segunda-feira, 3 de outubro de 2022

Memórias do achado dos Santos da Igreja de Cheles num pego do rio Guadiana

Memórias do achado dos Santos da Igreja de Cheles num pego do rio Guadiana 

Em meados da década de mil novecentos e setenta, começou a ouvir-se nas terras de Capelins que tinham roubado os Santos da Igreja da vizinha de além Guadiana, Villa de Cheles! 
Foi um acontecimento que, não dizendo diretamente respeito às gentes das terras de aquém Guadiana, não podia deixar de ser repudiado pelo ato maldoso e inqualificável, sentido como se fosse nas terras de Capelins! 
Passou-se algum tempo, mas o caso nunca esteve esquecido, a todo o momento o assunto era falado, ouvia-se, constantemente, a pergunta, se os Santinhos da Igreja da Vila de Cheles já tinham aparecido? 
Cada pessoa comentava conforme o seu pensamento e, eventual entendimento da matéria! 
Muitas pessoas, estavam convencidas que tinha sido obra de alguma rede de ladrões de Arte Sacra e, decerto já estavam muito longe, mas estavam enganados, porque estavam mais perto do que pensavam! 
Nas terras de Capelins existiam muitos pescadores, talvez devido à proximidade com o Rio Guadiana e com a Ribeira de Lucefécit, desde que tivesse algum gosto pela pesca, alguns apetrechos e tempo, podia apanhar peixes, entre eles estavam o ti Fura e o ti Miguel Aninho que, de quando em quando se juntavam para, a partir do barco que o ti Fura tinha na foz da Ribeira de Lucefécit no Rio Guadiana, lançar os tresmalhos (método de pesca que utiliza uma rede de forma retangular com um, dois, ou três panos mantidas em posição vertical por cabos de flutuação), os quais, quase atravessavam o rio e, apanhavam peixes muito graúdos! 
O ti Fura, tinha muita prática em remar e ao mesmo tempo lançar os tresmalhos, mas era mais fácil se esse trabalho fosse feito por duas pessoas, por isso, por vezes convidava pessoas que gostavam de pesca para o acompanhar e ajudar naquela tarefa, entre os quais o ti Miguel Aninho que, também era pescador, mas usava uma atarrafa (rede), armadilhas artesanais ou à lapa, apanhando, geralmente peixes mais pequenos, mas dava para vender alguns a clientes certos e para abastecimento da sua casa, onde viva com a sua mãe a ti Aninhas! 
Quando o ti Miguel tinha encomendas de peixes para caldetas, maiores do que o peixe para fritar, estava combinado com o ti Fura em ir ter com ele ao lugar onde tinha o barco, ajudava-o a lançar e a recolher os tresmalhos, depois dividiam o peixe, como cada um tinha os seus clientes, não existia concorrência entre eles! 
Um dia, quando o ti Fura chegou junto ao seu barco, nas Azenhas D' El-Rei, já lá estava sentado, à sua espera, o ti Miguel Aninho, cumprimentaram-se e o ti Fura ficou muito contente por nesse dia ter companhia na faina! 
Comeram uma bucha, colocaram dois tresmalhos dentro do barco e o ti Miguel pegou logo nos remos, saíram da margem direita da Ribeira de Lucefécit, junto às Azenhas D' El-Rei, passaram ao lado direito do grande pego de Santa Catarina, o ti Fura fez-lhe alto e pediu-lhe para encostar o barco a um arbusto, pegou na ponta da corda do início do tresmalho, escolheu um ramo forte e atou a corda, fez sinal ao ti Miguel para seguir, devagarinho, e foi deixando cair o tresmalho na água, quando o mesmo chegou ao fim, fez sinal para parar, atou a corda do segundo tresmalho ao que já estava lançado e fez sinal para seguir, continuando a lançar o segundo à água, quando verificou que já restavam poucos metros de tresmalho, pediu ao ti Miguel para seguir na direção de outro arbusto e encostar, amarrou bem a corda e ficou o trabalho do lançamento dos tresmalhos completo, deixando a parte central do rio Guadiana barrado aos peixes! 
Esta, era a primeira parte do trabalho, agora, tinham de esperar pelo menos duas a três horas, para poderem começar a recolher para dentro do barco, os tresmalhos e o peixe que, eventualmente ficasse preso no emaranhado das redes! 
Quando terminaram, estavam mais próximo da margem esquerda do rio Guadiana do que da oposta, como tinham levado a atarrafa no barco o ti Fura perguntou ao ti Miguel: 
Ti Fura: Olha lá Miguel, como sabes, o peixe que apanharmos nos tresmalhos é quase todo grande, vê lá se queres levar alguns mais miúdos para fritar? 
Ti Miguel: Quero sim, Fura, tu já sabes como isto é, se levo peixes grandes, querem pequenos e, se levo pequenos, querem dos grandes, assim levo dos dois pode ser que acerte! 
Ti Fura: Então, olha, como temos de esperar, vamos além ao lado espanhol, há lá uma cascalheira onde há muitas bogas, lançamos a atarrafa duas ou três vezes e apanham-se quatro ou cinco quilos! 
Ti Miguel: Vamos embora!
O ti Miguel, era o remador de serviço, foi remando com calma, porque tinham muito tempo! 
Quando chegaram perto da margem esquerda do rio Guadiana, prepararam a tarrafa e como dois rapazes desafiaram-se sobre qual, apanhava mais peixes em cada lançamento! 
