terça-feira, 4 de outubro de 2022

A lenda dos últimos moradores no Lugar de Ferreira

 A lenda dos últimos moradores no Lugar de Ferreira  

"Aos vinte e nove dias do mês de Abril de mil oitocentos e noventa e quatro anos, na Igreja Paroquial de Santo António de Capelins, foi baptizado um indivíduo do sexo masculino por nome José que nasceu à uma hora da noite do dia vinte e cinco do corrente mês e ano, filho illegítimo de Angélica Maria, sem profissão, paroquiana e moradora nesta Freguesia em Calados e de pai incógnito. Neto materno de Manuel dos Santos e de Maria Antónia e neto paterno de avós incógnitos. Foram padrinhos José Faustino, solteiro e, Domingas Maria, solteira, os quais todos sei serem os próprios. E para constar lavrei em duplicado este assento que depois de lido e conferido perante os padrinhos comigo não assinaram por não saberem escrever.

Em ut supra, Pároco João Manuel Queimado"

Assim nasceu e foi baptizado o patriarca da última Família a residir no Lugar de Ferreira da Vila de Ferreira, junto à atual Ermida de Nossa Senhora das Neves em Capelins! 

À criança descrita neste registo Paroquial, foi dado o nome do seu padrinho, José Faustino, porém, devido ao apelido popular, ou não, existente na sua Família, ficou conhecido em Capelins por ti José "Matuto"!

 A criança José "Matuto", desde muito cedo demonstrou alguma diferença em relação aos rapazes da sua idade, sentia a ausência da presença do pai que, embora fosse substituído pela figura do avô Manuel dos Santos, não evitou a sua rebeldia, senão revolta, por essa situação que, o marcou para a vida! 

A sua rebeldia não o livrou de ter de passar pelos mesmos caminhos percorridos por quase todas as crianças e, quando chegou aos seis ou sete anos de idade, teve de sair de casa para começar a aprender a ser ajudante de guardador de gado nas herdades da sua Freguesia e arredores!

O seu trabalho como ajudante de guardador de gado desenvolveu-se, quase sempre, nas imediações da Ribeira de Lucefécit e do Rio Guadiana, por onde era inevitável apascentar os gados por serem terras de boas pastagens e da existência de água na época mais sêca, por isso, ganhou grande afeição a esta região da Freguesia de Capelins! 

O rapaz José "Matuto" começou muito cedo a aprender, em simultâneo com a pastorícia, a arte da pesca, construía armadilhas feitas de canas e buínho e, também pescava à lapa, debaixo de pedras e buracos nos assudes dos Moinhos, nunca lhe faltava bom peixe para o seu gasto e, como pescava muito, começou a vender pelos Montes e a ganhar alguns tostões que, chegaram a ser superiores ao seu magro salário!

O moço José "Matuto", de estatura baixa, mas de alta temperatura, começou a perceber que era possível tirar o seu sustento daqueles cursos de água, sendo o patrão de si próprio, não recebendo ordens de ninguém, nem que tivesse de trabalhar mais, mas não suportava pressões de patrões ou manageiros! Assim, em vez de se dedicar aos trabalhos da agro/pecuária que aprendeu, optou por viver da pesca, caça, colheita de buínho, junça, recolha de frutos silvestres, cogumelos, peros bravos, uvas da Ribeira, cabos para instrumentos, lenha e outros! Trabalhava imenso, mas era por sua conta, por isso, não se importava, porque não andava a mando de ninguém! 

Com tanto trabalho pelas Ribeiras e Guadiana, José Matuto, tinha pouco tempo para diversões, como frequentar as tabernas, festas e bailes, onde, geralmente catrapiscavam as raparigas, deixando passar os aureos anos da mocidade sem dar por isso,  porém, um dia o relógio biológico despertou, tinha a idade de vinte e oito anos, decidiu que estava na hora de formar Família e, perdeu-se de amores por uma menina de vinte anos de idade, de seu nome Isabel Mariana, natural e moradora na mesma Freguesia de Capelins! 

No ano de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil novecentos e vinte e dois, numa Quarta-Feira, dia vinte e nove de Março, realizou-se o seu matrimónio na Igreja Paroquial de Santo António de Capelins! 

Após o matrimónio, tinha mais uma boca para alimentar, mas a sua vida profissional continuou a ser a mesma, trabalhava por sua conta, tirando o sustento da casa, das Ribeiras e do Rio Guadiana!

