sexta-feira, 14 de julho de 2023

Memórias do Chiquinho de Capelins, quando mergulhou na Ribeira de Lucefécit

Memórias do Chiquinho de Capelins, quando mergulhou na Ribeira de Lucefécit 

Os horizontes do Chiquinho de Capelins eram limitados à Aldeia de Ferreira, ora estava em Capelins de Cima, ora em Capelins de Baixo. por isso, qualquer saída desta esfera era uma grande alegria, nem que fosse só às imediações da Aldeia, o desejo era fazer novas descobertas, pelo que, ao acompanhar a mãe que ia fazer a lavagem da roupa da casa à Ribeira de Lucefécit, fosse ao lavadouro das Neves ou, ao das Águas Frias de baixo, era um dia diferente dos outros, apenas custava levantar-se cedo, mas compensava, ia vêr os pegos com muita água, cardumes de pequenos peixes, galinhas de água a esvoaçar sobre a água, grandes pássaros, desde águias, peneireiros, cegonhas e outros, a pairar lá nas alturas por cima da sua cabeça, passava um dia maravilhoso fora da Aldeia. 

Quando o Chiquinho sabia que no dia seguinte ia com a mãe à Ribeira, apregoava pela Aldeia inteira, para fazer inveja aos outros rapazes da sua idade e os mais velhos diziam-lhe: - É Chiquinho, amanhã vais à Ribeira? Então não te esqueças de dar lá uns mergulhos por mim! E o Chiquinho todo vaidoso respondia que não se esquecia e daria os mergulhos encomendados no pégo mais fundo e quando partia para a Ribeira já ia carregado de encomendas de mergulhos para uns e outros! 

Num dia da lavagem da roupa, logo de madrugada, o pai do Chiquinho foi levá-los na carroça ao lavadouro do Porto das Águas Frias de baixo, muito cedo, para a mãe apanhar um lugar no dito lavadouro, e porque, tinha de voltar à Aldeia, depois voltava a buscá-los à tardinha! Como sempre, também foi uma das vizinhas para fazer companhia e para ela e a mãe darem ajuda uma à outra a torcer e a dobrar a roupa mais pesada, como mantas ou cobertores. 

Nesse tempo o caminho de ligação das Aldeias de Ferreira e do Rosário, com acesso à Ribeira, era empedrado, pelo que, fazia trepidar as carroças de tal maneira que dava sono a qualquer carroceiro, por isso, o Chiquinho nem deu pela viagem, quando acordou já estava na margem esquerda da Ribeira em terras das Águas Frias, a mãe fez-lhe uma cama improvisada, um saco de serapilheira no chão, onde ele se deitou, mas já não dormiu, porque não demorou em surgir o sol no horizonte, levantou-se e por ali andou em observações fazendo contas de cabeça, a pensar onde devia mergulhar para satisfazer as encomendas que trazia e fazer alguns mergulhos para ele, daí a pouco a investigação deu-lhe fome e a mãe teve de suspender a lavagem para lhe dar o almoço (pequeno almoço), quando estava a comer sentado na cama, ou seja, no dito saco, viu duas cegonhas muito grandes a voar próximas do chão, ficou curioso, porque na Aldeia só as via muito altas, pareciam muito pequeninas, então já de barriga cheia, foi descendo a Ribeira na direção onde as viu aterrar e não foi preciso andar muito para ver o ninho no cimo de um pequeno zambujeiro disposto no ribeiro que delimita a herdade de Santa Luzia das Águas Frias, mesmo em frente do Moinho Velho, com dois ou três cegonhitos já quase do tamanho dos pais, o Chiquinho ficou abismado com o que via na frente dos seus olhos e depois de os observar meteu na cabeça que tinha de obrigar os cegonhitos a voar, porque já estavam muito grandes, e foi procurar uma vara para lhe chegar e os empurrar, mas os pais cegonhos, assim que o viram a tentar meter os filhos fora de casa, não gostaram e começaram a fazer voos rasantes passando a poucos centímetros da cabeça, que lhe pregaram grande susto, acabando por desistir da sua intentona e deixou a família das cegonhas em paz. 

O Chiquinho andou muito tempo naquela barafunda e, quando chegou levou uma desanda da mãe, que estava em cuidado não se tivesse ele perdido pelos matos de Santa Luzia e, já estava preparada para ir procurá-lo e ele repetia que estava mesmo ali ao pé dela.

Depois de tudo serenado, o Chiquinho lembrou-se das encomendas dos mergulhos e achou que estava na hora de começar, uma vez que, eram muitas e não queria falhar, então pediu à mãe se podia ir banhar, e a mãe respondeu que sim, mas demarcou a respetiva zona do banho, a fronteira máxima seria a pouco mais de dois metros do lugar onde ela estava a lavar e aí a água já dava pelos joelhos do Chiquinho.

Quando o Chiquinho entrou na água ficou arrepiado com frio e reclamou que a água estava muito fria, mas por ali andou e foi-se ambientando, até que, achou ser melhor começar a tratar das encomendas dos mergulhos, como nunca tinha mergulhado não conhecia bem as regras, mas sabia que, debaixo de água só os peixes podiam respirar, por isso, como não era peixe, tinha de suspender a respiração depois mergulhava e só voltava a respirar quando voltasse à tona da água, mas os ensaios não lhe saiam bem, atirava-se de barriga, mas não conseguia meter a cabeça debaixo de água, assim, não contava como sendo mergulho, por isso, decidiu mudar a técnica e recuou até onde a água lhe dava pouco acima dos joelhos, atirou-se de cabeça para baixo e lá foi dois palmos abaixo da água, mas quando se quis levantar não conseguia, a cabeça não vinha acima, quanto mais esforço fazia menos conseguia, e começou logo a entrar água da Ribeira pela boca, pelo nariz, pelos ouvidos, por todos os buracos, mas como já chegava com as mãos ao fundo foi indo de gatas até não haver mais água, mas já com a barriga e os tubos todos cheios de água, parecia um peixe sapo, tal era a barrigada de água, ele bem gritava por ajuda, mas a mãe como o via todo fora de água, pensou que era brincadeira e foi por pouco que o Chiquinho não se afogou num palmo de água. 

O Chiquinho apanhou grande susto, já não aviou mais encomendas, os mergulhos ficaram por ali, foi deitar-se na cama feita com o saco de serapilheira, deitou alguma água fora e adormeceu, quando acordou já estava um pouco melhor, lá comeu alguma coisa e já pouco se movimentou até o pai chegar à tardinha, quando chegaram a casa, não demoraram em comer e ele foi a correr para a cama, dormiu bem, e no dia seguinte acordou bem disposto e foi comunicar pela Aldeia que tinha dado os mergulhos encomendados, mas não contou a ninguém que tinha enchido a barriguinha de água da Ribeira do Lucefécit.

