terça-feira, 4 de outubro de 2022

A lenda da moura encantada na Fonte da Lesma, em Capelins

 A lenda da moura encantada na Fonte da Lesma, em Capelins 

No ano de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil duzentos e trinta, no Domingo, dia vinte e quatro do mês de Março, os cavaleiros vilãos da cidade de Évora, reconquistaram a Vila de Odialuciuez (Terena), situada entre as Vilas de Juromenha e de Monsaraz que, sem fortaleza, o pequeno regimento que a defendia, cedeu facilmente às forças da cristandade depois de uma escaramuça que produziu algumas mortes e alguns feridos! 
Os cavaleiros vilãos, tomaram as medidas de segurança e acamparam junto à Ribeira de Odialuciuez (Lucefécit), para tratar os feridos, descansar, organizar a logística e formar os grupos que, na madrugada seguinte, tinham de investir para sul, pelo vale da dita Ribeira e do Rio Odiana (Guadiana), para dominar pequenas bolsas de resistência concentradas nos Montes dos lavradores, apoiadas pelas tropas dos mouros instalados na Fortaleza mourisca de Monsaraz! 
Durante a noite, os lavradores mouros residente a sul de Odialuciuez foram informados pelos espiões que, os cristãos tinham tomado aquela Vila e, preparavam-se para invadir as suas terras, pelo que, podiam fugir para Juromenha ou Monsaraz, ou podiam ficar e negociar com os cristãos, tornando-se seus servos!
 Alguns senhores mouros, durante a noite, abandonaram os seus Montes e fugiram com as famílias para aquelas fortalezas, onde, ainda havia segurança, porém, outros ali nascidos, em terras já de seus avós, ficaram a tentar a sua sorte! 
De madrugada, as forças cristãs saíram da Vila de Odialuciuez - Terena - e, cerca de duas horas de caminhada sem paragem, chegaram junto de um grande Monte, era o atual Monte do Escrivão, onde foram emboscados por um grupo de rapazes armados de varapaus, facas, espadas e outras armas artesanais, mas foram encostados às paredes pelos cavaleiros, desarmados sem ferimentos, apenas levaram alguns açoites e grandes puxões de orelhas, obrigando-os a contar-lhes tudo o que queriam saber sobre o rico lavrador mouro dono daquele Monte! 
Os cavaleiros vilãos ficaram a saber que, o lavrador não queria deixar o Monte onde tinha nascido, mas com receio que os cristãos fizessem mal à família, principalmente à filha chamada Aniza considerada a rapariga mais linda da região de Odialuciuez, à última hora, tinha decidido partir para a Vila e Fortaleza de Monsaraz! 
Os cristãos, ficaram a saber a que horas tinham partido e qual o caminho seguido na direção de Monsaraz e, os rapazes mouros  contaram-lhe que, por motivo de maior segurança, a caravana tinha descido o vale da Ribeira, pelas terras do lavrador, pela atual Talaveira e Roncão e, ao fundo viravam pelo caminho que o guerreiro mouro Azavel usava com os seus mil cavalos, quando descia de Badajoz, pelo vale do rio Odiana até Monsaraz!  
O lavrador mouro e a respetiva caravana levavam mais de duas horas de avanço, mas como o caminho estava muito mau, devido às grandes chuvadas de Abril, a sua marcha era muito lenta e quando chegaram à famosa Fonte do Amir (principe árabe), pararam a descansar e a abastecer daquela nobre água, não só por ser da melhor que existia na região, mas porque, já não podiam parar até Monsaraz! 
Quando estavam preparados para continuar, chegaram alguns espiões e criados do lavrador a informá-lo de que os cristãos estavam mesmo a chegar, já se ouviam os cascos dos seus cavalos e seria melhor render-se e negociar, do que encetar uma fuga que podia acabar em tragédia!  
O lavrador mouro começou por negar a rendição e mandou preparar os seus homens para receber os cristãos, mas disseram-lhe que era uma grande força, com homens bem armados e se não se rendessem, morriam todos, incluindo a sua família, mas se negociasse, podia ficar servo dos cristãos, mas só até que o exercito mouro do Califado de Córdova que vinha a caminho, os libertasse, ou em último caso, mais tarde podia ter a oportunidade de fugir para Monsaraz! 
O lavrador ficou uns instantes a pensar na proposta e achou que fazia sentido, mas naquele momento lembrou-se da sua linda filha Aniza que, decerto não seria respeitada por aqueles cães cristãos, ainda pensou em a esconder por ali, mas eles acabavam por a encontrar e seria pior, então, fez-se luz no seu pensamento, tinha de a encantar, depois, quando viesse o exército de libertação, seria desencantada e tudo voltava ao normal, não tinha dúvidas de que seria a melhor maneira da filha ficar livre das garras dos cristãos! 
