sábado, 21 de setembro de 2019

Convento de Nossa Senhora da Orada - Monsaraz

Breve História do Convento de Nossa Senhora da Orada, dos Eremitas Descalços de Santo Agostinho em Ferragudo, Monsaraz
Santo Agostinho de Hipona, nasceu em Tagaste, na Argélia, no dia 13 de Novembro do ano de 354 e faleceu em Hipona, Argélia no dia 28 de Agosto do ano de 430! 
Santo Agostinho foi Bispo de Hipona e, um dos mais importantes teólogos e filósofos dos primeiros séculos do Cristianismo, escreveu várias obras, destacando-se "A cidade de Deus" e "Confissão" que, atualmente, ainda se estudam! 
Em 1298, Santo Agostinho foi reconhecido Santo pelo Papa Bonifácio VIII, mas já tinha sido canonizado por aclamação popular, devido ao grande número de seguidores do seu pensamento e da sua filosofia de vida, designados Eremitas  de Santo Agostinho! 
Após o Concílio de Latrão de 1059, surgiu a primeira Congregação chamada Cónegos Regrantes da Ordem de Santo Agostinho que seguiram duas vias principais, uma mais rigorosa e severa, apontando o caminho da clausura reforçada pelo jejum, pela castidade, pelo silêncio, pelo trabalho manual e pelo serviço coral e divino e, a outra mais moderada!   
Como existiam muitos grupos de Eremitas de Santo Agostinho, por várias vezes, alguns Papas fizeram a sua união, até que, em 1567 o Papa Pio V deu-lhe o estatuto de Mendicantes e, novamente surgiram dois ramos: A Congregação dos Ricoletos da Ordem de Santo Agostinho e, em 1588 a Congregação dos Eremitas Descalços da Ordem de Santo Agostinho! 
Os seguidores do pensamento de Santo Agostinho surgiram em Lisboa no ano de 1147, em simultâneo com a conquista desta cidade pelo rei D. Afonso Henriques aos Mouros, eram apenas dois, fizeram um pequeno Eremitério em S. Gens e, passados alguns anos fundaram o primeiro Convento de Santo Agostinho, depois designado por Convento da Graça! 
A Congregação dos Eremitas Descalços da Ordem de Santo Agostinho que, já existiam desde 1588, chegou a Portugal no ano de 1664, construindo o seu primeiro Eremitério no sítio do Grilo, levando a população que gostava muito deles, a designá-los por Frades Grilo, apresentavam muita pobreza, usavam uma simples cobertura de lã rude e andavam descalços!
Os Eremitas da Ordem de Santo Agostinho, foram muito bem recebidos em Portugal, construindo cerca de uma centena de Mosteiros e Conventos, de norte a sul, sendo 43 dos Cónegos Regrantes de Santo Agostinho, 2 de Cónegas Regrantes de Santo Agostinho, 26 dos Eremitas Calçados de Santo Agostinho, 6 de Eremitas Calçadas de Santo Agostinho, 17 de Eremitas Descalços de Santo Agostinho e 1 de Eremitas Descalças de Santo Agostinho!
A Congregação ou Ordem dos Eremitas Descalços de Santo Agostinho, atingiu o seu auge, pelo ano de 1700, com cerca de 2000 membros, assim, nesta época foram construídos vários conventos, entre os quais, sete no Alentejo, Portalegre, Évora, Montemor-O-Novo, Estremoz, Orada - Monsaraz, Mourão e Grândola!  
A Ordem dos Eremitas Descalços de Santo Agostinho, ou Agostinhos Descalços, logo que chegaram a Portugal escolheram o Termo (Concelho) de Monsaraz, para a construção de um Convento, então, em 1670, por alvará do rei D. Afonso VI, o mesmo, foi autorizado e, começaram as negociações com o Arcebispo de Évora D. Pedro de Lencastre e, com o Priorado de Monsaraz, sobre o lugar e as condições da sua implementação! 
Depois de alguns estudos feitos por Fr. Manuel da Conceição, responsável pela introdução da Ordem em Portugal e, por outros religiosos, a escolha do sítio onde o Convento  seria edificado, foi exatamente no lugar onde estava situada a Capela de Nossa Senhora da Orada, no Ferragudo, que tinha sido construída por encomenda de D. Nuno Álvares Pereira no início do decénio de 1380, na qual, o condestável gostava de orar quando estava por estas bandas, antes da partida para as batalhas com os castelhanos, então, para construir o Convento, a Capela teve de ser demolida, ficando o seu lugar marcado pelo cruzeiro que se encontra fronteiro à igreja! 
A Ermida de Nossa Senhora da Orada tinha sofrido profundas alterações nos finais do século XVI, tendo passado para a comenda da Ordem de Cristo por vontade do Duque de Bragança, assim, a mesma foi imediatamente entregue à Ordem dos Eremitas Descalços de Santo Agostinho, onde, desde 10 de Abril de 1673 começaram a chegar religiosos, chegando a 20, ainda antes de 1700! 
No ano de 1700, o Convento de Nossa Senhora da Orada, começou a ser construído com o incentivo do padre João Calvário daquela Ordem, a qual, também ordenava padres e, do Pároco da Paróquia de S. Tiago, porém, devido à sua dimensão, por falta de financiamento, só foi concluído em 28 de Agosto de 1741! 
O edifício é de planta quadrada, apresenta uma igreja a Sul e um claustro central, é de arquitetura bastante sóbria, constituído por dois pisos, sendo que, no piso superior, são visíveis pequenas janelas de moldura simples, quadrangular e em pedra, correspondendo aos vãos das antigas celas dos eremitas que, não deviam ser, em simultâneo, mais de doze, a quinze, incluindo os leigos!
A fachada principal que é composta pela frontaria da nave e do campanário foi alterada devido à sua destruição pelo terramoto de 1755, sendo, então,  construído, sobre a cornija, um frontão ondulado com nicho! No piso superior, um nártex ladeado por duas janelas e três janelões, compõem esta fachada pintada de branco! 
No seu interior, o edifício define-se pela articulação vertical de dois pisos com coberturas diferenciadas em abóbadas de berço e a talha que ainda existe nos altares da igreja, conserva parte da decoração original de ornatos e festões vegetalistas! 
O Convento de Nossa Senhora da Orada, entre 1673 e 1820, quando foi inserido no Convento dos Eremitas Descalços de Santo Agostinho, acolheu cerca de 32 Eremitas Descalços daquela Ordem, cujo número, nome, naturalidade e data de entrada no Convento foram os seguintes: 
55 - Pe. Fr. Nicolau da Purigicação, de Santa Maria Monsaraz,  15- 02 - 1673; 
57 - Pe. Fr. Manuel de Santo Ignácio, de S. Pedro de Fratel, Guarda, 10 - 04- 1673; 
58 - Pe. Fr. Guilherme de Amor Divino, de Vila de Fronteira, 10 - 04 -1673;
72 - Fr. António da Conceição, de Freguesia de Cordovil dos Reguengos, 10 - 09- 1673;
81 - Fr. Manuel de Jesus, de Vila de Portel, 02 - 01 - 1674; 
82 - Fr. Pedro da Orada, de Vila de Portel, 17 - 01- 1674; 
83 - Fr. Manuel do Sacramento, de Vila de Portel, 17 - 01 - 1674; 
154 - Fr. Manuel do Nascimento, de Penalva, Viseu, 04 - 06 - 1675;
180 - Fr. Gregório de Santo António, de Fundão, Guarda, 10 - 02 - 1677;
191 - Fr. Domingos de Santa Maria, de Villares, Trancoso, 17 - 06 - 1677; 
251 - Fr. Gaspar do Espírito Santo, sem indicação de naturalidade, 16 - 08 - 1680; 
252 - Fr. Diogo do Rosário, de Estremoz, 18 - 08 - 1680;
265 - Fr. Manuel de Madre de Deus, mudou para Fr. Manuel da Consolação, de Elvas, 31 - 08 - 1681;  
266 - Fr. João dos Santos, de Linhares, Bispado de Coimbra, 08 - 12 - 1681; 
286 - Fr. João de Deus, de Santa Engrácia, Lisboa, 27 - 07 -1683;
288 - Fr. Domingos de Madre de Deus, de Linhares, Bispado de Coimbra, sem data de entrada;
324 - Fr. João de Santa Catharina, de Vila de Monsaraz, 04 - 07 - 1688;
390 - Fr. Sebastião da Orada, de Vila de Monsaraz, 06 - 09 - 1694; 
434 - Fr. Manuel dos Reis, de Évora, 28 - 04 - 1694; 
444 - Fr. Manuel do Rosário, de Évora, 11 - 05 - 1698; 
577 - Fr. Thomé da Orada, de Vila de Monsaraz, 27 - 12 - 1713; 
870 - Fr. Sebastião da Orada, de Atalaia, Pinhel,  23 - 01 - 1731;
1911 - Fr. António de Estrella (transitou), de Portalegre, 29 - 09 - 1742; 
1406 - Fr. José de S. Vicente, de Manigoto, Pinhel, 06 - 08 - 1780; 
1512 - Fr. António de Nossa senhora da Orada, de Vila de Monsaraz, 29 - 09 - 1785;
1513 - Fr. Francisco de Nossa senhora da Orada, de Vila de Monsaraz, 29 - 09 - 1785;
1739 - Fr. João do Rosário, de Évora, 09 - 12 - 1796; 
1750 - Fr. António de S. Roque, de Vila de Monsaraz, 20 - 03 - 1797; 
1754 - Fr. Joaquim de Santa Cecília (organista), de Évora, 29 - 03 - 1797; 
1762 - Fr. Bento da Purificação, de Vila de Mourão, 12 - 04 - 1797; 
1767 - Fr. Joaquim da Pureza de Nossa Senhora, de Nisa, 19 - 06 - 1797; 
1769 - Fr. Fernando de S. Remígio, de Vila de Mourão, 12 - 07 - 1797. 
Os Eremitas Descalços de Santo Agostinho, do Convento de Nossa Senhora da Orada, tal como os seus congéneres, depois de passarem por leigos, faziam o voto de profissão religiosa, andavam descalços e vestiam apenas uma cobertura de lã rude como sinal externo de desprendimento de penitência e de entrega total à Divina Providência, no entanto, o Convento tinha muitos bens, propriedades e muito dinheiro, provenientes de doações, os quais, os irmãos não usavam em proveito próprio, mas ajudavam o próximo, serviam de modelo às populações devido aos seus ensinamentos e estilo de vida, da forma organizada e bem preparada que utilizavam para intervir junto das populações que, a eles recorriam em momentos de júbilo ou, por necessidades de vária ordem, calamidades causadas por  guerras, pestes, fome, doenças e outras situações! 
Como prova de que, este Convento tinha muito dinheiro, o qual, emprestava com escritura de juro, vejamos o caso do cidadão de Évora, Nicolau Barreto de Andrade que, em 1713 contraiu um empréstimo junto do Convento de Nossa Senhora da Orada, no termo (Concelho) de Monsaraz, de 200.000 réis, assinando um contrato, no qual, se comprometia a pagar 5 % de juro ao ano! Como garantia, hipotecou as casas onde vivia, localizadas na Rua do Paço (Adro de S. Francisco) em Évora e a herdade de Almeirim sita nos Coutos de Évora que, antes da hipoteca estava arrendada por 4 moios de pão terçado, uma marrã e um carneiro por ano, porém, talvez devido à doença, associada à família numerosa, tinha seis filhos, não conseguiu pagar os juros ao Convento, então, estes bens foram sequestrados e ficou na miséria, valendo-lhe a Santa Casa da Misericórdia de Évora que, começou a dar-lhe uma mesada de 480 réis! Não sabemos se o Convento de Nossa Senhora da Orada o ajudou, mas parece que, o cidadão Nicolau Barreto de Andrade, perdeu a herdade de Almeirim, ficando com as casas para morar com a sua família, decerto, mais confortável do que os Eremitas Descalços do Convento de Nossa Senhora da Orada que, lhe emprestou 200.000 réis, muito dinheiro nessa época! Era assim, a sua regra de vida!  
Em 1820, por ocasião da reestruturação da Ordem, foram anexados ao Convento de Santa Maria de Portalegre parte dos bens do então extinto Convento de Nossa Senhora da Orada, de Ferragudo, Monsaraz, fixando-se, então, em doze religiosos e três leigos os membros da Congregação de Portalegre! Este número de Eremitas Descalços de Santo Agostinho demonstra que, já em 1820, a Ordem estava em crise e a Congregação do Convento de Nossa Senhora da Orada foi extinta por falta de religiosos!
A documentação deste Convento, encontra-se no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, conforme se pode verificar na seguinte publicação: 
CONVENTO DE NOSSA SENHORA DA ORADA DE MONSARAZ
NÍVEL DE DESCRIÇÃO
Fundo Fundo
CÓDIGO DE REFERÊNCIA
PT/TT/CNSOM
TIPO DE TÍTULO
Atribuído
DATAS DE PRODUÇÃO
1673 A data é certa a 1673 A data é certa
DIMENSÃO E SUPORTE
1 liv.; papel
HISTÓRIA ADMINISTRATIVA/BIOGRÁFICA/FAMILIAR
O Convento de Nossa Senhora da Orada de Monsaraz era masculino, e pertencia à Ordem dos Eremitas Descalços de Santo Agostinho (Agostinhos Descalços).
Em 1700, o convento foi fundado.
Em 1741, foram concluídas as obras.
Em 1755, o edifício foi afectado pelo terramoto.
Em 1834, no âmbito da "Reforma geral eclesiástica" empreendida pelo Ministro e Secretário de Estado, Joaquim António de Aguiar, executada pela Comissão da Reforma Geral do Clero (1833-1837), pelo Decreto de 30 de Maio, foram extintos todos os conventos, mosteiros, colégios, hospícios e casas de religiosos de todas as ordens religiosas, ficando as de religiosas, sujeitas aos respectivos bispos, até à morte da última freira, data do encerramento definitivo.
Os bens foram incorporados nos Próprios da Fazenda Nacional.
HISTÓRIA CUSTODIAL E ARQUIVÍSTICA
Não é ainda conhecida a história custodial desta documentação.
No final da década de 1990, foi abandonada a arrumação geográfica por nome das localidades onde se situavam os conventos ou mosteiros, para adoptar a agregação dos fundos por ordens religiosas.
ÂMBITO E CONTEÚDO
Contém livro de profissões dos religiosos.
Guia de Fundos Eclesiásticos; Ordem dos Eremitas Descalços de Santo Agostinho; Masculino
SISTEMA DE ORGANIZAÇÃO
Ordenação numérica específica para cada tipo de unidade de instalação (livro).
INSTRUMENTOS DE PESQUISA
ARQUIVO NACIONAL DA TORRE DO TOMBO - [Base de dados de descrição arquivística]. [Em linha]. Lisboa: ANTT, 2000- . Disponível no Sítio Web e na Sala de Referência da Torre do Tombo. Em actualização permanente.
Índice (inventário) dos livros de diversos conventos, ordens militares e outras corporações religiosas guardados no Arquivo da Torre do Tombo, conventos diversos, caderneta 3 (Santo Elói a Teatinos) (C 270) f. 83. Descreve 1 livro.
UNIDADES DE DESCRIÇÃO RELACIONADAS
Portugal, Torre do Tombo, Ministério das Finanças, cx. 2238, inv. n.º 269
DATA DE CRIAÇÃO
04/04/2011 00:00:00
ÚLTIMA MODIFICAÇÃO
02/02/2017 13:27:30 