Fim 

Texto: Correia Manuel 

Lugar do caso, atualmente Albufeira  





quinta-feira, 13 de julho de 2023

Memórias do Chiquinho de Capelins, quando deixou secar os tomateiros

Memórias do Chiquinho de Capelins, quando deixou secar os tomateiros 

Nos alvores da década de 1960, a vida económica e social das famílias de Capelins, já era diferente, para melhor, em relação ás décadas anteriores, sendo cada vez menos os rapazes que tinham de ir guardar gado, mal acabavam de fazer o exame da quarta classe, também, devido à migração em massa para os centros urbanos e, ao surgimento de empregos mais bem remunerados, como era o caso do trabalho nas pedreiras de mármores. 

A vida do Chiquinho de Capelins, não era muito atribulada, mas tinha de ajudar em casa,  quanto mais não fosse, a tratar de duas cabras, porcos, galinhas, piricos, coelhos, cães e gatos, quando, após ter feito a quarta classe voltou à escola, esses encargos foram reduzidos, porque tinha de estudar, mas à parte disso, foi sempre perdido por brincadeiras e fazia tudo, para poder estar em todo o lado, fosse em Capelins de Cima, em Capelins de Baixo, ou a meio caminho, estudava todas as artimanhas para se escapar ás tarefas que lhe tirassem o precioso tempo e, quando lhe acrescentavam algum trabalho extra ficava zangado e revoltado, dizendo que, era ele a fazer tudo naquela casa. 

Quando andava na escola, enquanto duravam as aulas, pouco mais fazia do que tratar das cabras, ia prendê-las na pastagem de manhã em caminho para a escola e ia buscá-las à tardinha, depois metia-as na cabana e, no tempo que produziam leite tinha de as ordenhar e algumas vezes fazia os queijos, logo, todo esse trabalho, tirava-lhe muito tempo, que ele tanto precisava para o seu laser. 

Nas férias escolares de verão, surgiam outras tarefas, tinha de fazer mandados aqui e ali, e à tardinha tratava da horta, tinha de regar os tomateiros, as cebolas e uma ou duas árvores, era um trabalho que não via com bons olhos, porque, tinha de ser feito diariamente, fosse sábado, domingo ou feriado, na melhor hora de brincar, pela fresca, e na hora de dar umas voltas a ver as modas na Aldeia de Ferreira, pelo que, o Chiquinho começou a dar voltas à cabeça para encontrar uma maneira de fazer a rega da horta em poucos minutos, em vez de mais da meia hora que levava, mas pensava, pensava e não encontrava a solução, ainda se tivesse uma bomba de tirar a água era mais rápido do que a balde, pensava ele! Mas não tinha! 

Depois de muito pensar em várias hipóteses, lembrou-se que, quando o pai o tinha ensinado a regar os tomateiros, disse-lhe que, tinha de deitar a água no início do rego e só parava de deitar água nesse rego e nesse sítio, quando ele estivesse cheio até acima, só depois passava para o seguinte, e sempre assim até ao fim da rega, nesse caso, se era só encher o rego de água, bastava deitar um balde no fim do rego, outro ao meio e outro no início e o rego ficava cheio com apenas três baldes, em vez dos oito que tirava do poço! 

O Chiquinho foi buscar uma folha de papel e uma caneta e com ajuda matemática, começou a delinear um projeto de engenharia hidráulica, como reduzia cinco baldes de água em cada rego e eram seis regos de tomateiros, logo reduzia trinta baldes aos quarenta e oito, pelo que, feitas bem as contas, tinha de tirar do poço apenas dezoito baldes e, em termos de tempo reduzia os trinta minutos para apenas doze, com mais dois ou três baldes para as cebolas e árvores, levava no máximo quinze minutos, poupava tempo, poupava água e ficava tudo bem regado, ora ali estava um bom projeto de engenharia, pensou o Chiquinho e avançou logo com a sua implementação, o qual, deu bons resultados nos primeiros dias, porque, por sorte, esteve menos calor e como ele não percebia nada de hortas, não se apercebeu que, os tomateiros estavam a ficar em agonia, a murchar, até que, um dia o pai foi à água lá ao poço e quando viu aquela desgraça ficou muito zangado, assim que chegou a casa chamou o Chiquinho a contas e perguntou-lhe, porque tinha deixado de regar os tomateiros? Ele ficou muito surpreendido e jurou a pés juntos que todos os dias eram regados, mas essa afirmação não batia certa e o interrogatório continuou e, ele tentou convencer o pai que, decerto era uma doença que andava ali pelas hortas todas, mas a inspeção tinha sido bem feita e, sem dúvida que os tomateiros acusavam falta de água, a terra estava tão ressequida que havia indícios que não avistavam água havia mais de oito dias, pelo que, o Chiquinho foi obrigado a divulgar o seu projeto de rega que, afinal tinha falido, assim, com o crime provado, foi-lhe decretada a aplicação de uns pares de orelhadas, para não voltar a reincidir e, continuar a fazer bem a rega dos tomateiros. 

O Chiquinho ficou muito zangado com os tomateiros por o terem tramado, achava que não tinham nada que secar, porque, ele enchia-lhe os regos de água e não podia adivinhar que era pouca, assim, ainda nesse dia, começou a regar conforme as regras ditadas pelo pai, mas já era tarde, ainda amadureceram alguns tomates, mas foi grande prejuízo para a casa, o qual, foi compensado no ano seguinte, porque, o Chiquinho regou muito bem os tomateiros, desde o início até ao fim do verão. 

Fim 

Texto: Correia Manuel 


Tomateiros do Chiquinho de Capelins 




terça-feira, 11 de julho de 2023

Memórias do Chiquinho de Capelins, quando assistia ás touradas de Madril

Memórias do Chiquinho de Capelins, quando assistia ás touradas de Madril 

Quando o Chiquinho de Capelins, brincava na rua em Capelins de Baixo, ao fim das tardes de verão, assim que ouvia na televisão espanhola, a trompete, anunciando a saída do touro nas respetivas corridas, deixava tudo, e corria para a taberna do ti Manel e, sorrateiramente ocupava o seu lugar habitual, embora fosse proibida a permanência a menores de 16 anos, mas ficava perto da porta do quintal para no caso da Guarda Republicana aparecer por ali, dar logo à sola, mas isso, nunca aconteceu. 

Quando chegava à dita taberna, não perguntava de onde era transmitida a tourada, porque estava cansado de ouvir ao ti Manel que, as corridas espanholas recebidas naquele televisor na Aldeia de Ferreira, eram todas transmitidas de Madril, era lá a sede da TVE, não podiam ser de outro lugar, e ninguém o podia contrariar, mesmo quando o comentador espanhol dizia que, transmitiam diretamente da Monumental de Sevilha, o ti Manel, dava a volta e afirmava que Madril e Sevilha era tudo o mesmo, quem sabia era ele, porque conhecia tudo desde Cheles, por aí acima, e até Olivença e Badajoz, desde gaiato que conhecia tudo por essa Espanha dentro.