 Com a aproximação dos cristãos, a pressão dos presentes subia cada vez mais, o lavrador chamou junto de si a mulher e a sua linda filha Aniza e contou-lhes o que estava a pensar, explicou-lhes que, perante a situação, não encontrava outra alternativa, elas olharam uma para a outra e, sem contestar, concordaram com a ideia! 
 O lavrador, apressadamente explicou à filha o que tinha de fazer quando fosse desencantada, entregava o tesouro que fazia parte do  desencantamento, o qual, ficava escondido, debaixo das pedras da Fonte do Amir e, se aquelas terras estivessem sobre o domínio dos cristãos, seguia, rapidamente para a moirama, caso contrário, ele encarregava-se de a mandar desencantar! 
A cavalaria cristã ouvia-se cada vez mais próxima, já tinham atravessado o atual Ribeiro do Carrão e, o lavrador começou a dizer as palavras mágicas, quando chegou o momento de escolher o animal ou objeto, no qual a filha devia ficar encantada, não conseguia encontrar nada à mão, mas viu uma lesma tão bonita, tão elegante, com os corninhos de fora a subir as pedras da Fonte do Amir e, como não podia esperar mais, disse à filha que ficava encantada naquela linda lesma e seria desencantada com dois beijos de um jovem pastor, a filha anuiu e desapareceu, quase ao mesmo tempo, surgiram os cristãos na sua frente, o lavrador caiu de joelhos em sinal de submissão e, só se levantou, quando um oficial que comandava o regimento o mandou levantar, afastaram-se da Fonte e o oficial fez-lhe algumas perguntas, às quais, ele respondeu com muita humildade e prometeu ser seu servo, deixando-o convencido que lhe dizia toda a verdade e estava submisso aos cristãos! 
Alguns cavaleiros cristãos, procuraram a sua filha, como não a encontravam, tentaram saber do seu paradeiro, ele respondeu que, tinha seguido diretamente por outro caminho, para a Fortaleza de Monsaraz e, decerto, já lá estava! Os cristãos, não ficaram muito convencidos, mas perante a atitude do oficial que, não o questionou sobre isso, não  insistiram com mais perguntas e ficaram por ali! 
Depois de tudo tratado, naquele lugar, alguns cavaleiros e infantes, voltaram com o lavrador e a caravana para o Monte - do Escrivão - onde foram efetuadas as negociações, quanto à posse das terras, dos gados e do tributo a pagar ao futuro senhorio,  ficando o lavrador a explorar as terras mediante um pesado tributo e, depois de bem abastecidos de boa comida, a maioria dos cavaleiros vilãos seguiram para outros Montes, sempre com os olhos na Fortaleza de Monsaraz, onde estava um grande regimento mouro que podia sair ao seu encontro a qualquer momento! 
O lavrador mouro, aceitou todas as condições que lhe foram impostas, não só, por não ter outra alternativa, mas na esperança de que seria por pouco tempo, porque, lhe diziam que o exército mouro do Califa de Córdova, devia estar a chegar, mas não chegou e, Juromenha, Monsaraz e toda a região do Odiana, logo a seguir, cerca de 1232, caíram nas mãos dos cristãos, por isso, o lavrador mouro e a sua família, desesperados, fugiram para as terras da moirama, senão, seriam servos dos cristãos, o resto das suas vidas! 
A sua linda filha Aniza ficou para trás, encantada em lesma na Fonte do Amir, onde esteve durante muitos séculos, não por falta da presença de jovens pastores, mas devido ao animal em que estava encantada que, não cativava os rapazes a dar-lhe os dois beijos que ela lhes pedia, além de, ser uma lesma falante assustava os rapazes, obrigando-os a fugir da Fonte, muitas vezes sem encher o barril de água! 
A lesma, só podia sair do seu esconderijo no tempo tépido, porque, não suportava muito frio, nem muito calor, sendo mais uma desvantagem, reduzindo as oportunidades em fazer as propostas do seu desencantamento aos jovens pastores que ali se dirigiam à Fonte! 
Quando esta situação começou a ser falada pela região, ninguém acreditava nos rapazes, porque era impossível haver lesmas falantes e, diziam que era alguma feiticeira, ou invenção dos rapazes e a Fonte começou a ser conhecida pela "Fonte da Lesma"! 
