segunda-feira, 3 de outubro de 2022

A lenda da mendicante do alto da Ramalha, em Capelins

 A lenda da mendicante do alto da Ramalha, em Capelins 

O ti Manel Lopes, morava em Capelins de baixo, era um homem pobre, como a maioria dos moradores da Freguesia de Capelins nessa época, era casado com a ti Anna Maria, pai de cinco filhos ainda pequenos e trabalhava, a sêco, como jornaleiro na herdade da Zorra.
A vida do ti Manel Lopes e da ti Anna, era muito dura, ele trabalhava de sol a sol, mas ao raiar da aurora, já tinha de estar a preparar as parelhas para começar a trabalhar e, depois do pôr do sol ainda tinha de arrumar as alfaias, entregar as mulas, ou os bois ao feitor, nas cabanas e, só depois podia seguir para sua casa.
Na madrugada do dia 1 de Abril de 1802, quinta-feira, o ti Manel Lopes, como fazia sempre, seguia o caminho do Monte da Zorra e, quando chegou ao alto da Ramalha, ainda pouco se via, mas vislumbrou um vulto à sua frente que se dirigia na sua direção, não ficou assustado mas preparou-se em defesa com o pau ferrado, o vulto continuava a mover-se muito lentamente, era uma pessoa arrastando os pés.
O ti Manel, já muito próximo, teve a certeza que não havia perigo e, antes de proferir qualquer palavra ouviu uma voz: 
Vulto: Bom dia! Não tenha medo, eu não lhe faço mal! 
Ti Manel: Bom dia! Ah, é uma mendicante a esta hora! 
Vulto: Sou uma mendicante, sua criada! Ajude-me, por Deus, ajude-me! 
Ti Manel: Criada de Deus! Oh mulher, eu vou para o trabalho e não me posso atrasar senão o lavrador despede-me e não posso ficar desempregado! Tenho cinco filhos lá em casa e a mulher para dar de comer! Vá, mas diga lá o que quer? 
Mulher: Dê-me um bocadinho de pão! Estou cheia de fome, desde ontem que não como nada! 
Ti Manel: Olhe, eu também pouco comi! O pão que tenho aqui na alcofa ficou a fazer falta lá em casa aos meus filhos e mal dá para uma bucha e para o meu jantar (almoço)! Não posso, dar-lhe nada, não posso! 
Mulher: Dê-me só uma dentadinha, por amor a Deus! Se não comer uma dentadinha de pão, não chego a Capelins de Baixo! Estou muito fraquinha! 
Ti Manel: Mau, mau, se lhe dou um bocadinho de pão, como é que eu passo o dia de trabalho? Não posso, não, não posso! 
Mas naquele momento, alguma força sobrenatural abanou o ti Manel, e pensou que tinha o dia todo à sua frente para resolver a situação, agora, era agora, e decidiu acudir à desgraçada, então, abriu a alcofa, cortou  metade do pão, tirou metade das azeitonas, duas passas de figo e entregou à mendicante e disse:
Ti Manel: Tome lá, como vê, é metade do que levo para comer em todo o dia e o trabalho vai ser muito duro, mas ainda tenho o dia todo para resolver isso! Sente-se e coma descansada para ganhar forças!Tenho de ir já a correr até ali ao Monte da Zorra! 
A mulher agradeceu, desejou-lhe um bom dia e ainda murmurou: "Fica descansado, que não te vai faltar comida, e pela boa ação a tua vida vai mudar, ai vai, vai"! 
O ti Manel ouviu a mendicante, mas não ligou e começou a correr para recuperar o tempo que esteve ali parado com a mendicante. 
O ti Manel, deu uma corrida e chegou a horas ao Monte da Zorra, recebeu as ordens do feitor, sobre o trabalho que ia fazer, preparou a parelha de mulas e seguiu para o lugar que ele lhe indicou.
Assim que lá chegou, pendurou a alcofa na pernada de um chaparro e, até à hora da bucha, não se lembrou mais do encontro com a mendicante e da partilha da comida que tinha feito, como estava com muita fome, partiu metade do pão que restava e comeu-o com duas passas de figos, ficando na alcofa uma fatia de pão, duas passas de figos, umas azeitonas e um bocadinho de toucinho para o jantar (almoço) e tinha de restar alguma coisa para a merenda a meio da tarde, era pouca comida para quem tinha de despender tanta energia até ao pôr do sol, mas não tinha mais nada.