Lançaram a tarrafa meia dúzia de vezes e já tinham peixe em abundância, ficando, parcialmente empatados naquela disputa! Como já não tinham nada para fazer e sendo ainda cedo para recolher os tresmalhos, ficaram um pouco à conversa sentados dentro do barco, até que o ti Miguel decidiu dar uns mergulhos para ver se o tempo passava mais depressa e o ti Fura encostou-se no barco com intenção de passar pelas brasas! 
O ti Miguel por ali andou mergulhando e quando o ti Fura estava a pegar no sono apareceu ele à tona de água muito aflito, agarrou-se ao barco e disse-lhe: 
Ti Miguel: Eh Fura! O pego está cheio de pessoas mortas lá no fundo! 
Ti Fura: Cala-te Miguel! Bateste com a cabeça em alguma pedra e ficaste taralhoco! Ou estás a brincar?
Ti Miguel: Oh Fura, não estou a brincar, eu vi bem as pessoas, até estão de olhos abertos! 
Ti Fura: Oh Miguel, isso pode lá ser, então as pessoas não vinham acima? 
Ti Miguel: Podem não vir acima! Então, se estiverem presas a pedras com arames? Até podem estar! 
Ti Fura: Mau, mau! Não estou a gostar nada disto! Então, fazes-me mergulhar sem me apetecer nada! Vê lá se estás a brincar Miguel!
Ti Miguel: Então mergulha lá tu, Fura! Eu juro que estou a falar verdade! 
O ti Fura, não estava convencido, pensava que era brincadeira do ti Miguel para não o deixar dormir, mas pela cara dele, aterrorizado, pressentia que alguma coisa de anormal se passava, então saltou do barco e mergulhou no pego, mas como não sabia o que podia encontrar, abordou o fundo pelas laterais, foi-se aproximando cada vez mais até verificar que não eram pessoas, mas se não eram pessoas, pensou que eram bonecos, porque a cara e os olhos eram como os das pessoas, andou em volta até que lhe mexeu e ficou com a certeza que eram Santos e, se eram Santos só podiam ser os que tinham desaparecido da Igreja de Cheles! 
Depois de confirmar bem que eram Santos, o ti Fura subiu rapidamente na direção do seu barco, onde o ti Miguel estava aconchegado, à espera de notícias e disse-lhe: 
Ti Fura: Eh Miguel, tu nem imaginas o que nós achamos! 
Ti Miguel: Então, não são pessoas mortas? 
Ti Fura: Não, Miguel, não são pessoas, quando eu te disser, tu nem acreditas! 
Ti Miguel: Ai valha-me Deus, Fura! Diz lá, se não são pessoas, o que são? 
Ti Fura: Olha, são Santos! Se são Santos, só podem ser os que roubaram da Igreja de Cheles! 
Ti Miguel: Eh Fura! E agora o que fazemos? 
Ti Fura: Agora não sei! Se vamos dizer à Guarda Civil que achamos os Santos, ainda nos podemos meter em trabalhos! Até nos podem prender para averiguações! Mas não podemos deixar aí os Santinhos e para os tirarmos e deixar aí fora de água, podemos estar metidos em trabalhos, na mesma! 
Ti Miguel: Pois, estou a ver que estamos metidos num grande sarilho! Pensa lá bem, o que devemos fazer! 
Ti Fura: Olha Miguel, quem não deve, não teme! Fazemos assim, deitamos esse peixe à água, ainda está vivo, porque não sabemos o tempo que podemos levar nisto, depois se correr bem, apanhamos mais! Tu vais com o barco para águas portuguesas e eu vou lá a Cheles contar à Guarda Civil o que na verdade se passou, não tenho medo, porque conheço lá muita gente e sabem bem que não somos pessoas para roubar os Santos, depois, só vens com o barco se eu te chamar, é sinal que está tudo bem! 
O ti Fura partiu logo para a Vila de Cheles, dirigiu-se ao quartel da Guarda Civil e contou aos guardas de serviço, que lhe parecia ter achado os Santos da Igreja de Cheles e tudo o que ele e o ti Miguel Aninho tinham feito até ao momento do achado! Os Guardas ouviram com atenção, registaram a participação e não duvidaram de uma palavra, depois deslocaram-se com o ti Fura em dois carros ao lugar onde estavam os Santos! 
Quando chegaram, o ti Fura, chamou o ti Miguel para falar com os Guardas, o qual repetiu tudo igual ao que o ti Fura tinha declarado e depois tiraram os Santos do fundo do pego, colocaram-nos nos carros da Guarda, agradeceram e seguiram para a Vila de Cheles! 
O ti Fura e o ti Miguel, não atrasaram a faina, lançaram a tarrafa quatro ou cinco vezes e ainda apanharam mais peixe do que tinham antes! A seguir, foram recolher os tresmalhos e tinham tanto peixe como nunca tinha acontecido!
A notícia do aparecimento dos Santos, depressa se espalhou na Vila de Cheles, toda a gente queria saber, onde estavam e como os tinham encontrado!
Os Guardas foram contando que, tinham sido dois pescadores de Capelins, por coincidência, quando mergulharam os tinham encontrado no fundo de um pego no Rio Guadiana e divulgaram os seus nomes, bem conhecidos em Cheles! Todos os Cheleiros lhe prestaram o seu agradecimento e, sempre que lá se deslocavam eram recebidos como heróis! 
Bem Hajam! Ti Fura e ti Miguel "Aninho".
Fim 

Texto: Correia Manuel 

Igreja em Cheles - Espanha 




Sem comentários:

Enviar um comentário

Povoado de Miguéns - Capelins - 5.000 anos

  Povoado de Miguéns -  Capelins - 5.000 anos Conforme podemos verificar nos estudos de diversos arqueólogos, já existiam alguns povoados na...