Fim 

(Com base na consulta de vários documentos na internet) 

Convento de Nossa Senhora da Orada em Ferragudo - Monsaraz



quinta-feira, 12 de setembro de 2019

Guerra da Restauração Uma incursão no termo de Monsaraz (28 e 29 de Setembro de 1645) - O rebate em Évora

Guerra da Restauração
Uma incursão no termo de Monsaraz (28 e 29 de Setembro de 1645) - O rebate em Évora

Conforme tinha sido referido na primeira parte desta série, um dos documentos inéditos acerca desta operação reporta-se ao sucedido em Évora, quando aí chegaram as notícias da entrada da força espanhola no termo de Monsaraz. É esse documento que a seguir se transcreve:
Sexta-feira, 29 de Setembro de 1645, dia de S. Miguel, pouco depois do meio dia, chegou recado ao capitão-mor Luís de Miranda de João de Mira, lavrador, capitão do campo da freguesia de S. Vicente, que aquela manhã vinha entrando grande poder de gente castelhana, tanto avante que entendeu que marchava para esta cidade. Mandou logo o capitão-mor chamar o sargento-mor, que viesse correndo a casa do chantre para que mandasse picar o relógio a rebate e fizesse fechar todas as portas da cidade, tirando a de Alconchel, e tocarem caixa todas as companhias; fosse tudo com muita diligência, cerrando-se as portas das estacadas, que algumas estavam no chão. Acudiram a casa do capitão-mor todos os oficiais, e o capitão Luís da Silva Vasconcelos ia correndo pela cidade a cavalo dizendo “Arma, senhores, arma”, o que causou grande perturbação nas mulheres, levantando a esta voz seus choros e gritos. Levou-se o recado ao Cabido, porquanto o senhor chantre estava de cama sangrando daquela manhã, presidindo o tesoureiro-mor Dom Veríssimo, e se mandou logo a todos os clérigos da cidade que tomassem armas, e mandaram recado a todos os conventos de religiosos para que estivessem prestes. O primeiro de todos que se foi oferecer ao capitão-mor foi Dom Rodrigo de Melo, arcediago e cónego da sé, com 24 criados armados; o mesmo fez Dom Teotónio Manuel e Dom Veríssimo, a que se seguiu uma numerosa companhia de clérigos, que levavam por capitão o mestre-escola Duarte de Vasconcelos com um arcabuz às costas, e os mais todos armados com mosquetes e espingardas. O mesmo fizeram todos os fidalgos da terra, como foram Fernão Martins Freire, seu filho Luís Freire, Henrique de Melo de Azambuja, Manuel de Mendo, Martim Ferreira da Câmara, Jorge da Silva Velho, Rui de Brito, Dom João Solis, Vasco de Melo e toda a nobreza da cidade. Foi a gente tanta que se puderam coroar os muros, porém contentou-se o capitão-mor em mandar ocupar a praça com um grande corpo de guarda, e em cada porta da cidade outro, e pelos muros, em cada ponta do lenço, um soldado de vigia.  Com o repique do relógio acudiu muita parte da gente que andava na vindima ao longo da cidade, e trouxeram consigo o gado que tinham. A gente de cavalo se ajuntou também na praça com seu capitão João de Macedo, não chegavam a cento, deles escolheu o capitão-mor uma tropa de vinte e cinco, que com o mesmo João de Macedo mandou que fossem pelo caminho de Montoito, por onde diziam que o inimigo vinha, até achar língua, e que não passasse de Montoito. Estando todas as coisas neste estado, chegou um correio de Elvas, que mandava o Conde general ao capitão-mor, pedindo-lhe cavalgaduras de carga para a bagagem do nosso exército, em caso que o inimigo saísse de Badajoz, donde até então não tinha partido. Veio este correio por Vila Viçosa e pelo Redondo e chegou à cidade às quatro horas, sem em todo o caminho se achar nova, nem rumor algum da entrada dos inimigos, por onde se entendeu que o lavrador João de Mira se enganou em cuidar que marchavam os castelhanos pela terra dentro. A certeza deste discurso se confirmou logo, porque pouco depois chegou recado de João de Mira que os castelhanos, chegando a algumas herdades, tomavam o gado e roubavam as casas e se tornavam. Mandou logo o capitão-mor este recado ao senhor chantre, com o qual se recolheram os eclesiásticos e fidalgos, mas a cidade ainda se ficou guardando pela gente da ordenança. O capitão João de Macedo passou a noite em Montoito, onde se ouviram muitas peças de artilharia e muitos mosquetes. E ao outro dia se soube como saindo alguma gente daquelas freguesias a esperar os inimigos no vau por onde dizem que entraram, lhe deram algumas cargas, com que lhe fizeram deixar todo o gado que levavam, com morte de cinco castelhanos, fugindo os outros todos, muitos deles feridos, deixando alguns cavalos. O padre regedor da Universidade mandou repicar o sino do colégio, e como eram férias e não vindos ainda os estudantes de fora, acudiram somente alguns da cidade, que não chegaram a fazer número de trinta, mas esses armados, e mandando-lhe o reitor dar sua bandeira e tambor, saíram pela cidade até casa do capitão-mor, e tornando ao colégio ficaram toda a noite guardando a trincheira da cerca.
Os castelhanos dizem que eram sete tropas, e segundo isto não podiam chegar a duzentos e cinquenta, ainda que ao outro lhe pareceu que eram quinhentos. O guia desta gente era um negro escravo de um fidalgo de Monsaraz que tinha fugido para Castela, este, como conhecia todos os lavradores daquele território e os portos por donde se podia passar o Guadiana, os devia persuadir a fazerem esta entrada, ou com esta ocasião a tomaram eles, por onde parece isto era gente solta de Xerês e Ensinasola e Aroche. O negro os trouxe pelas herdades dos mais ricos, ou dos menos amigos, mas como pela artilharia de Mourão viram que eram sentidos, procuraram logo voltar, e nas herdades onde achavam resistência passavam por se não deter.
FonteEntrada de Castelhanos no campo de Monçaràs e rebate de Évora (Biblioteca Nacional de Madrid, ms. 8187, fls. 41 v-42 v). 
Monsaraz