Quando chegou o meio dia, o ti Manel pegou na alcofa e ficou surpreendido, porque estava muito pesada, ficou desconfiado que estava trocada com a de outro trabalhador, mirou-a bem e ficou sem dúvida que era a dele, abriu-a com cuidado e o que viu aumentou a surpresa, porque tinha lá dentro um tarro e um pão inteiro, então dirigiu-se aos outros trabalhadores e perguntou-lhe: 
Ti Manel: Olhem lá! Algum de vocês tem a alcofa trocada? 
Os trabalhadores que não andavam a "de comer" eram poucos, já estavam a comer e responderam todos que não! Cada um, tinha a sua alcofa!
Ti Manel: Então, viram alguém mexer na minha alcofa? 
Os trabalhadores já impacientes, responderam todos que não! 
Ti Manel: Ora essa! Mas alguém mexeu na minha alcofa! Não seria o Escamel? 
Os homens ainda mais impacientes, responderam que não! O Escamel tinha subido ao lado do Ribeiro do Carrão e não tinha passado dali para cima, para o lugar onde estavam as alcofasm e perguntaram-lhe o que lhe faltava na alcofa.
Ti Manel: Não me falta cá nada na alcofa! Tenho é cá coisas a mais! Um pão e um tarro que não são meus! 
Os outros riram-se e opinaram: - Decerto foi a tua mulher que te aviou a alcofa e tu nem sabes o que ela lá meteu! 
O ti Manel ia negar, mas lembrou-se da mendicante e a conversa acabou ali, abriu o tarro e ficou assustado, estava cheio de lombo, entrecosto, torresmos e toucinho, ainda quentes, deitando um aroma que se espalhou em redor, originando alguns comentários dos outros trabalhadores. 
O ti Manel ficou na dúvida em lhe tocar, começou por comer o resto do pão, as passas de figos, as azeitonas e o toucinho, depois não se conteve e cortou um bocado do pão mole, comeu um torresmo e um bocadinho de entrecosto, estavam deliciosos.
Quando merendaram, comeu um torresmo com um bocadinho de pão e guardou tudo na alcofa, pensando na mulher e nos filhos.
O ti Manel Lopes, logo que soltou do trabalho, arrumou tudo e foi a correr para casa com a alcofa às costas, onde levava o pão e o tarro cheio de boa comida, na esperança de ainda apanhar os filhos antes da mulher os deitar. 
Quando entrou em casa, chamou por eles, deixando a ti Anna surpreendida,  porque ele sabia que já eram horas de eles estarem a dormir e perguntou-lhe: 
Ti Anna: Oh Manel, o que se passa contigo homem? Então, não sabes que os gaiatos a esta hora já estão sempre a dormir? 
Ti Manel: Sei, sei, mas podia ser que hoje ainda estivessem acordados, trazia-lhe aqui uma surpresa! 
Ti Anna: Olha, eu é que tenho uma surpresa para ti, esteve aqui uma mendicante a pedir-me um bocadinho de pão e disse-me que te conhecia! 
Ti Manel: O quê? Uma mendicante que me conhece? Como é que ela era? 
Ti Anna: Era como as outras mendicantes, mas muito fraquinha, estava cheia de fome, até arrastava os pés! Olha, disse-me  para comermos com satisfação o que estava dentro do tarro que tu lá tinhas e para te dizer que a nossa vida ia mudar para melhor! 
Ti Manel: Oh Anna, se não fosse aparecer-me o tarro e um pão na alcofa, não acreditava em nada, assim acredito! Agora já sei que foi ela! 
Ti Anna: Foi ela o quê, homem? Que coisa mais estranha! 
O ti Manel, contou à ti Anna o que se tinha passado no encontro com a mendicante de madrugada no alto da Ramalha e ambos concordaram que tinha sido ela a colocar o tarro e o pão na alcofa do ti Manel. 
Depois, abriram o tarro e a ti Anna ficou sem palavras, no entanto, cearam (jantaram) as sopas de grãos que já estavam prontas e de sobremesa comeram um torresmo cada um e um bocadinho de entrecosto com pão.
No dia seguinte, a ti Anna aviou uns torresmos e um bocadinho de entrecosto para o jantar (almoço) do ti Manel e o restante ficou guardado para os filhos.
O dia de trabalho decorria normal, mas à hora do jantar (almoço) o feitor foi falar com o ti Manel.
Feitor: Boa tarde ti Manel, venho dar-lhe um recado do lavrador! 
Ti Manel: Boa tarde, ti Silvestre! Sim, está tudo bem! Então, o que é que o lavrador me quer? 
Feitor: Olhe, o lavrador mandou-me perguntar-lhe se quer vir morar com a sua gente cá para o Monte? Mas não precisa de dar já a resposta, pode falar com a sua mulher e amanhã diz-me! 