Quando os rebanhos da serra da Estrela começaram a descer para as pastagens do Alentejo, na transumância, eram acompanhados por muitos rapazes que ajudavam os pastores, chegavam em Novembro e partiam em Março ou Abril, mas alguns rapazes, ou porque arranjavam cá namoradas, ou porque as suas famílias eram numerosas e muito pobres, passando muito mal, preferiam ficar por cá e, foi o que aconteceu com o Manel Catrino que, ficou de ajuda do pastor da herdade do Aguilhão! Como habitualmente, um dia o pastor mandou-o buscar água à Fonte da lesma, por ser muito boa, servia de mesinha, o Manel Catrino era um rapaz que andava sempre bem disposto, cantando ou assobiando por todo o lado, passou ao Porto do Aguilhão, por cima das passadeiras, desceu a Ribeira de Lucefécit e, assim que chegou à dita Fonte, ouviu uma linda voz que, era a da moura Aniza: 
Aniza: Bom dia, jovem pastor, não te assustes, eu não faço mal a ninguém, sou uma moura encantada numa lesma, chamo-me Aniza e tu como te chamas?
Manel Catrino: Olha, olha, já me tinham contado que andavam por aqui lesmas falantes e eu não acreditava, agora já acredito, eu sou o Manel Catrino, da Póvoa Nova, la da serra da Estrela, mas não sou pastor, sou o ajuda do pastor além do Aguilhão, então, agora que já nos conhecemos, diga-me lá, o que que vocemecê me quer? 
A moura Aniza sentiu que, tinha chegado o fim do seu encantamento, nunca nenhum rapaz lhe tinha respondido e, muito menos, se tinham prontificado a ouvi-la! 
O Manel Catrino sentou-se numa pedra da Fonte e com muita calma, ouviu o historial da vida da moura sem a interromper, só  assobiava em sinal de admiração pelo que ouvia, por fim, colocou-lhe algumas dúvidas sobre o desencantamento que ela rapidamente esclareceu e, sem mais perguntas, quando ela lhe disse que podia avançar para a beijaria, nem hesitou, ele que até beijava as ovelhas ronhosas, quanto mais uma lesma, deu-lhe os dois beijos com tanta sofreguidão entre os corninhos, que quase a engolia, naquele momento, ela transformou-se na mulher mais linda que o Manel Catrino alguma vez tinha visto na sua vida, ficou tão atarantado e assustado que caiu de costas, a moura entregou-lhe o tesouro e desapareceu entre os arbustos da Ribeira de Lucefécit! 
Quando o Manel Catrino se conseguiu erguer, meteu a mão no  tesouro para se certificar o que estava dentro do saco, deu umas chapadas com força nele próprio, para ter a certeza que não era um sonho e lembrou-se de ir procurar a linda moura, correu, correu, pela Ribeira abaixo até chegar ao Rio Odiana, ao pego de Santa Catarina, na esperança de a encontrar nas suas margens, ou a atravessar o rio, mas nunca mais viu sinais da linda moura Aniza! 
O Manel Catrino, ficou com as ideias baralhadas, não imaginava o que fazer com aquele tesouro, pensou em o levar para dividir com o pastor, mas em boa hora se arrependeu, porque, decerto,  ficava sem ele, então decidiu escondê-lo num lugar bem seguro debaixo de uns rochedos e, mais tarde com calma logo decidia o que fazer, escondeu o tesouro e foi encher os barris de água e seguiu para a herdade do Aguilhão, no outro lado da Ribeira, quando lá chegou com muitas horas de atraso, o pastor estava cheio de sede, deu-lhe uma surra tão grande que o deixou todo derreado e em grande sofrimento durante alguns dias, mas abriu-lhe os olhos, por pouco tinha contado tudo ao pastor, mas ele nem o deixou falar e essa surra, foi uma grande lição para o Manel Catrino! 
Quando melhorou, disse ao pastor que ia voltar para a serra da Estrela, porque, estava com muitas saudades dos pais e dos irmãos, o pastor fartou-se de rir na sua cara e disse-lhe que, se queria passar fome, podia ir, mas nunca mais ali punha os pés naquela herdade do Aguilhão, porque se ali voltasse seria corrido a pontapés, mas ele, tinha tanto medo do pastor e foi-se embora dali!  
O Manel Catrino, agora era um rapaz muito rico, dono de um tesouro, mas muito pobre, porque, não podia dispor dele, ninguém ia acreditar que o tinha recebido, honestamente devido ao desencantamento de uma moura, então, ficou pelas terras de Terena e de Capelins, o mais próximo possível do esconderijo do seu tesouro e, teve de andar mais de cinco anos em ajuda de gado e em trabalhos agrícolas, sempre, procurando saber a maneira de trocar o tesouro, ou parte dele, por dinheiro, para realizar o seu grande sonho, comprar uma herdade!  
