A lenda da misteriosa moura Amara, cabreira do Uádiana
Conta a lenda que, as terras de Capelins, desde a pré história foram povoadas por vários povos, mas devem-se aos romanos as maiores quantidades de testemunhos da sua presença, existindo atualmente ruínas de várias Vilas (Vilae Romanas), assim como, algumas minas e necrópoles dessa época, sendo, esses lugares, deixados pelos romanos, mais tarde, ocupados pelos mouros, onde construíram os Montes dos lavradores mouros, das herdades desta região.
No final do verão do ano de mil cento e vinte, chegou junto à foz da atual Ribeira de Lucefécit e do Rio Guadiana, atual Azenhas D'El-Rei, um jovem com um rebanho de cabras vindo pelo Guadiana acima, desde terras do Al Gharb, Al Andalus.
O jovem admirou tanto a beleza do lugar, os mantos verdes da vegetação, o azul transparente do céu, o amarelo cintilante do sol, o chilrear das aves que, sublimavam as maravilhas da natureza, pelo que, não resistiu em ficar por ali.
Enquanto as suas cabras pastavam nas margens do Rio Guadiana, começou a cortar ramos de árvores e arbustos para construir um abrigo para ele e para os seus animais.
Quando andava nesse trabalho, ouviu o ladrar aguerrido do seu cão, sinal que, alguém estava chegando. Olhou, e na sua frente estava um rapaz, aparentemente da sua idade, com cerca de vinte e poucos anos que, esboçou um sorriso e levantou o braço em sinal de cumprimento, sendo correspondido com o mesmo sinal, mas sem sorriso. O dono do cão que ladrava, olhou para o animal e o mesmo, ficou, imediatamente em silêncio, percebendo que não existia perigo.
O rapaz que estava chegando aproximou-se, apresentou-se, disse que se chamava Faruk e que, também guardava cabras, e começou a fazer perguntas, como se chamava o recém chegado, de onde vinha, quantas cabras tinha e, ofereceu-se para o ajudar a fazer um abrigo, mas não obteve nenhuma resposta verbal, o outro, respondia através de linguagem gestual dando a entender que não percebia a sua língua e, afastava sempre o olhar na tentativa de esconder a sua fisionomia, os seus olhos.
Como no Reino de Badajoz, onde estas terras pertenciam, falavam-se três línguas, o árabe, moçárabe e ladino, então o Faruk ainda tentou algumas palavras que sabia, nas outras línguas, mas sem sucesso.
O Faruk, um pouco agastado, porque achava que ele o percebia e não queria conversa, acabou por desistir, despediu-se com um aceno e seguiu pela Ribeiro de Lucefécit acima, nessa época chamada de Udialuiciuez, mas ia desconfiado que estava perante um mistério.
No dia seguinte, Faruk, assim que soltou as suas cabras, foi descendo a dita Ribeira com ideia de ir desvendar o eventual mistério que o atormentava.
Quando chegou à Foz, avistou as cabras do misterioso rapaz, mas com receio do cão, foi indo muito devagarinho, no entanto, o cão que guardava as cabras, há muito que tinha dado pela sua presença, mas ignorou-o, porque já o conhecia do dia anterior e sabia que vinha por bem.
Quando o Faruk desceu do outeiro por cima da Foz, ouviu chapinhar na água, pensou logo que era o rapaz a tomar banho, mas ao virar-se para o lugar de onde ouvia os movimentos na água, ficou pasmado, atirou-se para dentro de uma moita de buínho e com cautela abriu uma fresta para observar sem ser observado, e na sua frente estava uma linda rapariga a tomar banho de cabelos negros compridos, completamente nua, estava descansada, porque sabia que o seu cão não deixaria aproximar ninguém.
A rapariga, vestiu a roupa lavada que tinha ao lado, atou o cabelo com uma fita, pôs um lenço na cabeça e enfiou um gorro na cabeça.
