terça-feira, 4 de outubro de 2022

Memórias dos camalhos e das tarimbas para dormir

 Memórias dos camalhos e das tarimbas para dormir

O serão numa das tabernas de Capelins, no mês de Julho da década de 1960, começou cedo, porque o fecho não podia ser muito tarde, uma vez que, a licença de porta aberta era só até às vinte e duas horas.

Os fregueses, eram quase sempre os mesmos, lá passava um ou outro a comprar um mata ratos ou uma onça de tabaco e um livro de mortalhas, bebia um copo de vinho ou de aguardente e seguia o seu caminho à procura da cama, do camalho na esteira de buinho, ou da tarimba, porque levantavam-se muito cedo.

O grupo de rapazes ocupava a primeira mesa a seguir à porta, do lado direito  e, estavam alguns homens encostados ao balcão em conversa animada e bebendo uns copos de vinho ou de aguardente e, ao fundo da taberna andavam os jogadores do xito, fazendo muito barulho.

Os rapazes, como habitualmente, bebiam umas cervejas minis e as suas conversas eram banais sobre o que tinham feito durante o dia, mas no grupo estava um rapaz que tinha feito a ceifa e tinha andado a dar molhos, por conta de um seareiro do Carrão, então a conversa encaminhou-se para esse trabalho, os outros rapazes pediram-lhe para contar como o tinha feito e onde comia, o que comia e onde dormia, e como sempre ele aceitou contar tudo.

Assim que o rapaz começou, entrou o ti Bate Estacas que, não cumprimentou ninguém, olhou os fregueses um a um para se inteirar quem estava e fdepois chegou-se para perto da mesa dos rapazes, os quais, cumprindo a tradição da Aldeia, perguntaram-lhe o que queria beber, e ele apenas abanou a cabeça, negativamente, e um dos rapazes, para o picar, disse-lhe: - Então, se não quer beber nada, o que quer daqui? 

- Deves ter muito a ver com isso! O meu camalho está muito quente e o barulho que fazem aqui, não me deixam dormir!  Respondeu o Ti Bate Estacas!

O rapaz continuou a explicar o que comia quando andou na ceifa e no carrego dos molhos de cereais no Carrão, como andava a “de comer” era a mulher do patrão que fazia a comida, eram sopas de tomate com toucinho e carne fritos, ou com um ovo, migas com toucinho frito e uns bocadinhos de chouriça frita, sopas de grãos com toucinho e com carne ou de azeite, sopas de feijão, sopas de beldroegas com um ovo e, às vezes com queijo de cabra, gaspachos com azeitonas e depois em cima pão com queijo ou com um bocadinho de toucinho e de carne, e outras açordas, todas muito boas, só que era tudo por conto, ou seja, não tinha direito a comer à vontade e às vezes sentia grande galga (fome), mas tinha de se aguentar, porque não podia ter lá comida dele, mesmo que tivesse lá algum queijo, depois não tinha pão, mas não podia dizer que comia mal, o trabalho é que era tanto, que lhe dava fome.

Quanto à dormida, quando andava a ceifar longe do Monte, dormia lá nas courelas, acabavam de ceifar quase de noite e começavam a ceifar de madrugada, ainda mal se via, não dava para ir dormir muito longe, assim que ceava (jantava) fazia o camalho no chão, logo ali onde ia o eito, em cima de uns pastos e de troços (caules dos cereais) que por ali apanhava, metia a manta em cima e estava o camalho feito, e tinha um cobertor para se tapar de madrugada, como estava muito cansado dormia que nem um anjo.

 Quando andava a dar molhos dormia lá na eira, o camalho era muito melhor, não era tão duro, porque tinha palha por baixo, mas tinha lá uma tarimba na cabana da mula, podia ser preciso, se viesse uma trovoada durante a noite mudava-se para a tarimba, como alguns rapazes não sabiam, o que era uma tarimba, o rapaz explicou que as tarimbas eram diferentes de camalhos, eram feitas com paus e travessas de tábuas, havia algumas mais bem feitas do que outras, o colchão, geralmente, eram duas sacas de serapilheira cheias de palha e depois levava uma manta por cima e se tivesse frio tapava-se com um cobertor, ou dava a volta à manta, mas no verão não era preciso. 

O rapaz continuou a explicar que as tarimbas, não eram ao nível do chão, como os camalhos, tinham pés em madeira, ou metiam-se uns caixotes por baixo, assim, quem lá dormia, já não apanha a humidade ou água do chão, que fazia mal ao reumatismo, eram mais usadas no inverno, porque no verão toda a gente dormia na rua em camalhos, e estavam quase sempre em cabanas, atrás ou ao lado das bestas, e também nas cabanas de bois, choças, cabanões ou nas casas dos ganhões, ou casa da malta nas herdades, onde dormia a malta (criados).

O Ti Bate Estacas, nem pestanejava a ouvir a conversa dos rapazes, parecia aceitar a explicação do rapaz, mas aproveitou uma pausa e disse: 

- Vocês não não sabem o que são camalhos nem tarimbas, se passassem o que passei! E com esta me vou para o meu camalho!  

Os rapazes começaram a rir ainda na sua presença e, foi só rir o resto do serão até se ouvir a palavra mágica do taberneiro: - "rua" e cada um foi para suas casas.

Fim 

Texto: Correia Manuel


Sem comentários:

Enviar um comentário

Povoado de Miguéns - Capelins - 5.000 anos

  Povoado de Miguéns -  Capelins - 5.000 anos Conforme podemos verificar nos estudos de diversos arqueólogos, já existiam alguns povoados na...