Ti Manel: Eu  não preciso de falar com a minha Anna! Diga lá ao lavrador que sim! Quero, quero! 
Feitor: Pronto! Se está decidido, eu digo a sua resposta ao lavrador! Assim, vou andando! Até logo, ti Manel!
Ti Manel: Até logo ti Silvestre! Vá com Deus! 
O ti Manel Lopes, passou a tarde a pensar que havia ali a mão da mendicante, isto era um sinal que a sua vida ia mudar para melhor, mas não percebia porque motivo foi escolhido, uma vez que, qualquer pessoa ajudava os mendicantes, não tinha feito nada para merecer aquilo. 
O ti Manel não se apercebia que, era devido à boa ação de ter repartido o pouco que tinha e tanta falta lhe fazia, com quem nada tinha. 
O ti Manel ficou tão contente que, a tarde parecia nunca mais acabar, estava cheio de vontade de ir contar à ti Anna, que iam morar no Monte da Zorra . 
Quando soltou do trabalho foi em passo de corrida até Capelins de Baixo, nem sentia o cansaço, e assim que chegou, contou logo à ti Anna, deixando-a muito surpreendida e comentou: 
Ti Anna: Ai homem! Não sei o que isto me parece! Achas que tem a ver com a mendicante? Não será feitiçaria? 
Ti Manel: Oh Anna, então se fosse feitiçaria não era para nos fazer mal? 
Ti Anna: Sim, sim! Mas isto tem tudo a ver com aquela mulher! Seja como for, não podemos desperdiçar uma coisa destas!
Ti Manel:  Pois não, Anna! Nem eu tinha maneira de dizer que não! Não podia fazer essa desfeita ao lavrador! 
Ti Anna: Então e quando mudamos os trastes? Eles são tão poucos que depressa os levamos! 
Ti Manel: O dia não sei! O lavrador é que vai dizer! Ainda temos de amanhar o cabanão para onde vamos morar!
O ti Manel e a ti Anna ficaram muito contentes, mas apreensivos, porque não esqueciam a profecia da mendicante, no entanto, a conversa sobre a mudança da família para o Monte da Zorra ficou por ali!  
No dia seguinte, o ti Manel Lopes confirmou, novamente ao feitor que aceitava a oferta do lavrador. 
O feitor, participou ao lavrador e, recebeu ordens para mandar  amanhar um cabanão que tinha as paredes altas com chão de laje e disse para o ti Manel no Domingo levar um carro de parelhas e fazer a mudança dos trastes e da família para esse cabanão. 
No Domingo à tardinha, já estavam instalados junto ao Monte da Zorra, muito felizes com a mudança e passados alguns dias, o feitor foi falar com o ti Manel e disse-lhe que, a partir daquele dia passava a ser o maioral das parelhas e por isso, ia ter um aumento da jorna, sendo mais uma grande melhoria na sua vida. 
A ti Anna começou a trabalhar nos diversos serviços domésticos no Monte, dava-se muito bem com a lavradora e com os filhos que, nunca a dispensavam.
 Os anos foram passando, os filhos mais velhos começaram a trabalhar como ajudas de gado, mas as bocas para dar comer, pouco diminuiam, porque a ti Anna ainda teve mais dois filhos, mas tinham uma vida muito desafogada.
Já moravam no Monte da Zorra há cerca de cinco anos, até que, um dia, inesperadamente o feitor foi prestar contas a Deus, sendo sepultado na Igreja de Santo António! No dia seguinte, o lavrador chamou o ti Manel e disse-lhe que seria ele o feitor da herdade da Zorra, ficando a ganhar o dobro do que ganhava e com direito a amassadura, à matança  de um porco anual e a outras mordomias.
O ti Manel e a ti Anna, ficaram muito contentes e não esqueciam que deviam tudo à misteriosa mendicante, a sua fada madrinha, falavam muitas vezes sobre ela, diziam que gostavam de lhe agradecer, mas nunca mais a viram. 
Era certo que, deviam tudo à mendicante, mas era merecido, devido à boa ação praticada pelo ti Manel Lopes, porque, apesar de não ter quase nada, dividiu o pouco que tinha com uma desconhecida, ficando em risco de passar fome. 
O ti Manel e a ti Anna da Zorra, apelido pelo qual era conhecida, passaram o resto da sua vida a residir no Monte da Zorra, até partirem para Santo António, mas os seus descendentes continuaram neste Monte, durante muitas gerações.   

Fim 

Texto: Correia Manuel

Herdade da Zorra 




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