A corrida de touros ia sendo toda comentada pelo ti Manel e confirmada pelo Chiquinho que, repetia tudo o que ele dizia, estivesse certo ou errado, porque, tinha de agradar ao Ti Manel para garantir aquele lugar e ele não o pôr na rua, por isso, era o seu principal apoiante, cada freguês que chegava, ás vezes nem dizia boa tarde, perguntava: - Onde é a tourada? E o ti Manel respondia: - Em Madril! E o Chiquinho repetia: - Em Madril, em Madril! E se o freguês tinha o azar de discordar, o ti Manel dizia-lhe: - Vê lá se queres sair já, por onde entraste e o freguês encolhia os ombros e tinha de se calar! 

Por cada touro que saía à praça, tudo se repetia, já lá estava o picador, ou seja, o encarregado de preparar o touro para a muleta, armado com uma lança de cerca de 2,60 metros de comprimento, a puya, o cavalo que montava tinha uma proteção especial contra as marradas do touro em pontas e os olhos vendados, para não se assustar e fugir, ás vezes corria mal e o touro virava o cavalo das avessas e o picador ia ao chão, havendo grande manifestação por parte dos aficionados e o picador era assobiado e chamado de incompetente, por não saber dominar o touro, na taberna do ti Manel reagiam como se estivessem lá na praça! O ti Manel comentava tudo e o Chiquinho confirmava e mais ninguém tinha direito a outra opinião, porque, caso contrário o ti Manel dizia ao freguês se não sabia onde era a porta de saída, mesmo que, estivesse a fazer despesa. 

Graças ao ti Manel, o Chiquinho já percebia de touradas espanholas, de chicuelinas, verónicas, gaoneras, serpentinas, zapopinas e outras sortes e lances, quando o ti Manel dizia muito entusiasmado: - Bela chicuelina, isto é que são toureiros! O Chiquinho repetia, exatamente o mesmo e ele dizia-lhe: - É Chiquinho, tu já percebes muito de touradas espanholas, muito mais do que esses bacocos que entram aqui com a mania que percebem alguma coisa disto! Algumas vezes o Chiquinho já se adiantava e depois de uma capotada dizia ele primeiro: - Bela chicuelina! Bela verónica! Bela zapopina! Deixando o ti Manel muito admirado e perguntava-lhe: - Como é que tu sabes que foi uma chicuelina, ou uma zapopina? O Chiquinho apressava-se a responder que tinha aprendido com ele, deixando-o muito orgulhoso! O ti Manel já lhe pedia a opinião sobre sortes e passes durante as touradas e, se alguma dúvida existisse o Chiquinho dizia-lhe que tinha sido uma chicuelina ou uma verónica e estavam sempre de acordo, ao contrário dos outros fregueses. 

Boas tardadas passou o Chiquinho a ver as touradas de Madril com o ti Manel, fossem elas de Madrid, Sevilha, Ronda, Alicante, Málaga ou outra Vila ou cidade de Espanha, para o ti Manel e para o chiquinho eram todas de Madril e as sortes eram sempre a chicuelina a verónica ou a zapopina.

Fim 

Texto: Correia Manel  

Aldeia de Ferreira - Capelins de Baixo




domingo, 9 de julho de 2023

Memórias do Chiquinho de Capelins, quando foi à Santa Cruz de Montes Juntos

Memórias do Chiquinho de Capelins, quando foi à Santa Cruz de Montes Juntos

A Festa da Santa Cruz tinha um carácter, essencialmente religioso, mas também profano e, era entendida como a representação de uma pecadora que encontrou Jesus Cristo arrastado e ensanguentado quando estava a ser agredido pelos Judeus em Jerusalém! 

Até ao início da década de 1960, a Festa da Santa Cruz realizava-se no início do mês de Maio nas Aldeias de Ferreira e de Montes Juntos em Capelins, existindo alguma rivalidade saudável, entre estas Aldeias, onde faziam tudo para que a sua Festa da Santa Cruz fosse melhor do que a da outra, obrigando os protagonistas a uma grande dedicação no sentido de alcançarem esse objetivo, que se traduzia num grande orgulho. 

Entre as duas Aldeias, a primeira desistência da organização da Festa da Santa Cruz foi a de Ferreira, continuando a ser realizada em Montes Juntos mais alguns anos, com mais assistência, porque ganhou muita gente daquela Aldeia, principalmente no dia do encontro da Madalena com a Mordama, e foi na manhã desse dia que o avô do Chiquinho disse à avó para depois do jantar (almoço) o lavar e vestir para irem os dois à Santa Cruz de Montes Juntos. 

O Chiquinho ficou, agradavelmente surpreendido, muito contente, porque desde sempre que ouvia contar que a Santa Cruz era uma festa muito bonita e contavam muitas peripécias engraçadas, mas não fazia ideia o que era, porque tinha acabado na Aldeia de Ferreira, onde ele não tinha assistido a nenhuma, por ser muito pequenino, agora, pela primeira vez, ia ver uma Santa Cruz em Montes Juntos. 

O Chiquinho foi logo metido num alguidar cheio de água e, passado com sabão, de alto a abaixo, vestiram-lhe uma roupinha mais nova e, como iam a pé, quase três quilómetros, embora o avô o levasse ao colo em algumas partes do percurso, tinham de ir mais cedo, e lá foram. 

A caminhada correu bem, mas quando chegaram junto à Escola Primária de Montes Juntos, o Chiquinho já se queixava que lhe doíam muito as pernas, mas o avô animava-o dizendo que, já lá estavam e ainda tinham tempo para descansar até à hora do encontro, porém, naquele momento, vinham dois homens, rua abaixo, com alguns foguetes na mão, para os lançarem a anunciar que se aproximava a hora do início da festa e, a poucos metros do Chiquinho, da Escola para cima, o fogueteiro puxou fogo a um foguete que subiu a soprar e a assobiar, pregando grande susto ao Chiquinho que não tinha onde se meter e em pânico meteu-se entre as pernas do avô a chorar e no momento que o foguete estourou nas alturas, o Chiquinho estourou cá em baixo! 

Depois do avô o acalmar, dizendo-lhe que os foguetes não faziam mal e serviam para chamar as pessoas para a festa e para não ter medo, mas começou a notar um cheiro que superava o dos rosmaninhos que pavimentavam a rua, ainda pensou que tinha pisado algum presente, mas depois de averiguar a origem do dito cheiro disse: 

Avô: Ah malandro, estás todo borrado! E agora como é que vais assim para a Santa Cruz? 

Chiquinho: Não estou, não avô! Não fui eu! 

Avô: Pois, não! Fui eu! Olha como tu estás, todo borrado pelas pernas abaixo! 

Chiquinho: Não fui eu, avô! Foram os "fodêtes"!

