segunda-feira, 3 de outubro de 2022

A lenda do capitão de cavalos, Pedro Gonzaga

 A lenda do capitão de cavalos, Pedro Gonzaga

Na madrugada do dia 6 de Março do ano de 1836, em pleno inverno, o Sacristão da Igreja de Santo António de Capelins e, os seus vizinhos acordaram com o choro da uma criança! O Sacristão deu um salto da cama e, em ceroulas, correu a abrir a porta da sua residência, deparando-se com um cesto de verga com alguma roupa, dentro do qual, se ouvia uma criança a chorar! Naquele instante, chegaram as vizinhas com o Padre António Laurentino, porque o choro era tão alto e aflitivo, que se ouvia em todas as casas da Igreja! O sacristão pegou no cesto e entraram todos para casa, porque tinha chovido durante a noite, o frio da madrugada era muito e estavam mal vestidos, foram tirando a roupa do cesto e no fundo estava uma criança muito bonita, gelada e esfomeada, olharam uns para os outros à procura de explicações, mas não encontraram respostas para o que estava a acontecer, comentaram logo que tinham de aquecer a criança e dar-lhe de mamar! A mulher do sacristão estava na cama mas acompanhava a conversa e tinha uma criança, que tinha nascido havia de poucos dias, pediu logo para a levarem até ela e deitou-a muito chegadinha e, logo começou a aquecer e a procurar a mama!  Mamou e pouco depois, já dormia profundamente de barriguinha cheia e quentinho! 
O Padre António Laurentino, o Sacristão e os vizinhos  não sabiam o que fazer com a criança, nenhum dos moradores tinha  possibilidades de ficar com ela, porque estavam cheios de filhos e, ao Padre não lhe era permitido ficar com uma criança, mesmo sendo enjeitada, como parecia ser aquele caso! Então, pensaram em apresentar o assunto ao Juiz dos Orfãos de Terena e, com uma carta do Padre, o Sacristão partiu imediatamente para a casa do Juiz, chegou muito cedo, mas ele já andava no quintal e, como eram conhecidos foi logo recebido! O Sacristão contou-lhe o que se estava passando e, entregou-lhe a carta onde o Padre António Laurentino lhe pedia para assim que pudesse ir à Igreja de Santo António de Capelins, porque não sabiam o que fazer com uma criança enjeitada! O Juiz disse ao Sacristão para esperar, que ia preparar-se, a albardar a burra e depois iam juntos! Ainda lhe perguntou se era um menino ou uma menina, mas o Sacristão não tinha a certeza, depois lembrou-se que, pelo choro devia ser um menino!  
O Juiz não se demorou nos preparativos e seguiram pela Villa Velha, Monte Branco, Faleiros, até à Igreja de Santo António de Capelins! 
Ao chegarem, o Juiz reuniu-se com o Padre na casa Paroquial, fez muitas perguntas, tomou notas sobre o acontecimento e, o Padre teve de responder:
Juiz: O senhor Padre não sabe quem pode ser a mãe da criança? Não se lembra se alguma das suas paroquianas estava de esperanças e que pudesse ter a criança por estes dias?
Padre: Para lhe ser franco, senhor Juiz, não tenho pensado noutra coisa toda a manhã e, não vejo quem possa ser a mãe dessa criança! Até pode ser alguma mulher que anda aí no meio desses matos! Não consigo, não consigo lembrar-me, por agora!
Juiz: O senhor Padre, não ouviu se alguma das suas paroquianas andava por aí mal encaminhada?  
Padre: Não, senhor Juiz, não ouvi nada e olhe que eu sei tudo o que se passa na minha Paróquia, não preciso de perguntar nada a ninguém, nem me meto onde não sou chamado, mas contam-me tudo e, de verdade, nos últimos tempos, não ouvi nada!
Juiz: Então, nesse caso, não desconfia quem seja a mãe dessa criança?
Padre: Até agora, não desconfio de ninguém, mas se ela for daqui, da minha Paróquia, depressa vou saber! Tudo se sabe, tudo se sabe!
Juiz: Então, veja lá isso senhor Padre! O mais depressa que puder, porque temos de dar andamento ao processo! Olhe, já que estou aqui, se estiver de acordo, vamos já fazer o batizado e, vamos decidir o que fazer com ela, por agora!
Padre: Estou de acordo com tudo, senhor Juiz, temos de resolver esta situação!
Chamaram o Sacristão e, perguntaram-lhe como estava a criança!
Sacristão: O menino está bem, está a dormir, quando o recolhemos estava gelado, cheio de fome e, parece que estava muito cansado, tenho cá na minha ideia que veio de longe, durante a noite, depois deixaram-no aqui e seguiram!
Juiz: Essa agora! A sua ideia não está fora de jeito! Mas se foi assim, sabiam que a sua mulher tinha a filha recém nascida e leite para ele!
Sacristão: Ah pois, deviam saber, senão como é que a criança calhava à gente, com tantas portas por aí!