Já senhor de si, conseguiu saber que, moravam uns judeus muito ricos, na Vila de Borba que compravam moedas de ouro, pratas, pedras preciosas e jóias, um dia foi procurá-los, mas não levou nada, disse-lhe que tinha umas coisitas, cordões e outras peças que lhe pareciam ser de ouro que tinha achado quando era pastor e como não lhe serviam para nada, queria vendê-las! Os judeus, ficaram de olhos arregalados e nem quiseram saber onde os tinha achado, disseram-lhe que os fosse buscar já, que ficavam com tudo! 
O Manel Catrino era muito fino, não teve pressa, quem esperou mais de cinco anos, espera mais um mês, pensou ele, e se o pensou, melhor o fez, só passados mais de um mês, com segurança, foi ao esconderijo onde estava o seu tesouro, escolheu algumas peças, meteu-as nos bolsos de umas ceroulas e montado na sua burra, voltou a Borba! Os judeus assim que o viram,  lembraram-se dele e apanharam as peças de ouro com as duas mãos para observar bem, e ficaram sem palavras, avaliaram as peças  por pouco mais de metade do seu valor, mas o suficiente para o Manel Catrino não acreditar no valor que ouvia, pelo que, nem regateou, não houve muita negociação, ele aceitou o que lhe ofereceram! Os judeus mandaram chamar o Tabelião da Vila de Borba para assistir ao negócio e ao pagamento, parte em dinheiro e outra parte numa moratória, uma escritura de juro, com o compromisso do pagamento no prazo de um mês! 
Depois de tudo tratado o Manel Catrino foi para Vila Viçosa e, dirigiu-se ao Tabelião dessa Vila para o ajudar na compra da herdade, foram ter com um Procurador que tinha algumas herdades para vender, com o qual, negociaram três herdades nas terras de Terena e Alandroal! 
Quando os processos da compra/venda das três herdades ficou resolvido, o Manel Catrino foi tomar posse das suas herdades e dos gados que tinham entrado no negócio e a conhecer os criados, feitores e, principalmente os pastores que tinham muita importância, era deles que dependiam os rebanhos e a boa produção, então, na sua última herdade, o feitor mandou chamar o pastor e explicou-lhe que estava ali o novo dono da herdade que queria ter uma conversa com ele, o pastor chegou de chapéu na mão, em sinal de respeito, o feitor anunciou o novo lavrador e o Manel Catrino estava de costas voltadas, a fingir que olhava para a propriedade, o pastor deu-lhe os bons dias e quando ele se virou, o pastor viu quem era e lembrou-se o que lhe tinha dito, que se algum dia, ele voltasse ali à herdade o corria a pontapés dali para fora, caiu de joelhos na sua frente a pedir-lhe perdão! O lavrador Manel Catrino, deu uns passos em frente e com muito respeito colocou-lhe a mão no ombro e disse-lhe para se levantar, estava perdoado e tudo esquecido, continuava a ser o seu pastor, porque, o mal que lhe tinha feito do passado já não tinha remédio e nunca era tarde para ele ser melhor pessoa! 
O pastor levantou-se, beijou-lhe a mão e disse-lhe que nunca mais esqueceria aquele gesto, compreendeu as palavras do Manel Catrino e prometeu-lhe que seria isso que ia fazer o resto da sua vida, e fez!
O Manel Catrino casou-se com uma rapariga muito pobre, já sua namorada antes de comprar as herdades, amavam-se muito, à qual, contou toda esta história e  depois aos filhos, mas nas terras de Capelins diziam que, a sua fortuna provinha da venda de um bocado da serra da Estrela que estava cheia de ovelhas, de uns tios que não tiveram filhos! O Manel Catrino e sua esposa a Catarina, como era normal nessa época, tiveram muitos filhos que foram lavradores nas terras de Terena e de Capelins e, donos de alguns Moinhos do Rio Guadiana e das Ribeiras de Lucefécit e do Azevel!
O Manel Catrino, continuou a cantar e a assobiar pelas suas herdades até ao dia em que foi prestar contas ao Senhor, sendo, nesse tempo, o homem mais opulento das terras de Capelins e de Terena! 
A Fonte da lesma, em Capelins, continuou a oferecer boa água, até ao dia em que foi submersa pelas águas da Albufeira do Grande Lago de Alqueva, que lhe usurpou a sua água e a sua história.

Fim 

Texto: Correia Manuel

A Fonte da Lesma fica nesta área. 


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