Avô: Foram os "fodêtes", foram, e agora? 

O Chiquinho insistia para irem para a festa, mas o avô não foi nisso e levou-o para a eira que existia acima da escola, à direita e tentou fazer uma limpeza a sêco, com ervas, palha e tudo o que podia servir, mas ninguém se podia aproximar dele, não havia condições para ir para o meio das pessoas com aquele perfume tão mau e, depois de pensar o que podia fazer, o avô decidiu que tinham de voltar para a Aldeia de Ferreira e, assim foi, para eles, a Festa da Santa Cruz acabou ali.

A viagem de regresso foi muito dolorosa, nem descansaram, por fim, lá chegaram, a avó ficou muito admirada por já estarem de volta e apressou-se a perguntar o que tinha acontecido, e o avô disse-lhe para encher o alguidar com água e TIDE (detergente) e metê-lo lá dentro, porque ele tinha-se borrado todo com medo dos foguetes!

O Chiquinho não perdeu a oportunidade de dizer à avó que não tinha sido ele, tinham sido os "fodêtes" e, acabou assim, a Festa da Santa Cruz de Montejuntos para o Chiquinho de Capelins. 

Fim 

Texto: Correia Manuel   

Aldeia de Montejuntos 

Lugar do caso



 


sábado, 8 de julho de 2023

Memórias do Chiquinho de Capelins, quando recebeu a visita de gente fina

Memórias do Chiquinho de Capelins, quando recebeu a visita de gente fina 

Num dia, como tantos outros, no início do decénio de 1960 o Chiquinho de Capelins brincava no corredor da casa dos avós, à entrada da cozinha e, começou a ouvir uma conversa entre a avó e as tias, sobre a visita de um casal que, eram gente fina, moravam na cidade de Évora, sendo o rapaz primo do avô e eram muito amigos, considerado como se fosse de família chegada, devido à vivência que tiveram até ele migrar para aquela cidade, onde tinha casado e organizado uma boa vida, trabalhando num serviço público, sendo bem remunerado e, além de ter uma boa casa, já tinha um automóvel, um privilégio de gente rica nessa época. 

O dito primo trocava correspondência com o avô do Chiquinho e, contava-lhe como ia a sua vida em Évora, até que, numa carta contou-lhe que já tinha um automóvel e estava a pensar em ir visitá-los à Aldeia de Ferreira e pedia-lhe informações sobre qual o melhor dia e o estado do caminho entre as placas e a Aldeia, uma vez que, esse caminho era empedrado e havia sempre alguns buracos, e o avô respondeu-lhe que podiam vir sempre que quisessem e, quanto ao caminho, desde que viesse devagar, fazia-o bem, porque o pior era no inverno, e depressa combinaram o dia da visita. 

A avó e as tias, uns dias antes, reuniram-se para fazer os planos, desde a chegada do casal até à sua partida, que seria no mesmo dia a meio da tarde, assim, estava em causa a limpeza da casa, a qual, tinha de ser toda caiada e tudo bem lavado, as louças, talheres, copos, toalhas e guardanapos, seriam do enxoval da avó, ainda nunca tinham sido usados,  porque a esposa do primo do avô era de Évora e era de gente fina. 

Esta conversa e a azáfama que se seguiu, começaram a fazer confusão ao Chiquinho, nunca tinha ouvido que havia gente fina e outra gente, a avó e as tias decidiram que para a comida seria sacrificado o galarito, estava com um ano de idade, ainda bom de se meter o dente e andava sempre a armar guerra na capoeira com o galo, por isso, seria feito um ensopado com batatas à moda de Capelins e, à chegada das visitas seria logo posta a mesa com pão, carne, queijo, azeitonas e um bolo feito no forno de lenha, vinho, gasosas e laranjadas e a ementa estava resolvida.

O Chiquinho continuava a brincar, mas sempre de ouvido à escuta da conversa, porque, tudo o que ouvia era novidade e, assim que teve oportunidade foi perguntar à avó o que era gente fina, o que vinham cá fazer, porque tinham de comer em pratos novos e matar o galarito para eles comerem? 

A avó explicou-lhe que, gente fina eram pessoas da cidade e, tinham hábitos diferentes dos nossos, andavam lavadinhos e bem vestidos, os homens usavam chapéu fino, fato e gravata e as senhoras lindos vestidos, e tinham de matar o galarito, porque eles não comiam sopas de grãos  nem açordas e nessas ocasiões de visitas punham-se nas mesas, pratos e copos novos, os primos vinham cá ver a gente e, também, para os ver-mos a eles, porque, moravam muito longe e já tinham passado muitos anos sem ver o primo, o Chiquinho pouco percebeu, mas ao menos, ficou com ideia do que era gente fina e o que vinham fazer à Aldeia de Ferreira.

A partir daquele dia, começou o asseio da casa e as conversas eram todas sobre as visitas da gente fina, a avó e as tias diziam que tinham vergonha da mulher do primo, mas dele não tinham, como tinha sido criado ali com elas, sabia muito bem como eram os seus hábitos, mas treinavam, diariamente para não falhar nada, o lavatório ficava no quarto onde iam lavar as mãos, assim como o bacio para a senhora, uma vez que não havia casas de banho e, até o Chiquinho ia ter uma roupinha nova e lembravam que tinham de ter cuidado com ele, para não fazer algum disparate e tinham de olhar para o nariz para estar bem lavadinho e o ranho assoado. 

A visita foi marcada para um Domingo e, esse dia começou muito cedo, com os banhos ou lavagem no alguidar, a vestir as roupinhas novas ou as melhores, porque, quando eles chegassem à entrada da Aldeia de Capelins de Baixo em frente das escadinhas do Pinheiro, tinham de lá estar todos para os receber, isso sabia o avô fazer muito bem. 

Antes das dez horas já a família os estava esperando no dito lugar e onde devia ficar o automóvel, que não eram mais de vinte ou trinta metros da casa do avô, o qual, não demorou em anunciar que tinha aparecido um automóvel aos muros do Monte Grande e só podiam ser eles, uma vez que, nessa época, não passavam por ali automóveis em abundância, seriam dois ou três por semana, por isso, quase decerto que eram as visitas, mas ainda demoraram algum tempo a chegar, devido ao mau estado do caminho, até que parou um automóvel vermelho já estilo moderno dos anos 60 e, os visitantes depressa saíram do veículo a cumprimentar toda a gente que por ali estava, a família e os mirones. 

O primo do avô era muito conhecido de toda a gente, ao contrário da sua esposa que, como foi referido  não era destas bandas, por isso, levou muito tempo nos cumprimentos, mas foram indo para os lados de casa e por fim lá foram entrando, sempre falando sobre as pessoas suas conhecidas e sobre a Aldeia que, já estava muito melhor, dizia o primo.