O Faruk nem respirava, com receio que ela o descobrisse, ficou escondido dentro da moita até ela se afastar pelo Guadiana abaixo e, só depois se esgueirou pela Ribeira acima, deu a volta ao outeiro pela direita, para fingir que estava chegando e foi aparecer em frente dela que, não deu logo pela sua presença, por andar atarefada a cortar ramos de árvores para as cabras, e o cão pressentia que era amigo nem reagia, só quando o Faruk a cumprimentou, se apercebeu da sua presença.
O Faruk, continuou a fazer as mesmas perguntas do dia anterior, mas não obtinha respostas, a rapariga disfarçada de rapaz, apenas fazia gestos indicando que não o percebia.
O Faruk, não arredou pé, pediu-lhe o machado para a ajudar, mas foi recusado com um gesto brusco que o fez perder a cabeça e, não se conteve em lhe dizer que já conhecia o seu segredo, já sabia que não era nenhum rapaz, era uma rapariga.
Ela ficou assustada, mas o Faruk contou-lhe que, sem querer, a tinha visto a tomar banho, lá na Ribeira, mas podia estar descansada, ele nunca lhe faria mal, nem deixaria que alguém o fizesse, estava ali para a ajudar em tudo e, era capaz de dar a vida por ela! O Faruk já estava apaixonado por ela.
A rapariga, ficou mais calma, um pouco emocionada, com a certeza que podia confiar nele. Então, começou a falar, porque na verdade, falavam a mesma língua, ela pediu-lhe desculpa e disse-lhe que, há muito tempo que andava disfarçada de rapaz como defesa, porque tinha receio que lhe fizessem mal, se soubessem que era rapariga. O Faruk, compreendeu e continuou a fazer perguntas:
Faruk: Bem! Então, já sabes o meu nome, agora, gostava de saber o teu!
Rapariga: O meu nome é Amara!
Faruk: Amara, Amara? Gosto muito! E o que significa?
Amara: O meu nome significa rapariga do Uádiana, porque eu nasci numa Aleia no Al Gharb junto ao Uádiana!
Faruk: És de muito longe daqui! E que idade tens?
Amara: Tenho vinte e dois anos! E tu?
Faruk: Eu também tenho vinte e dois anos! E tens namorado lá na tua Aldeia?
Amara: Não, não tenho! Nunca tive tempo para isso! A minha vida e da minha família era toda dedicada às nossa cabras! E tu tens namorada?
Faruk: Não, não tenho! Estava à espera de a encontrar! Então, e agora a tua família já não se dedica às cabras? Ficaram para ti?
Amara: Sim, as cabras ficaram para mim, porque os meus pais e os meus cinco irmãos, partiram todos, foram chamados por Alá, só fiquei eu, dois tios e oito primos e primas, mas não sei se ainda cá estão todos, porque há quase dois anos que ando com as minhas cabras nas margens do Uádiana e nunca mais voltei à minha aldeia.
Faruk: Sinto muito! E porque motivo partiu a tua família? Alguma doença?
Amara: Sim, foi uma moléstia! Levou quase toda a gente da minha aldeia e os que não levou, como eu, fugiram de lá!
O Faruk mostrou muita consternação pelo que tinha sucedido à família de Amara e, mais uma vez, a Amara ficou emocionada, aumentando a simpatia para com ele.
O Faruk ajudou-a a cortar ramos de árvores e arbustos para fazer um abrigo mais afastado do Guadiana, porque, durante o inverno, não podia ficar naquele lugar que, decerto era inundado pelas grandes cheias.
À noitinha, o Faruk despediu-se da Amara, porque teve de regressar a casa com as suas cabras, mas ia tão contente, assobiando e cantando que, foi logo notado pelos pais e irmãos que, existia alguma novidade, então foi obrigado a contar-lhe o que se passava.
Ele contou tudo e a família ficou com a certeza que o Faruk estava perdido de amor pela cabreira do Uádiana e, disseram-lhe que, tinha de a convidar para ir a sua casa, porque queriam conhecê-la.