Guerra da Restauração 1640 - 1668

Guerra da Restauração 1640 - 1668

A última campanha de Mateus Rodrigues - a reconquista de Mourão, Outubro - Novembro de 1657

A derradeira presença do soldado Mateus Rodrigues no Alentejo ocorreu entre 1657 e 1658, mas deste período apenas deixou uma descrição detalhada da campanha de Mourão. Abandonara o exército da província do Alentejo nos inícios de Fevereiro de 1654, ao fim de quase doze anos e meio de serviço e poucos dias antes da publicação do decreto régio que fixava em oito anos consecutivos o máximo tempo de serviço que um soldado pago devia cumprir antes de ser desmobilizado. Regressado à sua Águeda natal, ali casou, o que devia escusá-lo definitivamente de ser reconduzido ao cenário de guerra. No entanto, regressaria ao Alentejo três anos depois, obrigado pela fome. De acordo com as suas palavras,
(…) ninguém diga deste pão não hei-de comer, por farto que se veja, porque lá vem um ano mau de fome que obriga a comer (…) tudo quanto há. Pois o fim foi (…) que para mim houve tanta fome (…) que me obrigou a que fosse outra vez a ver as ditas guerras, desterrando-me a fortuna um ano inteiro fora de minha casa. (Memorial de Matheus Roiz, pg. 423)
O destaque dado à campanha de Mourão no derradeiro capítulo das suas memórias é justificado pelo soldado de cavalos pela sua afeição a Joane Mendes de Vasconcelos. Desejava assim destacar a “fama, valor e sabedoria” daquele cabo de guerra, logo secundado, na admiração e devoção do autor, pela figura de André de Albuquerque Ribafria.
Olivença e Mourão caíram em poder dos espanhóis no decurso da campanha de 1657. Se a primeira daquelas praças, tomada em Maio, foi uma perda de monta, principalmente pelo impacto negativo no moral (era uma das principais da fronteira alentejana e um dos vértices do triângulo defensivo Elvas-Campo Maior-Olivença), já Mourão – perdida em Junho – se revelou um problema maior para os portugueses. A partir dali, o inimigo fazia incursões nos campos do termo de Monsaraz, rapinando lavouras e gado, aldeias e montes, o que levava muitos moradores a abandonarem os seus haveres e casas, não se sentindo seguros.
Entradas de maior envergadura e alcance levaram a cavalaria inimiga até demasiado perto de Évora. Daí as repetidas queixas e solicitações à Rainha regente, para que ordenasse a reconquista de Mourão e o fim dos sobressaltos. É que sendo a região em redor de Olivença pouco povoada, não dava a perda daquela praça tantas preocupações como Mourão, cuja posse abria caminho ao controlo ou saqueio de vastas e férteis terras.
A Rainha acabou por ordenar a Joane Mendes de Vasconcelos que preparasse uma campanha destinada a retomar a praça. Todo o processo foi mantido em segredo, para que não constasse o verdadeiro objectivo do exército a formar. A partir daqui, sigamos a narrativa de Mateus Rodrigues.
Junta a gente das províncias, como era um terço de infantaria do Algarve muito bom, mas pequeno; e os de Lisboa, um terço novo da Câmara, e o da Armada; e com as tropas da Beira e muita quantidade de auxiliares de todas as comarcas deste Reino, para ficarem de guarnição nas praças, se saiu na maneira seguinte:
Aos vinte e um dias de Outubro, ao domingo à tarde, saiu o senhor Joane Mendes e o senhor André de Albuquerque com a maior parte do exército e com toda a artilharia, que constava de seis meios-canhões de 24 libras e oito peças de 12 libras e trabucos e outros artifícios de fogo.
Chegaram a Vila Viçosa pela manhã, onde fizeram alto até à tarde, donde se puseram outra vez em marcha. E chegando no outro dia pela manhã a Terena, que são duas léguas, mas muito grandes e de muito mau caminho para a artilharia, (…) aí fizeram alto e por decurso da tarde começaram a marchar, chegando à quarta-feira a Monsaraz, que já não fica mais de uma légua de Mourão. E aí se fez alto até de noite, que começou a marchar a carriagem para Mourão.
Tornando agora (…) atrás, digo que Dom Sancho Manuel, mestre de campo general na província do Alentejo, que suposto governa o partido de Penamacor, foi feito por Sua Majestade, na ocasião desta campanha, mestre de campo general, e daí ficou para sempre, (…) que merece como todos o metam na conta, como é o general da artilharia Afonso Furtado de Mendonça, que obrou em seu cargo como adiante se verá.
Digo que Dom Sancho Manuel marchou diante do grosso do exército com seis terços de infantaria e um grosso de cavalaria de 600 cavalos com suas bagagens, e quando o nosso exército chegou a Monsaraz à quarta-feira, já Dom Sancho tinha amanhecido com o seu grosso à roda de Mourão, atacando a praça, de modo que nunca foi possível poder o inimigo lançar fora aviso algum, e alguns que botava, todos lhos apanhavam cá fora. E como o inimigo não via mais que aquele pouco grosso, fazia zombaria dos nossos. Começou a jogar com sua artilharia e mosquetaria, mas com pouco efeito, porquanto os nossos estavam encobertos e não recebiam dano do inimigo, nem o inimigo também recebia dos nossos, porque eles não podiam pelejar em forma até que não chegasse o nosso exército todo junto. (MMR, pgs. 427-429).