Na casa do avô continuaram a falar de tudo, bebendo uns copinhos de vinho com gasosa e petiscando, o primo relembrava os tempos que ali tinha passado e não se cansava de agradecer ao avô o que tinha feito por ele quando ali morava e que o tinha encaminhado para sair dali à procura de melhor vida, e contou ao avô o que tinha feito antes de chegar a este emprego e dizia que, se não tivesse abalado, ali não passava da cepa torta e ambos concordavam. 

As mulheres falavam à parte, de como era a sua vida na Aldeia e mostravam os seus bordados e a senhora contava como era a vida dela na cidade de Évora, dizia que tratava da casa, da comida, das roupas, ia ás compras e a passear, tinha muito trabalho, mas mais tarde a avó e as tias, comentaram que, ela tinha uma bela vida, até ia passear!

O que é bom acaba-se depressa, dizia a avó, foi um dia muito diferente dos outros e, quando chegou a hora da partida a avó aviou umas peças de carne e uma dúzia de ovos para os primos e foi toda  a família fazer as despedidas até ao automóvel, mas quando chegaram ele não estava onde tinha ficado estacionado, gerou-se logo grande confusão e ninguém acreditava que o tivessem roubado, ainda mais que, nem havia ali ninguém encartado, ficou toda a gente muito aflita a procurá-lo e o avô desceu alguns metros e exclamou: - Está ali, está ali! Foram todos a correr a tentar perceber como é que o automóvel tinha abalado sozinho e, como fazia um grande desnível à esquerda onde se entrava para o quintal do avô, o automóvel ficou nesse lugar, deixando à vista só a parte traseira e o primo do avô depois confessou que ainda tinha pouca prática e com o entusiasmo à chegada esqueceu-se de o travar bem e ele, aos poucos, foi deslizando até onde ficou embarrancado. 

Depois de observado, verificaram apenas uns arranhões nos guarda lamas, porque nesse tempo os automóveis eram feitos de boa chapa de aço que não amolgava, então, começaram a estudar a maneira de o tirar dali, acharam que, de empurrão não conseguiam, era muito pesado e o avô disse que ia ao Monte do Cebolal chamar o cunhado que trazia a mula para o puxar para trás, mas isso levava muito tempo e depois abalavam dali muito tarde, pelo que, decidiram ligar-lhe umas cordas e com umas tábuas grossas por baixo das rodas e com a ajuda de alguns homens e rapazes que por ali andavam, lá o tiraram e não demorou muito tempo, meteram-se nele e seguiram para sua casa. 

O Chiquinho gostou muito da visita da gente fina, porque, não era todos os dias que vivia aquele ambiente de festa, nem bebia gasosa e comia ensopado de galarito, os  avós e as tias, também gostaram muito, diziam que, nem pareciam gente fina, até convidaram toda a família para quando fossem a Évora ficarem lá em casa deles, e comentavam: - Só foi pena o carro ter abalado sózinho! Mas não houve mal de maior e, as peripécias da visita deram para a avó, tias, vizinhas e metade da Aldeia, terem conversa para mais de um mês. 

Fim 

Texto: Correia Manuel 

Aldeia de Ferreira  




quinta-feira, 6 de julho de 2023

Memórias do Chiquinho de Capelins, quando jogava ás escondidas

Memórias do Chiquinho de Capelins, quando jogava ás escondidas 

Em Capelins de Baixo, geralmente a base das brincadeiras situava-se junto à loja do Monte da Figueira, era aí que se juntavam os rapazes de Capelins de Cima, de Capelins de Baixo e dos arredores, sendo por vezes, o grupo constituído por oito a dez rapazes. 

As brincadeiras começavam quase sempre, pelo jogo às escondidas, ao qual chamavam dos escondarêlos e depois quando se cansavam ou zangavam, passavam para outros jogos que não implicassem correria, como o jogo do pião, do berlinde e outros. 

No jogo dos escondarê-los, começavam por escolher o primeiro rapaz a ficar-se e este era escolhido através da lenga lenga: - Um dó li tá, quem está livre, livre está, ou outra semelhante! Assim, ficava um dos rapazes num lugar escolhido, que era o couto ou defeso, com os olhos fechados virado para a parede para não ver para que lado os outros se iam esconder e a contar em vós alta até quarenta ou cinquenta, para dar tempo aos outros a encontrarem o melhor esconderijo, depois dizia alto: - Aí vou eu! E partia a correr à procura dos rapazes escondidos e, quando avistava o primeiro, gritava o nome dele e voltava a correr o mais que podia para o dito lugar, batia com a mão na parede e dizia: - Um, dois três por mim, fica-se o Manel! Mas tinha de chegar primeiro do que o Manel e, só assim ficava salvo de continuar a ficar-se e, também nunca podia chegar depois dos outros, os quais, podiam bater um, dois, três por eles e pelos outros, ou seja, salvar o Manel, mas isso era uma opção que, se acontecesse, ficava-se o mesmo, novamente. 

Como em toda a área do Monte da Figueira os esconderijos já eram todos conhecidos, a rapaziada dava asas à imaginação no sentido de descobrir lugares que não passavam pela cabeça do que se ficava e se as portas das casas dos moradores estivessem abertas, não hesitavam em entrar e a esconderem-se lá dentro, e se as donas andassem no quintal, na loja ou na casa de outras vizinhas, aventuravam-se a meterem-se debaixo das camas, se lá houvesse lugar ao lado dos penicos e da tralha, porque eram todos de família, tias, primas ou parentes.

Num dia de jogo dos escondarêlos, em meados do decénio de 1960, quando chegou a vez do Chiquinho de Capelins ficar de olhos fechados a contar até cinquenta, chegou ao fim da contagem e foi a correr à esquina da loja e a seguir correu em sentido contrário até à esquina do ti Franco, como não havia rapazes à vista seguiu para a parte de trás desse quarteirão e foi ver os lugares habituais, todos os cantos e cantinhos e não achou nenhum rapaz, ficou apreensivo e a pensar que, deviam ter ido para os confins das tapadas do Monte da Figueira, porque, entretanto já tinha pssado as oliveiras e as lenhas a pente fino e nada! Quando estava já decidido a alargar as buscas, ouviu um murmúrio no meio da lenha, parou a escutar e não teve dúvida que estava lá alguém, mas de nada servia se não gritasse o nome daquele que visse primeiro para depois partir em corrida até ao defeso a gritar: - Um, dois, três por mim, antes do outro chegar a tentar fazer o mesmo, pelo que, era preciso dar bem às pernas! O Chiquinho, começou a gritar, já os vi, podem sair daí, mas não saia de lá ninguém, então ele não teve outro remédio senão dar um salto para cima da lenha para poder ver no interior, mas a lenha estava solta e serviu de mola debaixo dos pés e o Chiquinho foi despedido, indo cair em cima da ti Ana Rita que estava lá a pôr o ovo, porque era uma casa de banho desses tempos, muito antes de existir saneamento básico em Capelins. A ti Ana e o Chiquinho ficaram atarantados, mas ele levantou-se num ápice e quis fugir dali, mas não encontrava saída, porque o sinal de que a casa de banho estava ocupada era o fecho da entrada com um feixe de lenha, e a ti Ana ficou virada das avessas e a gritar: - Acudam, acudam, malandros, malandros, mas lá se acalmou quando o Chiquinho muito atrapalhado lhe disse: 

Chiquinho: Cale-se ti Ana, cale-se! Eu não lhe faço mal, ando só a jogar aos escondarelos e caì de cima da lenha, pensava que eram os rapazes que estavam aqui escondidos! 