Juiz: Sendo assim, não pode ser de muito longe, talvez lá de Terena, ou de Santiago, mas alguém daqui, deu-lhe as informações! Em Terena, investigo eu e também falo com o Pároco de Santiago, mas agora vamos lá falar sobre o que fazemos com a criança!
O Juiz virou-se para o Sacristão e perguntou-lhe:
Juiz: Então, a sua mulher tem leite para as duas crianças?
Sacristão: Ter, até tem, a menina mama pouco, até tem leite a mais!
Juiz: Nesse caso, podem ficar com o menino até eu ver o que posso fazer lá em Terena, ou se encontro um sítio para onde o mandar?
Sacristão: A gente podia, mas temos tantos filhos e isto está tão mau! Não sei, não sei!
Juiz: Era só um tempo, homem! E eu ajudo!
Padre: Já sabe, eu também ajudo em tudo o que puder!
Juiz: Está a ver! Vamos olhar pelas crianças e pela sua mulher, ela  tem de comer melhor, para dar de mamar a duas crianças e também lhe dou alguma roupa!
Sacristão: Então, se for assim, vou dizer à minha mulher!
O Sacristão saiu a correr e não demorou a confirmar que, se fosse só algum tempo e com ajudas, ficavam com o menino!
Juiz: Então, vamos batizá-lo, eu posso ser um dos padrinhos, temos de arranjar outra pessoa!
Sacristão e Padre: Se não estiver aí mais ninguém, pode ser um de nós!
Naquele momento, ouviram o rodar de uma carroça na rua da Igreja, o Padre tirou a cabeça de fora da porta da casa Paroquial para ver quem era, ao mesmo tempo o transeunte, o ti Domingos Ramos, que morava no Monte do Meio, um homem muito devoto, assim que viu o Padre mandou logo parar o macho: Aí, oh! Tirou o chapéu, apeou-se e foi cumprimentar o Padre!
Ti Domingos: Bom dia senhor Padre! Bons olhos o vejam! 
Padre: Bom dia, Domingos! Então, vais com muita pressa?
Ti Domingos: Não, não vou, senhor Padre! Então queria que eu fizesse aí alguma coisa?
Padre: Queria, queria, Domingos! Queria que fosses padrinho de um menino que apareceu esta madrugada aí à porta do Sacristão e, está aqui o Juiz para o batizarmos, só precisamos que assines o assento, pode ser?
Ti Domingos: Oh senhor Padre, sabe que sou um bom Cristão, nunca podia negar uma coisa dessas, é um filho de Deus, vamos lá!
O menino foi batizado e, o Padre António Laurentino, com o acordo de todos, deu-lhe o nome de Pedro, o nome do apóstolo São Pedro que, nasceu Simão, na Galileia, assim, o nome do menino ficou Pedro!
Depois do batismo, cada um seguiu o seu caminho e, o Pedro ficou entregue ao Sacristão e à sua mulher, em companhia dos seus cinco filhos, era mais um! Toda a gente ajudava com o pouco que tinham, os padrinhos vinham visitá-lo periodicamente e, saber se estava tudo bem com ele! O Pedro era o enlevo de toda a gente e, já existiam muitas pessoas interessadas em o perfilhar!
O Padre António Laurentino, tentou tudo, no sentido de saber quem seria a mãe do Pedro e, embora tivessem surgido muitos boatos, muito falatório, não conseguiu saber nada de concreto!
O Juiz e a sua mulher vinham muitas vezes à missa na Igreja de Santo António, também para visitarem o afilhado, que estava cada vez mais engraçado e ajudavam a família do Sacristão! Estas visitas eram cada vez mais frequentes, porque a afeição pelo Pedro estava a aumentar! Um dia, quando iam de volta para Terena, o Juiz disse à mulher:
Juiz: Oh mulher, cada vez gosto mais do Pedro, está muito lindo e parece que gosta de nós, daqui a pouco tem dois anos, já pensei em o perfilharmos e levá-lo para nossa casa, o que dizes? 
Mulher: O que digo? Olha, ainda não te tinha dito nada, mas eu sinto o mesmo e, por mim já o levava hoje!
Juiz: Ah sim? Então, lá em casa, vamos falar isso muito a sério!
Mulher: Então vamos! Eu já pensei em tudo, por isso é contigo!
O Juiz e a sua mulher no Domingo seguinte, contaram ao Padre António Laurentino, qual era a sua intenção e, pediram a sua opinião! O Padre disse-lhe que não podia ficar mais contente com a sua decisão e, que decerto era o melhor para a criança! Passado cerca de um mês, o processo estava tratado, o Pedro foi perfilhado pelo padrinho Luiz Gonzaga e foi para sua casa em Terena! De início, estranhou um pouco, mas depressa se habituou ao que era bom! Na Igreja de Santo António ficaram muito tristes, principalmente a Família do Sacristão, mas todos achavam que era o melhor para ele! 
O Pedro brincava com os, agora irmãos, já adolescentes, para os quais, rapidamente se tornou a sua perdição, por isso vivia muito feliz e com muito aconchego!