Blog de História Militar dedicado à Guerra da Restauração ou da Aclamação, 1641-1668

Monsaraz

A incursão a Villanueva del Fresno, 17 de Setembro de 1642

Segundo o soldado de cavalos Mateus Rodrigues, a incursão a Villanueva del Fresno em Setembro de 1642 foi o único sucesso digno de menção comandado pelo general da cavalaria do Alentejo, o Monteiro-Mor D. Francisco de Melo. Esta é a opinião não filtrada pela narrativa propagandística desses primeiros tempos da Guerra da Restauração, emitida por um soldado que participou em muitas acções.
 Percorrendo outras fontes, encontramos versões mais simpáticas para o general, não só em relações avulsas, como nas mais extensas narrativas de Aires Varela ou Luís Marinho de Azevedo.
 Em todo o caso, a incursão às terras de Villanueva del Fresno foi apenas uma das muitas pequenas operações da guerra de fronteira. No caso, destinava~se a castigar a cavalaria daquela localidade, cujo poder atemorizava os moradores do termo de Mourão, pois era ali tão forte que pilhava e se passeava à vontade pelos campos. Os efectivos eram conhecidos dos portugueses: um soldado de cavalos castelhano tinha desertado na sequência de uma briga que tivera com o seu tenente, a quem ferira gravemente, e temendo ser enforcado, fugira para Mourão; interrogado, informara D. Francisco de Melo que a força de cavalaria que havia em Villanueva del Fresno era composta por três companhias pagas e duas milicianas, estas com cerca de 80 cavalos.
 Saiu o general de Olivença no dia 16 com 300 ou 400 cavalos (os números apresentados por Aires Varela e Luís Marinho de Azevedo são diferentes), fazendo as vezes de comissário geral o coronel francês François de Huybert de Chantereine (o comissário geral Gaspar Pinto Pestana ficara em Olivença, bastante doente). Conforme refere Mateus Rodrigues, a cavalaria portuguesa tomou um caminho mais longo para não ser detectada, cerca de nove léguas entre Olivença e Mourão, e mais duas dali a Villanueva del Fresno. Na vanguarda ia a companhia do comissário Pinto Pestana, comandada pelo seu tenente Manuel da Costa Monteiro, e a retaguarda cabia à companhia do tenente-general D. Rodrigo de Castro (também ausente da operação), comandada pelo tenente António Machado da França. Pelo caminho, por alturas de Monsaraz, juntou-se o coronel francês Montjouant com o seu regimento (provavelmente, apenas duas companhias). A cavalaria chegou de noite a Mourão e aí descansou.
 No dia seguinte, pelas dez horas da manhã, estavam nas proximidades de Villanueva del Fresno. A partir daqui, os pormenores das narrativas de Aires Varela, Marinho de Azevedo e Mateus Rodrigues diferem um pouco, mas não a substância do sucedido, que é no geral coincidente. Segundo Mateus Rodrigues, na madrugada desse dia D. Francisco de Melo escolhera 40 cavaleiros experientes de todas as companhias e entregara o comando desta força ao seu tenente, Francisco Leote (um oficial de grande bravura que iria ascender na carreira militar ao longo da guerra; morreu em Maio de 1655, sendo então tenente de mestre de campo general). O objectivo era emboscar-se num cabeço redondo, de onde se avistava Villanueva del Fresno, de modo a vigiar os movimentos da cavalaria inimiga. De manhã, quando o grosso da força portuguesa tivesse chegado ao cabeço, Francisco Leote e os seus homens deviam ir provocar o inimigo até junto das trincheiras, de modo que a sua cavalaria saísse da localidade e fosse atacada pela restante força portuguesa emboscada.
 Já Aires Varela refere que o general lançou quinze cavaleiros dos naturais de Mourão, para que a mudança do traje não fizesse reparar o inimigo, e lhes ordenou juntassem o gado, que sem receio pastava por aqueles vales, o que eles fizeram com diligência. Por seu lado, Marinho de Azevedo refere que foram enviados apenas oito cavaleiros tocar arma (ou seja, dar o alarme com disparos para o ar), de forma a espicaçar o inimigo, conforme tinha sido sugerido pelo desertor e informador.
 Qualquer que tivesse sido o processo (ainda que Mateus Rodrigues mereça mais crédito, pelo pormenor descrito e pelo facto de ter participado na operação), uma força de cavalaria de Villanueva, comandada por D. Garcia Navarrete, saiu ao encontro dos portugueses por uma das portas da vila, precisamente chamada “porta de Mourão”. Eram somente 40 cavalos, mas um soldado natural de Mourão, que se encontrava de vigia num outeiro, precipitadamente  tocou arma e soltou o alarme de que a cavalaria portuguesa enviada para junto da trincheira estava em risco de ser cortada do resto da força. D. Francisco de Melo revelou então a emboscada e saiu ao encontro do inimigo. Dos 40 cavaleiros, sete fugiram e os restantes foram mortos (segundo Varela), ou dezassete foram mortos e os restantes fugiram (conforme a narrativa mais plausível de Azevedo). Em todo o caso, oito foram capturados, incluindo D. Garcia. A este número acrescenta Mateus Rodrigues mais de 60 paisanos que acorreram a ajudar a sua cavalaria, mas que acabaram cercados “como atuns” e foram trazidos para Mourão. As restantes forças refugiaram-se atrás das muralhas de Villanueva del Fresno e limitaram-se a usar a artilharia com grande prontidão, mas pouca pontaria.
A operação terminou da melhor maneira para a cavalaria comandada pelo Monteiro-Mor, que pôde pilhar à vontade o gado dos campos em redor da vila, não obstante o fogo vivo que cinco peças de artilharia fizeram sobre os portugueses. Uma bala de 9 libras caiu bem perto de D. Francisco de Melo e foi levada, como recordação, para Olivença. Mateus Rodrigues, a quem o general não inspirava muita confiança como comandante, refere – com a irreverência frequentemente encontrada nas suas memórias – que este sucesso foi alcançado porque o general da cavalaria não encontrou grande oposição.

Jorge Penim de Freitas 

Do Blog "A Bem da Nação" 

Villanuena del Fresno




Guerra da Restauração

Uma incursão no termo de Monsaraz (28 e 29 de Setembro de 1645) – Carta de Mourão com novas desta entrada

A 29 de Setembro de 1645, dia de S. Miguel amanhecente entraram 300 castelhanos de cavalo no termo de Monsaraz, aonde vinha a companhia do Lara e Bustamante e Don Alonso de Cabrera por cabo, que são os da fama. Chegaram até à Caridade, vieram recolhendo todo o gado que acharam até Vale de Xeres e Dona Amada. Quiseram vir passar ao porto da Vila Velha, acharam, dizem, seriam sessenta homens do termo de Monsaraz, não se atreveram a passar, foram ribeira acima, estavam ao porto de S. Gens outra pouca de gente, houveram-se tão bem, que os castelhanos houveram por bem largar a presa toda com perda de alguns mortos, e cuido disseram haviam achado, e lhe tomaram cinco cavalos vivos, afora outros que pelo campo se acharam mortos. Vieram-nos dando vista pelo caminho velho, direito ao Penedo da Corva, vieram sair à fonte de Pedro Mateus. Começou-se a jogar com a artilharia, de modo que logo se tomou um cavalo passado pelo pescoço com um pelouro de uma peça, e ainda está vivo, de modo que lhe fugiu um cativo dos que levaram de Valência, e vindo pelo caminho por donde foram, achou à cabeça de João de Vilheiro cinco homens mortos, e disse que levavam alguns com pernas e braços quebrados, e outros feridos, que de noite se queixavam muito; e dizem que todos aqueles haviam morto [morrido] com a artilharia. Parece que Nosso Senhor nos quer ajudar, e bem os castigou nesta jornada, em verdade que bem se pode restituir aos de Monsaraz o crédito, que tão perdido o tinham. Também temos novas que tem o castelhano muita gente junta. Acuda-se a tudo, etc.
Mourão, o derradeiro de Setembro de 1645.
António Cordeiro de Sande 

