a loiça, são os cães que a lavam!
Maria Joana: Ah é isso? Então e qual é o mal? Quantas vezes eu já comi em tigelas lambidas por cães e gatos, nunca me fez mal nenhum! Olha se estão finos!
Ti Bento: Pois olha, se tu comes nas tigelas lambidas pelos cães e gatos, a gente não! Ficas a saber que vou fazer queixa ao lavrador!
Maria Joana: Oh ti Bento, vá, vá, mas já vai tarde, ele já sabe há muito tempo! Deixe-se disso e vão mas é trabalhar, senão, eu é que vou contar ao meu padrinho que me ofendeu e, me faltou ao respeito!
Ti Bento: Quem nos faltou ao respeito foste tu, mas deixa lá, Deus não se vai esquecer disto!
A Maria Joana já não respondeu, deu uma gargalhada e seguiu para casa!
O ti Bento e os outros jornaleiros foram para o trabalho, comentando o sucedido e jurando que faziam uma pirraça (partida), para lhe servir de lição!
Uns diziam: Oh ti Bento e se lhe pusermos um lacrau na cama?
Ti Bento: Não, isso é de mais, mas merecia e que ele lhe picasse no tal sítio!
Oh ti Bento, e se lhe enchermos a cama de formigas rabitas?
Ti Bento: Não, mas era isso que ela merecia e que lhe picassem no tal sítio!
Oh ti Bento, e se lhe enchermos a cama de escravelhos mal cheirosos, ou de gafanhotos, ou então um rato, um rato é que era bom! Diziam outros!
Ti Bento: Não, mas ela merecia e que o rato lhe roesse no tal sítio!
Deixem lá isso comigo, a parir de agora, bico calado!
Então, o que lhe fazemos ti Bento? Diga lá! Perguntaram todos!
Já lhe disse que acabou a conversa, bico calado, um dia vão saber! Disse o ti Bento!
A partir dali, mais ninguém falou no assunto!
A pirraça à Maria Joana, parecia estar esquecida, porque, devido às circunstâncias só no ano seguinte se concretizou!
Como o ti Bento, tinha uma irmã, a ti Antónia do Seixo que, era criada lá no Monte e conhecia o caso da lavagem da loiça pelos cães, ele pediu-lhe para o ajudar a fazer a pirraça à Maria Joana , mas tinha de ser em grande segredo, porque se os lavradores soubessem, podiam ser despedidos!
A irmã do ti Bento fazia tudo pelo irmão e, prontificou-se a ajudá-lo, combinaram que ela ia pôr na cama da Maria Joana, debaixo da roupa, um saco da ração cheio de favas secas, quando elas tivessem na maior força de brotoeja (alergia), ela abafava o saco e ia batendo a roupa da cama para sair o pó que causava a brotoeja e deixava-o estar lá o máximo de tempo possível, sem ninguém desconfiar de nada, muito menos a Maria Joana e os lavradores!
A ti Antónia do Seixo, nem hesitou, disse-lhe logo que fazia isso, era só saber o dia que a Maria Joana estivesse algumas horas fora do Monte e, assim foi!
Na dia em que as favas estiveram abafadas na cama da Maria Joana, à noite mal se deitou e começou logo a sentir uma comichão infernal, não demorou e teve de se levantar, começou a coçar, coçar, coçar, até arranhar a barriga e ficar em sangue! Ainda pensou ser brotoeja, mas tinha a certeza que nesse dia, não tinha estado em nenhum lugar onde havia favas ou cevada, por isso, veio-lhe à ideia que seria alguma moléstia não identificada que se tinha pregado no sangue! Passou a noite em pé a coçar a barriga e, de manhã, não estava melhor, já tinha a barriga inchada! Uma criada foi dizer à lavradora velha o que se passava com a Maria Joana! A lavradora deu ordens para a levarem até ela, olhou as manchas vermelhas, os arranhões da coçadeira e disse: É brotoeja, podes ir!
A Maria Joana, foi tratada com vinagre e outras mesinhas e, começou logo a melhorar, deu voltas e mais voltas à cabeça a tentar lembrar-se onde tinha estado para apanhar a brotoeja, mas não conseguiu encontrar nenhuma explicação, nem desconfiou de nada!
Passaram uns dias e, na noite do baile em Montes Juntos, como sempre, o casão estava cheio e, também lá estavam os criados e criadas do Monte do Seixo, incluindo a Maria Joana! Nesse tempo, nos intervalos das danças quem tinha jeito ia ao centro do casão a cantar ou declamar poemas, geralmente quadras, era um momento muito apreciado e aguardado por toda a gente!
O ti Bento, era um dos poetas populares cujos versos eram muito apreciados, cantava e declamava quadras em todos os bailes, também, nessa noite, lá estava ele a declamar e a cantar várias quadras, por fim, fixou os olhos na Maria Joana que, estava sentada na fila da frente e cantou a seguinte quadra:
Viva a nossa cozinheira!
Pela loiça bem lavada!
Apanhou uma coçadeira!
Que ficou de barriga inchada.
Quando o ti Bento terminou, ouviu-se, imediatamente, uma gargalhada geral e, um grande burburinho no casão do baile, eram as pessoas que, ainda não sabiam o caso da loiça da Maria Joana lambida pelos cães a inteirarem-se da situação, toda a gente ficou a saber e, começaram a surgir tantos comentários que, as Maria Joana teve de se ir embora mais cedo do baile, sobre grande chacota!
O ti Bento fez justiça, a Maria Joana, sofreu grande humilhação, deixou de frequentar os bailes durante algum tempo, perdendo a oportunidade de se mostrar a eventuais pretendentes! Ainda foi fazer queixas do ti Bento ao padrinho, mas este, sabendo como ela era, não lhe deu ouvidos!
A Maria Joana, nunca soube como apanhou a brotoeja e acabou por casar dois anos mais tarde, já com trinta anos, mas com um homem viúvo, pai de dois filhos e, não era rico, aconteceu tudo ao contrário do que ela tanto procurava,mas de forma errada! Depois, ainda foi mãe de dois filhos, mas parece que, nunca foi muito feliz devido à sua maneira de ser que, nunca mudou, até ao fim dos seus dias.
Fim 

Texto: Correia Manuel 

O Monte do Seixo em Capelins, era neste lugar 



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