segunda-feira, 3 de outubro de 2022

A lenda da Taberna do Monte do Escrivão, em Capelins

 A lenda da Taberna do Monte do Escrivão, em Capelins

Ao cair da noite de quarta - feira do dia 2 de Maio do ano de 1810, o Ti Miguel da Serra entrou em sua casa no Monte do Escrivão, com a habitual saca de serapilheira às costas e, o pau de defesa que, arrumou atrás da porta, vindo do trabalho na herdade da Talaveira! Os seus filhos mais novos já estavam com um olho fechado e outro aberto, denunciando muito sono, mas a larica (fome) era tanta, que não conseguiam fechar o outro olho, sob pena de irem de barriga vazia para a cama, porque, enquanto o ti Miguel não chegasse a casa, ninguém se sentava à banca para cear (jantar). 
A ti Maria Domingas, sua mulher, arredou a panela das sopas de grãos do lume e preparou as colheres, o rodilho (trapo para limpar a boca e as colheres, mas coletivo), o pão e o barranhão (tijela grande, de barro)! O ti Miguel, tirou a navalha do bolso das calças e começou a migar (cortar pequenas fatias de pão) para dentro do barranhão, contadas uma a uma, ao mesmo tempo que ia nomeando o nome dos destinatários, seis para o Manoel, cinco para a Rosa, dez para mim e, por aí, não podia haver desperdício, porque havia falta de tudo! 
A ti Maria despejou as sopas da panela de barro para cima do pão e, começaram logo a comer, todos de dentro do barranhão, porque não existiam pratos! 
Depois de sossegarem um pouco  o estômago, a ti Maria  meteu conversa com o marido: 
Ti Maria: Miguel, tenho uma conversa para te fazer!
Ti Miguel: Mau, mau, Maria! Pela tua cara, cheira-me a "fezes"! 
Ti Maria: Oh homem, não são "fezes" nenhumas, se não te agradar o que te vou dizer, acaba-se logo a conversa! 
Ti Miguel: Está bem, Maria! Vou comendo, diz lá o que me queres dizer! 
Ti Maria: Há muito tempo que ando a pensar nisto, mas ainda não tinha dito nada, porque queria saber, tudo bem sabido, agora já sei graças á nossa comadre Mariana, mas ela também tem andado a estudar algumas coisas que não sabia lá muito bem, mas agora já sabemos as duas! 
Ti Miguel: Oh mulher, então a conversa mete a comadre Mariana, mete estudos e o quê mais? Mas vá, diz lá, senão está quase na hora de deitar! 
Ti Maria: Oh Miguel, eu não sei como te dizer isto homem! Tu sabes que nos fartamos de trabalhar e a nossa vida não medra, mal ganhamos para comer! Então, eu pensei,  pensei, qual seria a maneira de melhorar a nossa vida, até que me lembrei de uma coisa e fui logo contar à nossa comadre Mariana, e ela disse-me para não olhar para trás e falar logo contigo, antes de alguém daqui se lembrar disto e passar-nos à frente! 
Ti Miguel: Oh Maria, se nunca mais me dizes o que queres, decerto que nos passam à frentes, diz lá que coisa é essa que tu pensaste! 
Ti Maria: Não sei o que vais pensar, mas eu pensei em abrirmos uma taberna aqui no Monte do Escrivão, o que dizes Miguel? 
Ti Miguel: Eh Maria, apanhaste-me de surpresa, nem sei o que dizer, mas tu achas algum jeito nisso? 
Ti Maria: Acho, sim Miguel! Acho eu e a nossa comadre Mariana! A irmã dela tem uma taberna lá em Santiago e foi por isso que desafogaram a vida! A comadre Mariana também me disse que nos ajudava a começar o negócio e vai comigo à Câmara a Terena tirar a licença e a comprar o vinho, a aguardente, umas onças de tabaco, livros de papel para enrolar os cigarros e fósforos! E olha, ela sabe fazer licor para depois vendermos na nossa taberna e até já me ensinou a mesinha para o vinho não azedar! 