Guerra da Restauração

Blog de História Militar dedicado à Guerra da Restauração ou da Aclamação, 1641-1668

FonteCarta de Mourão que dá novas desta entrada (Biblioteca Nacional de Madrid, ms. 8187, fls. 42 v-43) 


quarta-feira, 11 de setembro de 2019

Uma incursão no termo de Monsaraz (28 e 29 de Setembro de 1645)

Uma incursão no termo de Monsaraz (28 e 29 de Setembro de 1645)

O ano de 1645 foi fértil em acontecimentos bélicos na província do Alentejo, desde a frustrada intenção do 2º Conde de Castelo Melhor de tomar Badajoz, passando pelas investidas do exército espanhol sob o comando do Marquês de Leganés, até ao episódio, já diversas vezes tratado neste blog, do desastre de Alcaraviça (aquiaqui, e aqui). No entanto, um dos pequenos casos de guerra que ocorreram nesse ano passou quase despercebido. Nem o minucioso Conde de Ericeira lhe faz referência na História de Portugal Restaurado (embora não lhe tenha escapado sequer a presença no exército do Alentejo, nesse ano de 1645, do rei das ilhas Maldivas, senhor de grande riqueza e muitos vassalos no Estado da Índia, que tinha vindo a Portugal pedir auxílio a D. João IV para retomar o trono que um seu irmão lhe havia usurpado, e que entretanto decidira servir algum tempo no exército daquela província, com honras de oficial superior).
O episódio de menor envergadura a que me reporto é uma entrada da cavalaria espanhola na zona de Monsaraz, que acabou por colocar em alvoroço a própria população de Évora. Sobre este acontecimento da pequena guerra de fronteira existem quatro referências manuscritas que se completam. Três foram produzidas por portugueses, ao jeito das habituais “Relações” do período. A primeira, da qual se inicia aqui a transcrição, respeita à entrada propriamente dita. A segunda reporta o acontecido em Évora após terem chegado as novas da incursão. E a terceira é a cópia de uma carta remetida de Mourão, acerca da entrada do inimigos nos campos da região. E a quarta é outra cópia, esta em castelhano, de uma carta do tenente-general D. Gregório Ortis de Ibarra para o general da cavalaria Marquês de Molinguen, dando conta do sucedido na operação.
Nada do que aqui se irá apresentar foi alguma vez publicado, tendo eu tomado conhecimento deste episódio esquecido da guerra de fronteira através de um manuscrito existente na Biblioteca Nacional de Madrid, cuja cópia em boa hora me foi enviada pelo estimado amigo Julián García Blanco, a quem muito agradeço.
A transcrição do original manuscrito foi vertida para português corrente.
Boa parte das terras que no século XVII serviram de palco à incursão que aqui é relatada estão hoje submersas, devido à construção da barragem do Alqueva, como se pode verificar pela imagem retirada do Google Earth que acima se reproduz. Mas retornemos à narrativa, interrompida no momento em que 80 infantes e 17  cavaleiros da ordenança montados em éguas saíram de Monsaraz.