Em menos de um ano, a sua família começou a crescer com o nascimento da sua primeira filha, no dia trinta e um de Dezembro de 1922! 

Como os seus lugares de trabalho ficavam para as bandas antes descritas e a Família começou a crescer muito rapidamente, exigindo a sua presença, o ti José Faustino "Matuto", aproveitou ter vagado a casa da Ermida de Nossa Senhora das Neves e, em meados da década de 1920 mudaram-se todos para perto do seu lugar de trabalho, a poucos metros da Ribeira! 

Os filhos de José Matuto e de Isabel Mariana, nasciam como cogumelos, como era normal nas Famílias nessa época, mas os mais velhos, os rapazes logo que atingiam a idade para sair de casa, 6/7 anos, tinham de o fazer, porque, mesmo sem ganhar nada para a casa, era menos uma boca a alimentar, uma grande ajuda, mas as raparigas ficavam em casa até mais tarde e ajudavam a mãe a tratar dos irmãos mais novos! 

A vida do ti José Matuto decorria normalmente, os anos passavam, as crianças cresciam felizes e, no ano de 1940, já tinham nove filhos! Ainda nesse mesmo ano, no dia 27 de Novembro nasceu mais um menino, mas o parto correu mal e logo após o nascimento desse filho, nesse mesmo dia, apenas com trinta e oito anos de idade Isabel Mariana faleceu da vida presente, sem Nossa Senhora das Neves que, estava a poucos metros dela, lhe poder valer! 

José Faustino "Matuto" era um homem que irradiava coragem e valentia, nunca desmoralizava, mas naquele dia, sentiu que o céu se abatia sobre a sua cabeça, era o sentimento da perda da sua Isabel, era a inexplicável revolta, era ter as 10 crianças sem mãe e sem ele ter conhecimentos dessa condição, era falta de apoio de alguém que o ajudasse a suportar a dor! 

Isabel Mariana foi sepultada no cemitério de Capelins no dia 27 de Novembro de 1940, deixando grande vazio na Família, os mais pequenos sentiam muita tristeza mas não percebiam o que realmente se passava!

Passaram uns dias e como já faltava comida na mesa, o ti José Matuto decidiu voltar ao seu trabalho, porque com tantos filhos ainda pequeninos, tinha de garantir o sustento na casa das Neves e, foi a filha mais velha de dezassete anos, a cerca de um mês de completar os dezoito anos, que teve de tomar conta dos mais pequeninos e das rédeas da casa, embora tivesse ajuda das irmãs mais novas! 

Após o falecimento de Isabel Mariana, a vida parou alguns dias na casa das Neves,  mas com o passar do tempo, foi-se refazendo, o ti José Faustino "Matuto" foi aliviando a sua dor embrenhando-se nas suas diversas atividades por dentro das Ribeiras e do Rio Guadiana! 

Os filhos foram crescendo em redor da Ermida de Nossa Senhora das Neves, à medida que atingiam a idade e a força, iam trabalhar para as herdades das redondezas, ficando a casa das Neves cada vez mais vazia! A filha mais velha encontrou o seu par, um rapaz natural da vizinha Freguesia de Santiago Maior e contraíram matrimónio no dia 01 de Janeiro de 1944, com 22 anos feito sno dia anterior, na Igreja de Santo António de Capelins e, ficaram a morar na Casa das Neves! 

A criança que nasceu no dia 27 de Novembro de 1940, no dia do falecimento de sua mãe, chamado Joaquim José Matuto, foi criado pela irmã mais velha e ajuda das outras, mas acabou por falecer no dia 29 de Novembro de 1946, com seis anos de idade! 

A Família do ti José Faustino "Matuto" foram os últimos moradores da casa das Neves, ou seja, do Lugar de Ferreira da Vila de Ferreira, fundada por D. Gil Martins e sua mulher Dona Maria Anes da Maia em 1262 e fechada por esta Família, cerca de 684 anos depois, em 1946! 

O ti José Faustino "Matuto, faleceu longe do Lugar de Ferreira - Neves, no dia 26 de Dezembro de 1984, com 90 anos de idade. 

Com esta lenda, pretendemos contar o que conhecemos da história da vida desta Família, como singela homenagem e por ser a última a habitar o Lugar de Ferreira da Vila de Ferreira, fechando um ciclo histórico da atual Freguesia de Capelins! Bem Hajam!  

Fim 

Texto: Correia Manuel 


Registo do nascimento de José Matuto 




 


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