Ti Miguel: Não sei, não sei Maria! Vou pensar melhor nisso e, amanhã logo se vê o que vamos fazer!  
Ti Maria: Está bem homem! É o que tu quiseres! Se não achares jeito, não se abre a taberna e acabou-se!
Mal acabaram a ceia (jantar), as crianças foram a correr para a cama, uma esteira de buinho no chão, que era muito melhor que os sacos de serapilheira cheias de palha que muitos tinham de usar para dormir! O ti Miguel e a ti Maria, já não demoraram muito em apagar a candeia, porque tinham de poupar o azeite e, também se deitaram, porque às quatro da manhã já o ti Miguel tinha de estar em pé e às cinco lá no Monte da Talaveira!
No dia seguinte, durante a ceia, voltou a conversa da taberna da ti Maria! O ti Miguel, aproveitou para, durante o dia, falar com alguns compadres lá no trabalho e, todos lhe disseram que fazia ali muita falta, e deram-lhe força, porque a taberna em Capelins de Cima ficava muito longe e perdiam muito tempo no caminho! O ti Miguel ficou quase convencido, mas continuava com  dúvidas e medo de se ir meter numa naquilo que não conhecia e nem dinheiro tinham para começar o negócio! Porém, a ti Maria dava-lhe força, lembrando sempre a ajuda preciosa da comadre Mariana, acabando por o convencer, mas a conversa entre eles, sobre a taberna, prosseguia! 
Ti Miguel: Eh Maria, tenho muito medo disto, mas se tu dizes que a comadre Mariana nos vai ajudar, então, trata lá disso! Mas não sei se fazemos a taberna aqui na casa de fora, ou se faço aí um cabanão! O que dizes mulher? 
Ti Maria: Oh homem, já tenho tudo tratado, a taberna tem que ser aqui na casa de fora, é onde são as tabernas! Agora, para começarmos, a comadre Mariana empresta-nos uma banca grande que tem ali e não lhe faz falta, para pôr os copos em cima e aviar o vinho e a aguardente, depois, se isto der, lá para a frente,  logo fazes um balcão com umas tábuas e uns pregos! 
Ti Miguel: Está bem, Maria! Então e como seguras aqui o vinho sem azedar? 
Ti Maria: Oh Miguel, está descansado, já sei o que tenho de fazer! Se ele der sinal de azedar, se começar a criar laço por cima, leva uma colher de sal e uma pinga de água e aguenta-se até o vender! Mas, mesmo sem esse sinal, leva sempre uma pinga de água, por isso, estás a ver, o vinho cresce sempre e isso é tudo ganho! Olha Miguel, vai já dizendo a novidade lá no trabalho! Ora, hoje é quarta-feira, então, se não houver nenhuma  desgraça, abrimos a taberna no sábado que vem!    
Ti Miguel: Pronto, está bem, amanhã podes ir tratar disso lá a Terena, com a comadre Mariana! 
A ti Maria foi a correr, combinar com a sua comadre Mariana, como deviam fazer a volta, combinaram tudo e, no dia seguinte, depois da ti Maria entregar os filhos à comadre Josefa, partiram na burra da comadre Mariana para Terena! 
Foram à Câmara tratar da licença da taberna, seguindo logo para a casa do ti Jesuíno ajustar as mercadorias que tinham de levar! O ti Jesuíno ao ver duas mulheres sozinhas ainda se começou a alarvar, mas levou logo nas orelhas, a ti Mariana era muito esperta e deu-lhe logo para trás, disse-lhe o que queriam e pediu o orçamento, avisando para não se alargar, senão ficava ali tudo, seguiam para o Alandroal e nunca mais lhe compravam ali nada! O ti Jesuíno não queria perder uma cliente promissora e, recuou nos seus intentos, mudando de estratégia, como tinha muita experiência desse negócio disse-lhe para comprar sempre bebidas das melhores e, decerto nunca se ia arrepender! Apartaram o que precisavam, ele fez-lhe um preço muito bom e ainda levaram mercadoria fiada e vasilhame emprestado! Fizeram um bom negócio com o ti Jesuíno e voltaram para o Monte do Escrivão!