Relação da entrada dos Castelhanos no termo de Monsaraz
Em 28 deste mês de Setembro, véspera do bem-aventurado Arcanjo S. Miguel, vieram à coutada desta vila seis corredores castelhanos, e nela cativaram três homens nossos e os levaram. Veio logo recado a esta praça, saíram dela doze homens nossos em éguas, que foram em busca sua até muito além de Cheles; e foi Deus servido que errassem a trilha, porque fora sua perdição se lha acharam, porque haviam de segui-la até se meter no poder do inimigo. Os voltadores [sic] castelhanos com os prisioneiros foram ao da Lapa, aonde acharam muita gente de cavalo, mui luzida, com muitas couras guarnecidas de ouro e prata, e bandas de custo, e muito gentis cavalos; e é certo que era a melhor cavalaria escolhida, a que tem o inimigo em Badajoz. Dizem que eram seiscentos cavalos; e há outros que afirmam que era maior número. Com a confissão que fizeram os cativos se puseram logo a caminho para o termo desta vila, de modo que, quando amanheceu, estavam metidos dentro nele. Em S. Pedro do Corval deixaram uma tropa e foram repartindo outras pela terra dentro, e punham-nas em partes altas e descobertas, porque seus corredores fossem saqueando e ajuntando o gado, o que fizeram com grande cuidado, roubando a maior parte das casas do termo; porque o fizeram quase a toda a freguesia de S. Pedro, e na de Caridade lhes ficou muito pouco, e ainda tocaram na das Vidigueiras, e no termo de Évora e Montoito, usando de crueldades em razão dos roubos, porque despiam a toda a mulher que achavam com bom vestido, e pelo conseguinte a homens e meninos. Mataram duas ou três pessoas sem pelejarem e feriram poucas mais. Em três ou quatro montes se fizeram os nossos moradores do termo fortes e ficaram livres. A mesma sorte teve a aldeia do Reguengo de Baixo, porque de umas trincheiras que tem, com poucos defensores que ali se acharam, os detiveram e fizeram retirar. Da mesma maneira se houve o Licenciado Paulo Duarte, que com alguma gente que se lhe ajuntou, se defendeu do inimigo, e fez que não chegasse à igreja e aldeia que ali está. Diferente a tiveram as aldeias do Reguengo de Cima e a do Mato, que as entraram e saquearam, e todos os mais montes que há por aquela banda, donde roubaram muita quantidade de roupa, fato e algum dinheiro, e até na igreja de S. Pedro entraram e despiram as imagens da Virgem Nossa Senhora do Rosário, e Conceição, deixando-as no chão como se foram hereges.
Depois de ajuntarem todo o gado vacum que por ali havia, que era muito muito [sic], e cabras e porcos que também era muita quantidade, se vieram recolhendo para S. Pedro, aonde se ajuntaram todos, e vieram marchando pela estrada que vem de Évora para esta vila.
No dia do glorioso Arcanjo S. Miguel, pela manhã, chegou a esta vila nova [ou seja, notícia] onde estava o inimigo, mas muito diferente na quantidade do que era, porque diziam que seriam 150 homens de cavalo. Ordenou logo o capitão-mor Luís Álvares Baines que lhe saísse desta vila gente; para o que se ofereceu logo o capitão António Pereira de Oliveira, que foi com a que havia, acompanhado dos alferes Gaspar Grisante, Rafael Segurado e Miguel Gomes de Sampaio, com o sargento da companhia do dito capitão, Francisco Mendes Couto, e os sargentos Simão Lopes e Diogo Mendes. E assim se foram [a] caminho da serra da Atalaia. Seriam pouco mais de oitenta infantes, com dezassete homens de éguas que aqui estavam. 
Se foram detrás da serra de Gaspar Dias, aonde estiveram com determinação de esperar o inimigo (se por ali viesse). Depois de um bom espaço de tempo se tornaram todos a subir a serra, porque lhe chegou um corredor nosso novo, que o inimigo vinha marchando pela estrada de Évora para passar entre a serra e as vinhas e que eram muitos, no que se certificaram com a vista e temeram com muita razão, porque vinham cinco ou seis castelhanos para cada infante nosso. E assim se foram retirando pelo cume da serra para pé da atalaia, aonde fizeram alto, e ouviu-se uma voz de um soldado bisonho, e disse “senhores, o poder do inimigo é muito grande, mostremo-nos neste alto espalhados para que pareçamos muitos”, o que se executou com tão bom acerto que foi total perdição do inimigo e remédio nosso. Neste tempo vinha o inimigo passando pelo Monte do Duque com três tropas de vanguarda e seus corredores diante, e contra o Monte do Azevel e a aldeia dos Motrinos. Fizeram alto as três tropas, aonde estiveram grande espaço de tempo indecisos, porque seus corredores lhe levaram a nova que haviam visto da aldeia (onde haviam estado) muita gente na serra e ao pé da atalaia que era nossa. Na detença que fizeram deviam de mandar aviso às quatro tropas que vinham de retaguarda na acumada do Monte do Duque, donde pareciam os campos cobertos de gado, que era muito. Deviam tomar resolução de virarem com temor da nossa gente, parecendo-lhe que era muita e que seria ali vinda de Olivença, porque perguntavam a um prisioneiro quantas léguas havia daqui àquela praça; e dada a resposta pelo prisioneiro, viraram todo o gado e a cavalaria pela de Mísia Nunes, e pelo Barrocal da Morgada, e Santa Margarida, vindo sair ao Monte do Caminho e ao de Gaspar Pereira, aonde chegaram Baltasar Limpo, Manuel Tenreiro e Fernão Rodrigues e o Garção, e o João Nunes e o Tourillo, e Diogo Mendes dos Abandeiros, soldados de cavalo da ordenança desta vila e termo, que iam em seguimento do inimigo. E no dito Monte de Gaspar Pereira tiveram um[a] gentil escaramuça com uma pouca de gente que ali estava, dando-se muito boas cargas por espaço de muito tempo, e saíram também os castelhanos a dar-lhas, até que largaram o posto e se foram seguindo os mais, e não pararam ainda aqui porque se foram [a]trás [d]eles, e nas matas tiveram outra mais travada. E é certo que os desviaram da adega e horta do Licenciado Marcos Esteves, sendo os castelhanos mais de vinte e os nossos os sobreditos.
Os nossos da serra, vendo o muito poder do inimigo, estavam perplexos, sem saberem o que haviam de fazer na parada que o inimigo fez à vista deles. Disse então um dos mais atentados soldados  dos nossos, que era grande temeridade estarem ali com tão pouca gente, porque se o inimigo se resolvesse a vir por aquela parte e os [a]cometesse, que mal lhe poderiam resistir. Que o acerto era com grande brevidade retirarem-se para a vila, porque ficaria nela muito pouca gente, e que poderiam lá ser necessários. O capitão António Pereira de Oliveira, parecendo-lhe bem o conselho, despachou logo um de cavalo ao capitão-mor, dando-lhe conta do poder que era muito superior ao nosso, que se lhe parecesse retirarem-se para a vila o fariam. Partido este recado, viram que o inimigo virava para baixo, e sem esperarem resposta do capitão-mor se veio a nossa infantaria, com alguns de cavalo, pelo caminho da vila, e dela mandou segundo recado o dito capitão ao capitão-mor, que o inimigo ia virado para passar o rio de Guadiana por baixo desta vila, que lhe desse sua mercê licença para vir ocupar um porto, por onde se entendia havia de passar o inimigo. E logo, sem esperar resposta, se pôs a caminho com grandíssima pressa por chegar ao dito porto primeiro que o inimigo. E o dito capitão-mor lhe mandou recado, que fosse em boa hora.