Ti Ana: Malandros, malandros, nem aqui uma pessoa pode estar descansada com estes malandros! Saltam por cima das paredes, das oliveiras e agora até da lenha! A tua sorte de não ficares sem orelhas é eu estar em meio de fazer o que estou fazendo, mas não te escapas! 

Entretanto, o Chiquinho tanto procurou que achou a porta de saída e a ti Ana não lhe chegou às orelhas, mas ele antes de dar à sola, ainda lhe perguntou: 

Chiquinho: Óh ti Ana, já há muito tempo que está aqui metida no meio da lenha? 

Ti Ana: Ora essa! O que tens tu a ver com isso? Já nem aqui estou descansada, espera lá que eu já te arranco as orelhas! 

Chiquinho: Óh ti Ana, era só para me dizer se os rapazes passaram por aqui? 

Ti Ana: Deixa-me lá acabar de fazer o que estou fazendo, que eu já te respondo e ficas sem as orelhas! 

O Chiquinho viu que a situação não estava nada boa e as orelhas já estavam a ficar em brasa e começou a correr para o lugar do defeso e sentou-se à porta da loja, passou muito tempo, uma infinidade, e não aparecia nenhum rapaz e para bem dele nem a ti Ana se lembrou mais dele, até que, passada mais de meia hora, lá viu umas cabecinhas a espreitar ás duas esquinas, mas fingiu que não os via, até que os rapazes pensaram que alguma coisa de mal tinha acontecido e apareceram zangados, a bracejar e a perguntar o que se passava, e porque não os tinha ido procurar?  

O Chiquinho contou-lhe o que se tinha passado com a ti Ana Rita e eles começaram a rir tanto, que alguns rebolaram-se no chão, mas ele disse-lhe que ela estava muito zangada com eles e podia aparecer a qualquer momento e o que fosse apanhado ficava sem orelhas! Alguns mais fanfarrões responderam: - Em mim, não põe ela a mão, dou um salto que lhe pulo por cima e estavam muito entusiasmados, cada um a dizer como fazia se ela ali aparecesse e quando olharam para baixo estava ela com as mãos nas ancas em posição de desafio e os rapazes ficaram tão desorientados que uns fugiram para o lado do Monte da Figueira e outros pela vereda que dava ao Ribeiro da Aldeia, onde chegaram em meia dúzia de saltos, com o coração na boca, e a ti Ana lá ficou. 

O jogo dos escondarêlos no Monte da Figueira a partir desse dia e durante alguns meses, ficou parado, com medo da ti Ana, mas passado algum tempo, viram que ela já não lhe ligava e voltaram a jogar aos escondarêlos no Monte da Figueira, combinado que, nenhum rapaz se escondia na casa de banho da ti Ana.

Fim

Texto: Correia Manuel 


Aldeia de Ferreira - Capelins de Baixo




terça-feira, 4 de julho de 2023

Memórias do Chiquinho de Capelins, quando levou as réguadas na Escola Primária

Memórias do Chiquinho de Capelins, quando levou as reguadas na Escola Primária 

O Chiquinho de Capelins entrou na Escola de Instrução Primária da Aldeia de Ferreira com seis anos de idade, mas esteve em dúvida, por ser, fisicamente muito pequenino e porque falava muito portinhol, mas como a professora oficial da dita Escola era vizinha e por insistência da mãe, acabou por ser admitido com essa idade.

A primeira professora do Chiquinho foi a Dª Eva, era Regente,  mas muito exigente em termos de educação e disciplina, dava muitas horas de aulas, alguns dias desde as nove horas da manhã até às dezanove horas e no inverno quando já não se via um palmo à frente dos olhos dentro da sala, os alunos ficavam a rezar o terço e outras orações, e aplicava muitos castigos físicos, entre eles as célebres reguadas em abundância, nas mãos, que muitas vezes estavam geladas e depressa ficavam em brasa, as quais eram aplicadas com uma régua de madeira com cerca de cinquenta ou sessenta centímetros de comprimento e um pouco mais larga que a palma das mãos, que descarregava com quanta energia tinha sobre as mãos dos alunos e alunas, ás meias dúzias, dúzias, ou até mais, que eram o terror da rapaziada. 

A professora Dª Eva, tinha a seu cargo desde a primeira à terceira classes, perfazendo mais de trinta alunos, pelo que, tinha de ter uma boa organização, quando mandava uma classe fazer contas, mandava outra fazer cópias, e a outra a ler a lição do dia ou a fazer o ditado.

O Chiquinho era muito apressado a fazer o que ela mandava, para ficar a observar o que se passava na sala e a meter o nariz onde não era chamado, por isso, de vez em quando levava umas reguadas ou palmadas da professora, mas isso não mudava a sua forma de ser e de estar.  

Um dia, a dita professora, distribuiu os trabalhos a fazer por cada classe e mandou fazer uma cópia de um grupo de letras e palavras à primeira classe, a do Chiquinho, outros trabalhos à segunda classe e mandou a terceira classe ler e interpretar uma lição, o Chiquinho fez, rapidamente a cópia para ficar atento às lições da terceira classe, porém, quando chegou ao João António da terceira classe, ela mandou-lhe ler uma lição do livro da primeira classe "A toutinegra descuidada" já com letra de forma e elaborada, que o Chiquinho sabia de fio a pavio, mas decorada, porque achava graça à toutinegra e quando a professora mandou o João ler a dita lição, ele leu bem o título, mas a partir daí começou a gaguejar e só saía mais alguma palavra à medida que o Chiquinho, que estava a seu lado, ia dizendo à frente. 

A professora estava sentada no seu lugar à secretária e puxava pelo João, fingindo não ouvir o Chiquinho, até que chamou o João para junto dela, mas continuou tudo igual, então a professora já zangada chamou o Chiquinho para junto deles e disse-lhe lê tu a lição, ele todo orgulhoso, empertigou-se, meteu o dedo indicador em cima do título e foi acompanhando o que sabia de cor: " A toutinegra descuidada... Passava o dia a cantar, entre o verde milheiral, sem pensar em trabalhar...", a professora convencida que ele sabia o que estava a ler, ficou admirada e mandou-o parar de ler, a seguir pegou na régua e entregou-a ao Chiquinho que mal podia com ela e disse-lhe: - Dá-lhe meia dúzia de reguadas! O Chiquinho ficou aterrorizado, ia dar meia dúzia de reguadas no João que, tinha quase o dobro da idade e do tamanho dele e era seu protetor, assim, acabava-se a proteção e depois lá fora nem as acabava, mas não havia maneira de dizer não, ainda pensou em fugir da escola, mas só de pensar nisso doeram-lhe as orelhas, porque, depois, ainda tinha de voltar a ajustar contas lá em casa.

