terça-feira, 4 de outubro de 2022

Memórias dos calcadores e das marés nas eiras

 Memórias dos calcadores e das marés nas eiras

Na noite de trinta de Agosto de 1969, por ser Sábado e por haver ainda alguns fregueses de férias, uma das tabernas de Capelins, estava bem afreguesada e o ambiente era, como sempre, de grande  festa.

Os fregueses, formavam grupos, uns ao balcão, porque não gostavam de se sentar, outros jogando às cartas, à sueca ou à manilha, outros ao xito e, o grupo dos rapazes, nessa noite, era mais numeroso.

Os rapazes começaram por planear uma paródia no rio Guadiana, mas não se entendiam sobre a data e passaram para outras conversas, como estava ali um rapaz que tinha feito a debulha numa eira no Monte do Carrão, foi-lhe pedido para contar como tinha decorrido esse trabalho.

O rapaz prontificou-se a contar e começou a conversa  sobre os frascais ou medas de molhos de cereais, que tinham sido feitos na eira para debulhar, e eis que entra o Ti Bate Estacas, mal humorado, nem cumprimentou os presentes e chegou-se para o lado da mesa dos rapazes para ouvir as suas conversas.  

Um dos costumes de Capelins era, quem já estava numa taberna quando alguém das suas relações entrava, oferecer-lhe uma bebida, por isso, um dos rapazes cumpriu a tradição e perguntou-lhe o que queria beber, e ele abanou a cabeça, negativamente, então o rapaz continuou: 

- Então se não quer beber nada, o que é que quer daqui? 

- Deves ter muito a ver com isso! Hoje não está muito calor, mas ouço esta algazarra lá no camalho, não me deixam dormir!  Respondeu o Ti Bate Estacas!

O outro rapaz continuou a explicar como tinha feito a debulha na eira do Carrão:    - Começava com a mudança dos molhos de cereais dos frascais para dentro da eira, iam-se contando os molhos para não pôr lá a mais nem a menos, também dependia do tamanho dos molhos e da eira, podiam ser cinquenta, sessenta ou até mais, e no fim podiam-se acertar, depois começavam a desatar os molhos e iam-se atirando em leque, começando pelo lado da eira mais afastado de maneira a formar camadas e, assim, encher a eira quase toda e ficava o calcador feito.

Depois do calcador armado na eira, iam comer e fazer outras coisas, esperavam uma hora ou duas para ele aquecer com o sol, para as espigas e caules ficarem bem secos, porque quanto mais quente estiver o calcador, melhor se debulha, depois, mete-se uma ou duas bestas a andar e a correr por cima, no início pode chegar-lhe à barriga, mas com as sucessivas passagens começa a ficar plano, a baixar, então, atrelamos um trilho (máquina rudimentar feita em madeira e ferro, com rolamentos em madeira por baixo onde estão acopladas pequenas facas em ferro que, ao passar por cima das espigas e caules os vai cortando em pedacinhos e debulhando as espigas! Quando os caules dos cereais já estão quase desfeitos por cima, paramos as bestas e o trilho e com umas forquilhas feitas em madeira damos a volta ao calcador, passando a parte que estava por baixo para cima e vice versa, depois de duas a três horas repetindo o mesmo trabalho, sempre passando o trilho por cima, está o calcador debulhado!

Quando o calcador estiver debulhado, passamos à fase de o limpar, ou seja, de separa o cereal da palha com a ajuda do vento que se chama maré, e começa quase sempre a soprar só à tardinha, fazendo entrar o trabalho da limpeza pela noite dentro, mas se a maré faltar, a limpeza do cereal fica parada e pode ficar assim dois ou três dias, causando prejuízo ao seareiro, porque não pode pôr outro calcador na eira enquanto lá estiver o anterior e isso pode atrasar a debulha!

Se existir boa maré, com uma forquilha de madeira, atira-se o cereal com a palha ao vento que faz a separação, como a palha é mais leve, o vento atira-a para mais longe caindo o cereal em frente do homem que está a limpar, mas esse trabalho tem técnica, o cereal não pode abalar enrolado na palha, não é para todos, tem de ser cumprido conforme as regras que aprendemos e que foram passando de geração em geração.

Depois do cereal ser separado da palha, ainda é atirado ao vento com uma pá de madeira para sair a moínha, ou seja, as palhas muito finas,  quando ficar limpinho é ensacado em sacos de serapilheira, medido em alqueires com uma medida de madeira, para saberem quantas sementes deu, quanto foi a produção, em relação ao cereal semeado, ou é pesado e guardado em casa, na tulha, para quando acabar a debulha o seareiro o vender no celeiro do Alandroal, Vila Viçosa ou outro!

O Ti Bate Estacas, ouvia a conversa com muita atenção e abanava a cabeça afirmativamente, mas assim que o rapaz terminou disse:

- Vocês não sabem o que são calcadores nem marés nas eiras, só eu sei o que passei! E com esta me vou para o meu camalho!  

Os rapazes já esperavam esta reação do ti Bate Estacas e começaram a rir, e foi rir até ouvirem a palavra do taberneiro "rua" e, assim acabou mais um serão naquela taberna da Aldeia de Ferreira.

Fim 

Texto: Correia Manuel 


Sem comentários:

Enviar um comentário

Povoado de Miguéns - Capelins - 5.000 anos

  Povoado de Miguéns -  Capelins - 5.000 anos Conforme podemos verificar nos estudos de diversos arqueólogos, já existiam alguns povoados na...