Partido o dito capitão pela outra parte da vila sem ser visto nem sentido do inimigo, foi o dito inimigo seguindo seu caminho para o dito porto, e encontrando a gente do Reguengo de sobressalto, todos se espalharam cada um por onde pôde, porém logo se foram ajuntando com seu capitão Domingos Pires Guato, e (…) se lhe ajuntou o capitão Domingos Valada com a sua companhia das Vidigueiras, e ambos juntos vieram pelos alcances do inimigo, até chegarem a avistá-lo junto aos Álvaros Gis, e por aquelas barrocas e partes mais altas e ásperas o vieram seguindo sempre, [a]tirando-se-lhe alguns tiros de mosquetes a seus corredores de retaguarda, com o que os inquietaram muito, e assim lhe vieram seguindo os passos até o Monte do Boi, dando-lhe muito boas cargas. Vendo-se o inimigo enfadado de os nossos o perseguirem tanto, ou por lhe fazer algum dano, se virou com a maior parte de sua gente em tropas fechadas para os romper, ou pôr em fugida, o que começaram a fazer alguns, que fora total perdição de todos se o capitão Valada não metera mão à espada, dando-lhe muitas espadeiradas e algumas feridas, ajudado do capitão Guato e do seu sargento, de sorte que os fizeram ter, e tiveram lugar de ganhar um palanquezinho que ali está, donde se tiveram e esperaram ao inimigo. Dando-lhe muito boas cargas o rebateram, depois de porfiarem um bom espaço por entrarem no palanque, que todo o tinham cercado, e como não lhe faziam bom agasalho, se foram alargando. Neste tempo, com o tiro de uma cravina caiu um cavalo de um que andava diante, devia de ser pessoa de porte, porque como se retirou deixando o cavalo, logo todos largaram a pretensão e se vieram em seguimento do gado que vinha pelo Monte do Caminho. Saindo às duas lameiras e serra do Vale de Xeres se vieram chegando ao rio, porém o gado todo o levaram para baixo, de modo que esteve junto do Álamo, que fica muito distante do porto por onde queriam passar. E chegando com o dito gado ao Monte dos Mouros, dizem que tiveram vista de dois ou três homens de cavalo nossos, e imaginando que havia gente nossa no porto de Portel, vieram com o gado rio acima. O capitão António Pereira, tanto que chegou ao porto de Vila Velha com a gente que levava, passou o rio da outra parte. Escolhendo um bom posto, se puseram encobertos para que se o inimigo [a]cometesse o dito posto, o rebater. E chegando alguns do inimigo ao dito porto, se disparou por descuido um mosquete nosso, com que foram sentidos os nossos, de sorte que o inimigo se começou a retirar. Contudo, aqui se lhe [a]tiraram alguns tiros de mosquete, com que se desviaram mais depressa e fizeram alto na Cabeça Solta. Ali deviam ter aviso, ou viram que o gado ia muito abaixo e marcharam todos para lá, e encontrando-o, que já vinha para cima, se vieram todos em demanda do mesmo porto, e tornaram a fazer alto na Cabeça Solta. Nesta volta que fez o inimigo, tiveram lugar as companhias do termo, que já se lhes haviam juntado a de S. Marcos e a de Montoito, de lhe darem algumas muito boas cargas entre o Vale de Xeres e o Monte da Barca. E investindo aqui os nossos, guiados do capitão Guato e Simão Lopes, com uma boa tropa que o inimigo ali tinha, lhe fizeram largar o posto e fugir para os mais. Já aqui o inimigo vinha perdido, porque a gente do capitão lhe ficava à retaguarda, e por diante achava o porto por onde queria passar impedido, e assim se resolveu a mandar duas valentes tropas, com mita gente, a passar pelo porto de Mourão, que chamam o porto de São Gens, guiados pelo mulato Mateus, natural desta vila, cativo [ou seja, escravo] que foi de Baltasar Limpo. Bem viu o capitão António Pereira vir aquela gente a passar, mandou logo pôr sentinelas, por que os não colhessem descuidados. Passado o inimigo da parte de além do rio, e feita uma das tropas em duas, os acometeu no porto com grande ímpeto e fúria, imaginando fazê-los largar o posto ou rompê-los, e com grande grita[ria] das outras tropas que ficaram desta parte com o gado, que diziam com muito altas vozes, para que as outras tropas que acometiam os ouvissem “cerra Espanha, cerra Espanha”, e isto muitas vezes, querendo também cometer o posto, para que uns de uma parte e outros de outra tomassem os nossos, que os tinham no meio, e os rompessem ou fizessem largar o posto, para eles passarem com o gado livremente. Mas foram as duas tropas tão bem recebidas e com tão boas cargas, que depois de os investirem duas vezes se retiraram com perda, e vindo a outra sua tropa muito à pressa, em socorro, se encontraram junto da igreja de Santiago que está naquele lugar, e não sei eu que novas as duas tropas lhe deram, que todas se retiraram ao largo, e depois voltaram sobre o porto de Mourão, aonde fizeram alto. A outra sua gente que estava desta parte, tanto que viu o sucesso dos seus e ouviram uns poucos tiros que alguns nossos [a]tiraram ao porto de São Gens, logo desentenderam de tudo e largaram todo o gado e fugiram infamemente pelo rio acima, indo sempre ao longo dele por partes por onde se não pode andar a pé, mas que não fará o temor e necessidade.
Neste tempo tinham chegado catorze ou quinze infantes nossos ao dito porto, e como os inimigos iam tão apressados, lhe deram suas cargas, que os meteram em tanta confusão que se apinharam dentro na água. Muitos passaram a nado pela garganta do pego, que se o rio levara alguma água ocasião houve de se perderem muitos. Aqui lhe tomaram muitas cavalgaduras carregadas de roupa e cinco cavalos seus e alguns escravos que levavam cativos, e os prisioneiros, e assim se foram fugindo. E ao passar por Mourão lhe saiu o tenente de Dom João de Ataíde [era o tenente Agostinho Ribeiro] com alguns vinte cavalos que ali ficaram, a escaramuçar com eles dando-lhes cargas e chamando-os para lhe chegar a artilharia, o que se logrou porque lhe [a]tiraram nove peças, que lhe deram no meio das tropas e lhe mataram dois cavalos, mas não se sabe quanta gente, porque não deixaram pessoa alguma. E lhes perderam no nosso termo alguma gente, eu tenho alcançado que são doze pessoas as que se acharam mortas e outras que lhe viram levar em cavalgaduras atravessadas. E de crer é que que, em tanto distrito que se lhe foi [a]tirando, lhe mataram muita gente, porque foram seguidos mais de légua e meia [aproximadamente 7,5 Km], e a tempos se lhes davam muito boas cargas, e é certo que levaram muita gente ferida, e lhe ficaram muitos cavalos mortos. De um prisioneiro que levaram até onde fizeram pouco soubemos, que toda a noite estiveram gemendo muitos que seriam os feridos, e diz este que se achou perto donde estavam falando uns castelhanos, e que dissera um: “mal viaje havemos echo”, e falando outro, parece que encontrando-o [ou seja, contrariando-o], tornara ele: “boto que nos cuesta mas de cien hombres entre muertos y heridos”, no que se não põe dúvida, pelo bom agasalho que se lhe havia feito em todo o dia. E é de notar que não houve da nossa parte nenhuma morte nem ferida, donde eu entendo e creio que foi um grande milagre que Deus Nosso Senhor fez, por intercepção do Glorioso Arcanjo São Miguel e das almas do Purgatório, cujas festas se faziam naquele e no dia seguinte. E para que ficasse todo o louvor à gente desta vila e termo do bom sucesso deste dia, há-de se advertir que mando[u] o capitão-mor desta vila dois ou três recados muito a tempo ao de Mourão; e o mesmo fez o capitão António Pereira depois de estar no rio, que lhe mandasse algum socorro, ou lhe mandasse guarnecer algum porto; não mandou soldado algum [o capitão-mor de Mourão], desculpando-se que tinha pouca gente para poder mandar. E ainda que se pudera dizer que o Limpo, com os companheiros, fizeram grande temeridade em escaramuçarem com o inimigo, não se lhe pode negar o louvor a todos; nem menos ao capitão António Pereira que, com tão pouca gente e mal disciplinada, se opôs a tanta cavalaria e tão luzida, que é de crer vinha muita gente de porte nela. Em resolução todos o fizeram muito bem e cada um melhor. Queira Deus levar muito avante este Reino, e que as armas do nosso Rei sejam sempre vitoriosas dos nossos inimigos.