A professora estava a perder a paciência e a repetir a ordem e ele teve de pegar na régua e, depois do João abrir a mão, deixou-a cair, suavemente seis vezes, estava dada a meia dúzia de reguadas, mas a professora não foi nisso, levantou a vós a dizer para lhe dar com força, senão era ele que as levava, mas não adiantou o Chiquinho fez tudo igual, então, a professora zangada tirou-lhe a régua, entregou-a ao João e disse-lhe: - Dá-lhe tu, meia dúzia de reguadas com força! O João pegou na régua e não teve dó do Chiquinho, deu-lhe meia dúzia de reguadas como ele nunca tinha levado, deixando-lhe a mão a arder! O Chiquinho chorava, chorava, revoltado e, quando virou as costa para ir para o seu lugar a professora chamou-o, mandou-lhe abrir a outra mão e deu-lhe mais meia dúzia, ficando cheio de dores nas duas mãos e na alma, porque não achava justo, os alunos e alunas levavam reguadas quando se portavam mal ou não sabiam responder ás perguntas, mas não era o caso, por isso, não compreendia o motivo da quebra das regras, só podia ser porque ela não gostava do Chiquinho, mas se era isso, porque não o dispensava de ir com ela, com a irmã Dª Amélia, professora na Aldeia dos Orvalhos, e com a Neca, a empregada, todos os Domingos à missa na Igreja de Santo António, contra a sua vontade e não se podia negar, era uma grande injustiça e jurou não estudar mais, mas no dia seguinte já tinha esquecido as reguadas e tudo voltou a ser igual, mas a lembrança da lição da  "toutinegra descuidada", ficou-lhe marcada para a vida, como as reguadas dadas pela Dª Eva.

Fim 

Texto: Correia Manuel 

Escola Primária da Aldeia de Ferreira 




segunda-feira, 3 de julho de 2023

Memórias do Chiquinho de Capelins, quando teve o desastre de carro, de mão

Memórias do Chiquinho de Capelins, quando teve o desastre de carro de mão

O Chiquinho de Capelins quando estava na casa dos avós em Capelins de Baixo, andava quase sempre a brincar na rua principal ou no quintal e, algumas vezes, quando a avó pensava que ele estava num desses lugares, já estava no Monte da Figueira ou num outro lugar ainda mais longe, mas logo aparecia a casa.

Quando o avô "alvanéu" trabalhava em obras por perto, ele passava por lá várias vezes durante o dia a empatar, porque, queria aprender a pedreiro com o avô e pedia-lhe para ser ele a assentar tijolos em paredes ou a rebocar e o avô fazia-lhe a vontade, deixava-o fazer mal, depois corrigia e ele ficava muito orgulhoso a dizer a toda a gente que tinha ajudado a construir aquela casa, ás vezes andava à volta dos pedreiros a fingir que apreciava o seu trabalho, e eles na brincadeira perguntavam-lhe se o achava bem feito, e ele arvorado em mestre, respondia que estavam a fazer um bom trabalho, estava tudo muito bem feito, depois, quando se cansava de andar junto dos pedreiros ia chatear o servente e dizia-lhe: 

Chiquinho: Ó "sorvente", vai lá levar ladrilhos (tijolos) ao meu avô! 

Servente: Não vou, não Chiquinho, o teu avô não pediu ladrilhos, não posso levar para lá muitos, senão ele não tem espaço para trabalhar, e fazem lá mal! 

Chiquinho: Ó "sorvente", então vai lá levar cal (cimento) aos alvanéus! 

Servente: Não vou, não Chiquinho, eles não pediram e se levo para lá muita cal, depois seca! Eu só levo para lá material quando eles pedirem, eles é que dizem quando é preciso!

Chiquinho: Ó "sorvente", eu vim de lá agora e vi que não têm lá cal e o meu avô disse que o que eu disser ao "sorvente" ele tem de fazer!

Servente: Está bem, eu faço tudo o que tu mandares, menos isso, senão depois eu é que fico em maus lençóis e tu vais-te embora para casa!

Chiquinho: Ó "sorvente", então se fazes tudo o que eu mandar, vai andar comigo de carro de mão! 

Servente: É mesmo agora, quem manda és tu! Vamos só dizer ao teu avô, e como o carro de mão está lá dentro, podes vir logo nele! 

O servente foi dizer ao avô do Chiquinho se podia dar uma voltinha com ele no carro de mão, e como não precisavam de material naquele momento, o avô disse que sim, mas para não se demorar. 

O carro de mão estava dentro da casa da obra e o servente pegou no Chiquinho, sentou-o lá dentro e disse-lhe para se agarrar bem, para não cair e ele agarrou-se aos dois lados do carro, mas ao passar pela porta o servente não reparou e entalou-lhe as mãos nas ombreiras e fez uns arranhões que deitaram umas gotas de sangue, o Chiquinho começou a chorar e fez uma birra que assustou toda a gente, até acudiram as vizinhas pensando que tinha acontecido alguma desgraça na obra, mas viram que não era nada, mas quanto mais lhe diziam que não era nada, mais ele chorava e o avô foi encaminhá-lo para casa e disse-lhe que fosse ter com a avó para o curar. 

O Chiquinho foi indo a soluçar, mas quando se aproximou de casa começou, novamente o pranto para chamar a atenção da avó e das tias, que vieram a correr pensando que ele tinha caído, ou que tivesse sido picado por vespas ou outro acidente e quando lhe perguntaram o que lhe tinha acontecido, não conseguiam perceber, ele dizia: - Tive um desastre, e chorava, chorava e não o entendiam até que, lá perceberam: - Tive um desastre! 

Avó: Áh, tiveste um desastre? Como é que isso foi? Caiu-te alguma parede em cima? Não vejo nada!

A todas as perguntas da avó, o Chiquinho abanava a cabeça, negativamente! 

Avó: Então, assim não sei o que te aconteceu! Pára de chorar e diz lá como foi o desastre?

O Chiquinho desde a chegada que estava com as mãos estendidas para a frente, a mostrar os ferimentos, até que a avó viu os  arranhões, e exclamou: 

Avó: Áh o desastre foi isso? Então como aconteceu? 

Chiquinho: Foi um desastre de carro, de carro de mão, foi o "sorvente" do avô que me quis matar! 

Avó: Cala-te Chiquinho, o servente gosta muito de ti, porque havia de te querer matar? 