Na sexta-feira, prepararam tudo, fizeram licores, lavaram os copos de lata (folha de flandres), que compraram ao ti Jesuíno, duas dúzias de dois tamanhos, para a aguardente e licores e para o vinho! Arranjaram um jarro de barro com a capacidade de um litro para, com ele, encher os copos do vinho, um alguidar de barro para lavar os copos, um quadro feito em buinho para pousar os copos depois de lavados, uma bolsa em pano para meter o dinheiro e mais algumas coisas, que deram trabalhar o dia todo na preparação para o grande dia da abertura, sábado logo de madrugada, hora do mata bicho! 
O ti Miguel levantou-se à mesma hora de sempre e, perto das cinco da manhã, meteu a saca de serapilheira  ao ombro e quando ia para sair de casa a ti Maria chamou-o: 
Ti Maria: Miguel, anda cá! 
Ti Miguel. O que queres mulher, não vês que está na hora de ir andando! 
Ti Maria: Hoje é o dia de abrir a nossa taberna, mas quero que sejas tu a inaugurá-la, chega aqui! 
A ti Maria encheu um copinho de aguardente  e disse-lhe para o beber e desejar boa sorte à sua aventura! 
O ti Miguel assim fez e exclamou: Eh mulher, que aguardente tão boa, nunca bebi nada assim! 
Assim, estava inaugurada a taberna do Monte do Escrivão no sábado, dia 5 de Maio de 1810! 
Ti Maria; Olha Miguel, ainda bem que confirmas que a aguardente é muito boa e é para ser sempre assim, podemos ganhar menos em cada copo, mas o ti Jesuíno disse-me que vendemos muito mais e, assim se vendemos mais, logo  ganhamos mais! Se gostaste dela, bebe lá outro copinho, homem! 
O ti Miguel nem se fez rogado, mas foi avisado pela ti Maria: Olha  que é só hoje, para inaugurar a taberna, não é para te habituares! 
O ti Miguel concordou e, saiu a caminho do trabalho! Ou porque já ia um pouco atrasado ou devido ao efeito da aguardente levou menos tempo na viagem até ao Monte da Talaveira, apressando-se a contar aos compadres, que já tinha inaugurado a taberna da ti Maria Domingas, e tinha bebido uma aguardente tão boa, que nunca tinha encontrado uma igual, passando o dia a falar dela, aguçando ainda mais a vontade dos outros, em ir o mais depressa possível, comprovar o que o ti Miguel lhe contava! 
A taberna do Monte do Escrivão, ganhou muita fama, devido à qualidade da aguardente, do licor e do vinho que a ti Maria Domingas vendia e, aqui acodiam homens de todo o lado, os lavradores das terras de Capelins eram obrigados a comparecer no escritório do Escrivão da Casa do Infantado e das herdades do Reino e alguns não dispensavam uns copinhos de aguardente e de vinho, e até vinham de além Guadiana, das Vilas de Cheles e de S. Bento da Contenda, como se fosse uma romaria! A ti Maria, manteve sempre a qualidade das bebidas na sua taberna e, foi devido a isso que teve muito sucesso! A sua vida e da família ficou desafogada em menos de um ano e, a taberna manteve-se aberta no Monte do Escrivão durante muitas gerações, tornando-se uma lenda nas terras de Capelins.
Na realidade, existiu uma taberna no Monte do Escrivão, da qual, ainda hoje se fala nas terras de Capelins.

Fim 

Texto: Correia Manuel

Monte do Escrivão - Capelins 


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