E assim termina a relação. Uma longa narrativa que empola uma acção insignificante no contexto da guerra, mas de grande importância para uma região que não era então das mais agitadas pelas operações na fronteira e cuja pacatez fora quebrada de forma brusca e súbita. Essa escala de vivência da guerra confere outra dimensão ao drama humano, quase sempre esbatido no grande quadro das operações militares.

De realçar que Mateus Rodrigues não inclui esta incursão nas suas memórias, apesar do documento aqui transcrito se referir à  intervenção da companhia onde o soldado servia na altura, a do comissário geral D. João de Ataíde. Contudo, o memorialista refere, em algumas passagens da sua obra, a região onde se desenrolou este episódio e na qual a sua companhia esteve alojada pelo menos entre 1644-45 e 1648.
Um outro dado aparentemente menor, mas que é de salientar, é a referência, por parte dos soldados espanhóis, ao termo “Espanha” como grito de guerra e factor de identificação. Mais um exemplo a juntar a vários outros que tenho vindo a pesquisar e a encontrar, e que contraria opiniões académicas recentes e bem divulgadas (estou a lembrar-me de alguns trabalhos do Professor António Hespanha e do Dr. Fernando Dores Costa), nas quais se nega a ideia de “Espanha” como factor identitário por parte dos militares de Filipe IV, apontando para a historiografia tradicional portuguesa, nacionalista e romântica, a criação desse pretenso “mito”. Nada como investigar a fundo as fontes primárias para corrigir mitos mais recentes – mas é essa, mesmo, a função do historiador, cujas conclusões nunca são definitivas.

Blog de História Militar dedicado à Guerra da Restauração ou da Aclamação, 1641-1668 









FonteRelação da entrada dos Castelhanos no termo de Monçaras (Biblioteca Nacional de Madrid, ms. 8187, fls. 45 v-49)

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