O Faruk disse-lhe que, ainda mal a conhecia, mas se ela por ali ficasse, decerto que a convidava para ir lá a casa.
Nessa noite, o Faruk não conseguia adormecer, não lhe saía da cabeça a figura da Amara, completamente nua a tomar banho. Nunca tinha visto uma mulher nua, nem imaginava tanta perfeição. Então, teve a certeza que ela seria a sua esposa e começou a fazer planos do casamento com ela e a morar num casebre no lugar onde a conheceu, já que, eram terras do seu pai o senhor dessa herdade.
Nessa noite, a Amara, também não conseguia adormecer, imaginando o seu enlace com o Faruk e a morar ali naquele maravilhoso lugar.
Na manhã seguinte, ainda cedo, já o Faruk estava junto da Amara, levou comida para repartir com ela e começou logo a trabalhar a seu lado.
A partir daquele dia, o Faruk e a Amara estavam sempre juntos, guardavam as cabras, tiravam-lhe o leite, faziam queijos e sempre que tinham tempo, reforçavam o curral e construíam choças resistentes ao frio, às chuvas e a eventuais ataques de animais selvagens, afastadas do Guadiana, mas à noite, contra a sua vontade, o Faruk tinha de regressar com as suas cabras para casa, onde chegava sempre muito triste, por deixar a Amara sozinha na sua choupana, embora bem guardada pelo seu fiel cão.
Os pais e irmãos do Faruk reparavam na sua tristeza e sabiam a causa, então, a pedido da mãe e dos irmãos, o pai teve uma conversa com ele:
Pai: Oh Faruk, vamos lá conversar! O que se passa contigo filho? Andas doente, ou o teu mal tem a ver com a tua amiga cabreira?
Faruk: Oh pai, não vou mentir, a verdade é que quanto mais conheço a Amara, mais perdido de amor estou por ela! Parece que a conheço de toda a minha vida e não tenho dúvida que a amo ao ponto de dar a minha vida por ela!
Pai: Oh Faruk, estou a ver que é um caso muito sério! Então, já lhe disseste o que sentias por ela?
Faruk: Ainda não pai! Eu acho que ela também gosta de mim, mas posso estar enganado e depois ela pode ficar zangada e não me querer lá perto dela e até abalar daqui!
Pai: Pois é filho, mas tens de correr esse risco, não podes continuar a sofrer assim, tens de falar com ela e se estiveres enganado dás outro rumo à tua vida! Se ela gostar de ti, como achas que gosta, não se vai zangar!
Faruk: Está bem pai, de amanhã não passa sem dizer à Amara o que sinto por ela e de saber o que ela sente por mim!
Pai: Então, faz isso filho, faz isso! Já sabes que estamos todos contigo!
O Faruk, depois da conversa com o pai, ficou mais aliviado, após a ceia deitou-se, adormeceu e passou a noite a sonhar que estava casado com a Amara, era pai de muitos filhos, a morar numa linda casa junto ao Guadiana no lugar onde existiam os currais e as choças dela, eram donos de muitas cabras e viviam todos muito felizes.
Acordou de madrugada, levantou-se, fez as rotinas habituais, com os irmãos tiraram o leite às cabras e depois de tudo tratado soltou-as, foi descendo a Ribeira e depressa se juntou à Amara que já o esperava.
Cumprimentou-a e reparou que ainda estava mais linda. Ela respondeu ao Faruk com um sorriso que ele desconhecia e o arrepiou, mas ao mesmo tempo o despertou para o que vinha pronto a fazer e estava no momento certo para lhe dizer o que sentia por ela:
Faruk: Amara, quero ter uma conversa contigo, mas tens de me prometer que não te zangas comigo! Prometes?
Amara: Sim, prometo, seja a conversa que for, prometo que nunca me vou zangar contigo! Nunca seria mal agradecida, pelo que tens feito por mim!
Faruk: Pois, é esse o problema! Quero que me respondas o que tiveres de responder e que não te sintas obrigada a responder o que não sentes, por achares que tens alguma dívida para comigo!