Chiquinho: Sim, sim quis, só que não conseguiu, foi por eu lhe dar ordens para trabalhar! 

Avó: Pronto, está bem, a avó depois puxa-lhe as orelhas, vamos lá tratar os arranhões e já deixam de doer!

Enquanto a avó lavava os arranhões e passava água oxigenada foi outro pranto, mas por fim acalmou-se, e quando  o avô veio do trabalho contou como tinha acontecido, e adiantou que eram só uns arranhões sem importância, mas o Chiquinho continuava a dizer que tinha sido um desastre de carro de mão e que o "sorvente" o quis matar, e dizia que nunca mais chegava ao pé dele e a partir daquele dia nunca mais se aproximou daquela obra do avô, onde deixou alguma pele, sendo mais uma lição de vida, que serviu para no futuro se acautelar e pensar onde põe as mãos.

Fim 

Texto: Correia Manuel   

Aldeia de Ferreira - Capelins de Baixo




domingo, 2 de julho de 2023

Memórias do Chiquinho de Capelins, quando foi à tourada a Reguengos de Monsaraz

Memórias do Chiquinho de Capelins, quando foi à tourada a Reguengos de Monsaraz 

Nos alvores da década de 1960, cerca de quinze dias antes da Feira de Santa Maria, no dia quinze de Agosto em Reguengos de Monsaraz, o avô do Chiquinho de Capelins, perguntou-lhe se queria ir com ele ver a corrida de touros na dita Feira, onde o cabeça do cartel era José Mestre Baptista. 

O Chiquinho deu pulos de contente, dizendo que sim, gostava muito de ir, mas o avô adiantou que, só podia ir se o pai o deixasse, assim, logo que tivesse vagar ia a Capelins de Cima falar com ele para ficar tudo acertado. 

Passaram uns dias e o avô passou pela casa do pai do Chiquinho e disse-lhe que ia à Feira de Santa Maria e queria-o levar com ele a ver a tourada e o pai respondeu que, também iam à Feira, mas como não ligavam, não iam à tourada, no entanto, podiam ir todos na carroça, partiam dali à volta das cinco horas da manhã e antes das oito horas já estariam na estalagem, onde deixavam o macho e a carroça e se a tourada acabasse tarde até podiam lá dormir e, assim ficou combinado.

Na madrugada de 15 de Agosto saíram de Capelins, pelo Monte da Sina, Fontanas, Santa Clara, Santiago Maior, até Reguengos de Monsaraz, onde chegaram ainda cedo e o avô foi logo a correr comprar os bilhetes para a corrida, para ele e para o Chiquinho, porque, sabia que ia ser grande enchente, demorou algum tempo na fila da bilheteira e, quando voltou disse que tinha apanhado os bilhetes, mesmo à tabela e eram para o setor do sol, mas como a corrida só começava às cinco da tarde, a essa hora já se aguentava bem o sol, esquecendo que, dentro da praça era diferente do campo, e acrescentou que tinham de estar à porta de entrada pelas quatro horas, porque era muita gente e quanto mais perto das cinco horas, maior era a confusão.  

Andaram pela Feira a fazer algumas compras, comeram lá na estalagem e à hora marcada, lá foram para a praça de touros, não levaram muito tempo a entrar e ainda devia faltar mais de meia hora para o início da tourada e já estavam em brasa, a assar nos seus lugares debaixo de sol de uns 40 graus C, mas o movimento era tanto e o ambiente festivo faziam esquecer o sofrimento. 

O Chiquinho e o avô já estavam com o olho na entrada dos cavaleiros, bandarilheiros, forcados, e em toda a parafernália, assim como, nos aficionados e aficionadas, algumas entravam carregadas de flores para depois atirar aos toureiros e forcados  para a praça, e o avô do Chiquinho observava a multidão na tentativa de vislumbrar alguém conhecido lá da Freguesia ou dos arredores, até que, começou a apontar em frente, com o indicador, para o setor da boa sombra e a dizer alto: - Ó neto, olha lá onde está o meu dinheiro! Ó neto, olha lá onde está o meu dinheiro! E repetia, sem se calar, apesar do Chiquinho, muito envergonhado, lhe pedir para estar calado, porque estava toda a gente a olhar para ele, sem ninguém perceber o que se passava e o Chiquinho pensou que o avô tinha apanhado alguma insolação e estava a variar e ainda procurou um sítio onde se esconder, mas não havia nenhum por perto, a sorte foi que, naquele momento, a festa taurina começou, entraram na praça, os cavaleiros, bandarilheiros e forcados e, o espetáculo do avô acabou ali. 

A corrida foi espetacular, correu normalmente, apenas a queda de alguns forcados, e quando estava quase no fim, o avô e o Chiquinho saíram apressados, porque a carroça estava pronta para partir e tinham muito caminho a fazer até Capelins, mas assim que saíram da praça de touros, o Chiquinho perguntou ao avô, porque tinha feito aquela figura, e ele contou-lhe que, o homem com o chapéu à toureiro, que estava mesmo na sua frente, na rica sombra, era o seu compadre Manel que no dia anterior lhe tinha pedido quinhentos mil réis (quinhentos escudos) emprestados, dizendo que era para ir com a mulher ao médico Doutor Jeremias a Vila Viçosa, e para comprar as mésinhas, ora, como era para a doença, não os podia negar, mas como viste enganou-me e isso não se faz, a gente fomos para o sol e ele foi para a sombra com o meu dinheiro, pois olha neto, nunca mais ficamos ao sol, desabafou o avô!

Como o compadre Manel viu que o avô estava zangado lá na praça de touros, no dia seguinte foi pagar-lhe, antes do tempo que tinham combinado, que seria daí a quinze dias, quando recebesse o dinheiro da venda do trigo no Grémio do Alandroal, mas, parece que, foi pedir o dinheiro a um familiar, porque ficou envergonhado, ainda tentou desculpar-se dizendo que se dissesse a verdade o avô não lhe emprestava o dinheiro, mas não houve muita conversa, porque o avô sentia-se enganado, recebeu o dinheiro e pouco falaram. 

Passados uns tempos, o Chiquinho foi com o avô a assistir a outra tourada na praça de touros do Redondo, num dia 4 de Outubro, na Feira de S. Francisco e, embora o calor do sol no mês de Outubro não fosse comparável com o do mês de Agosto, já ficaram sentados no setor do sol e sombra e, quando começou a corrida já estavam à sombra, porque o acontecimento na tourada de Reguengos de Monsaraz, ainda não estava esquecido.

Fim 

Texto: Correia Manuel 


Aldeia de Ferreira - Capelins de Baixo






Povoado de Miguéns - Capelins - 5.000 anos

  Povoado de Miguéns -  Capelins - 5.000 anos Conforme podemos verificar nos estudos de diversos arqueólogos, já existiam alguns povoados na...