Os anos foram passando, o Pedro recebeu uma boa educação, estudou num Colégio em Estremoz e, sempre que lhe perguntavam que profissão queria ter, respondia: "Militar de cavalaria” e, antes dos vinte anos já estava alistado no  Regimento do Reino, em cavalaria, como era o seu sonho! O Pedro aplicou-se de corpo e alma, esteve em muitas praças, prestando serviços relevantes ao reino e, aos trinta e seis anos já era capitão de cavalos na praça de Estremoz!
Ainda na sua infância, o Juiz e sua mulher contaram ao Pedro, a história da sua aparição à porta do Sacristão, assim, ele conhecia bem o seu passado, mas nunca se conformou não saber quem era a sua mãe biológica e, porque motivo ela o abandonou! 
O Pedro adorava Capelins, ia muitas vezes ao Monte do Meio, visitar o padrinho, o ti Domingos Ramos e família, onde era muito bem recebido e ficava alguns dias com eles, nunca falava do seu passado, mas sentia-se muito bem em Capelins, tinha a sensação que era ali que pertencia e que a sua mãe não estaria longe e por vezes o observava!
O Pedro casou com uma rapariga da Villa de Terena, filha do Capitão Mor das Ordenanças que, era de Estremoz, também, por isso, continuou sempre muito ligado a esta Villa, onde tinha residência e, com a família, iam passar os dias de licença concedidos pelo Regimento! 
A gratidão do Pedro às pessoas que o acolheram na fria madrugada do mês de Março de 1836 e, ao lugar, era imensa, então, como sabia a data em que se realizavam as Festas de Santo António, foi falar com o Padre Manoel Maria Fernandes e pediu-lhe autorização para fazer guarda de honra a cavalo, a Santo António no dia da Procissão, 3 de Setembro de 1870! Assim, nesse dia, apresentou-se com a farda de gala do Regimento, montando um lindo cavalo branco em companhia de um sargento e dois praças e, quando a Procissão saiu da Igreja, os quatro cavaleiros, dois a dois, colocaram-se ao lado do andor de Santo António, acompanhando a Procissão, apresentando um cenário indescritível, logo à frente quatro homens de saiotes e mitras na cabeça com tufos de fitas e guitarras nas mãos, dançavam freneticamente em frente ao andor, seguindo sempre de recuas sem nunca virarem as costas ao andor, um quadro que emocionou os paroquianos que estavam presente e, eram muitos! 
A Procissão, durou quase três horas, fez o percurso habitual entre os cruzeiros das seis Irmandades, depois de Santo António entrar na sua Igreja, o Capitão Pedro Gonzaga foi cumprimentar o Padre Manoel Fernandes e, as pessoas uma por uma, como se fossem todas da sua família, demorou-se algum tempo pelo recinto da Festa, falando com toda a gente e, já de noite, regressaram à Villa de Terena com o sentimento do dever cumprido!
O seu abandono à porta do Sacristão, foi um segredo tão bem guardado que, nunca se soube quem era a sua mãe, uns diziam que era uma, outros diziam que era outra, outros diziam que ele sabia quem era, mas na verdade, o Pedro era filho de pais incógnitos! 
Durante muitos anos, o Capitão Pedro Gonzaga, continuou a visitar Capelins, também, porque, sentia que estava ali a sua verdadeira Família, as suas raízes, a sua identidade, como ele dizia e, porque foi padrinho de batismos de muitas crianças e de matrimónios, de todos os que o convidavam em Santo António de Capelins de onde era natural.

Fim 

Texto: Correia Manuel

Igreja de Santo António de Capelins


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