Amara: Oh Faruk, deixa-te dessa conversa e diz lá o que tens a dizer, juro que vou ser sincera na resposta!
Faruk: Amara, quero dizer-te que, estou perdido de amor por ti! Nunca conheci uma rapariga com tanta beleza, o teu olhar tem o brilho das estrelas e a tua doçura o reflexo do luar, eu quero ficar contigo para sempre!
Amara: Oh Faruk, não fico zangada, não! Mas devem ser os teus olhos que me vêem assim! Eu não mereço tanta admiração! O que queres que eu responda?
Faruk: Então, já sabes o que sinto por ti, só quero que me digas se também gostas de mim!
Amara: Sim, Faruk! Desde o primeiro momento que te vi, que gosto de ti, mas não tinha a certeza se gostavas de mim!
Faruk: Então, agora já tens a certeza que te amo e quero casar contigo! Assim que tivermos as coisas aqui organizadas vamos a minha casa para conheceres a minha família e para eles te conhecerem!
Amara: Sim, está bem, mas não tenho roupa para me apresentar na casa da tua família, antes tenho de ir comprar roupa a uma feira!
Faruk: Olha, daqui a quinze dias há uma feira em al-Julumaniya (Juromenha), os meus irmãos ficam aqui a guardar as cabras e nós vamos comprar a tua roupa e outras coisas, depois no fim do mês que vem há uma grande feira em al-Bash (Elvas), também vamos!
Amara: Está bem Faruk, tenho alguns dirrãs guardados, posso comprar a roupa e mais algumas cabras!
Faruk: Então, está combinado! E a partir de hoje somos namorados?
Amara: Sim, Faruk, somos namorados, mas ficas a saber que, enquanto não casarmos não ficas aqui na choça, nem vai haver nada entre nós!
Faruk: Sim, não pensei numa coisa dessas! Continuamos como até agora, mas temos de tratar do nosso casamento e depressa!
O Faruk, nessa noite entrou em casa tão contente que todos perceberam qual tinha sido a resposta da Amara! Mas ele confirmou que, a partir daquele dia eram namorados!
No final do verão de mil cento e vinte e um, o Faruk e a Amara casaram-se, foi um casamento muito simples, no entanto, teve boda! Ele recebeu algumas cabras dadas pelos pais que juntou às dela, formando uma grande cabrada, guardadas pelos dois, mas ela começou a dedicar-se aos trabalhos junto e dentro das choças, como tirar o leite às cabras, fazer e cuidar dos queijos e tratar de outros animais que compraram nas feiras e alguns foram oferecidos pelos pais do Faruk, como, galinhas, patos, perus e outros.
A sua vida estava muito bem organizada e, naturalmente, a família começou a crescer com o nascimento dos filhos.
O rebanho de cabras também crescia dia a dia e os currais e casebres aumentavam, constantemente no lugar onde é hoje a praia das Azenhas D'El-Rei.
A atividade agro pecuária do Faruk e da Amara continuava a crescer, tinham muitas dezenas de trabalhadores por sua conta, entre os quais, alguns familiares, tornando-se grandes lavradores desta região.
Como a ameaça dos cristãos era cada vez maior, ele decidiu mandar construir um castelo, num lugar que fosse de boa defesa e a escolha caiu no outeiro do pombo na margem do rio Guadiana dentro das suas terras, para onde se mudou com a família e as suas gentes de trabalho, onde ficaram a residir até à chegada dos Cristãos que os fizeram partir para as terras da moirama, não sem antes deixar a sua linda filha a mais velha, encantada no castelo do Faruk, porque, teve receio de, ao passar o rio Guadiana, com grande cheia, fossem alcançados pelos homens do Geraldo Sem Pavor e a tornassem sua escrava.
O castelo do Faruk foi arrasado pelos portugueses, já na centúria de 1600, mas continua lá a moura encantada, assim como, o tesouro do seu desencantamento.
Fim
Texto: Correia Manuel
Lugar do castelo da Vila de Ferreira
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