terça-feira, 4 de outubro de 2022

Memórias do Chiquinho de Capelins, quando foi à Feira de Agosto

 Memórias do Chiquinho de Capelins, quando foi à Feira de Agosto

A vida sócio económica dos seareiros, como a dos jornaleiros que mal ganhava para o sustento da Família, foi sempre muito difícil nas terras de Capelins, os seareiros trabalhavam todo o ano, sem horários e, a sua economia familiar dependia das colheitas dos cereais que faziam nos meses de Junho a Agosto, depois de passarem mais de um ano a tratar as terras e as searas, podiam não colher coisa nenhuma, porque estava dependente da natureza, ou seja, se no inverno chovia muito, era grande invernia, era mau e, se na Primavera não chovia nada, era grande seca e mau era, os cereais desapareciam, mas sempre aparecia um, ou outro ano de salvação que dava, ou não, para endireitar a vida, pagar as dívidas acumuladas e comprar alguns bens para a casa e para a atividade agrícola!
As compras dos bens, fossem para casa, como roupas, calçado, feijão para todo o ano, ou apetrechos para a atividade agrícola ou pecuária, eram quase todas feitas em Feiras que, no caso dos capelinenses, devido à sua situação geográfica podia ser nas feiras de Reguengos de Monsaraz, Vila Viçosa, Redondo ou Borba, como convinha fazer as compras depois das colheitas e da venda dos cereais, as feiras mais concorridas eram a de Agosto em Vila Viçosa, a de S. Francisco no dia quatro de Outubro na Vila de Redondo e menos assídua a dos Santos no dia 1 de Novembro em Borba!
O Chiquinho de Capelins não sabia o que era uma feira, mas pelo que ouvia contar aos que iam a essas Feiras, tinha uma ideia na cabeça, com sendo um lugar onde se podia comprar e vender tudo o que se podia imaginar mas, principalmente brinquedos nunca vistos nas terras de Capelins, por isso, o seu grande sonho era ir a uma Feira! Um ano de boas colheitas, logo no mês de Junho, começou a ouvir dizer ao pai: - Este ano, temos uma seara boa, até os tremoços estão bons, por isso, vamos todos à feira de Vila Viçosa!
O Chiquinho não acreditava no que ouvia, achava sorte a mais e, sempre que ouvia esta conversa, não se cansava de perguntar a mesma coisa: - Pai, vamos todos à feira de Vila Viçosa? Eu também vou? Sim, já te disse quantas vezes que sim, se vamos todos, tu também vais! Respondia o pai! O Chiquinho ficava calado, achava bom de mais e não queria arranjar confusão, porque já tinha acontecido noutras situações de fazer contas de ir a algum sítio, mas depois calhava-lhe a ir, na carroça do ti Manuel Cá Fica e ficava!
Ainda faltavam mais de dois meses para a Feira de Vila Viçosa que era no dia 29 e 30 de Agosto, mas o Chiquinho andava doido e, diariamente, não lhe escapava uma oportunidade para apregoar em Capelins que ía à Feira de Vila Viçosa, era a realização do seu grande sonho que, já estava a ser vivido antecipadamente, na cabeça do Chiquinho!
Finalmente, chegou o dia da véspera e dos preparativos das coisas que tinham de levar para a Família acampar dois dias em Vila Viçosa, já estava tudo planeado e combinado com outros seareiros de Capelins que, também iam com as Famílias nas suas carroças, era preciso combinar as horas da partida, o sítio de paragem no caminho para descanso e aguada das mulas e o lugar onde ficavam acampados em Vila Viçosa!
Por motivos de organização, ou seja, para não se dar confusão e concentração de carroças, charretes, churriões, burros e burras, na estrada, a partir de Terena, uma vez que ali juntavam-se alguns seareiros que vinham de Santiago Maior, Orvalhos, Hortinhas, dos Montes daquela região e mesmo de Terena, tinham de partir muito cedo para ganhar distância, assim, a hora da partida de Capelins foi marcada para as duas da manhã, pelo que, a mãe do Chiquinho, nem foi à cama, passou a noite a preparar comidas, roupas de vestir e para o camalho, foi tudo arrumado dentro de uma arca de madeira que atravessada na carroça com uma manta por cima, servia de um bom assento aos pais do Chiquinho, ele e a irmã iam sentados em pequenas cadeiras de costas voltadas para o lado de fora da carroça, logo virados um para o outro, mais atrás iam outros bens e a comida da mula, aveia, favas e dois/três sacos de palha, estes já fora da carroça, presos com uma corda à mesma!
A hora da partida não podia ser pior, foi sair da cama para cima da carroça, sempre a dormir em pé ou sonâmbolo, porém, a partir de Terena o Chiquinho despertava por alguns momentos, porque, para ele era um espetáculo as ultrapassagens das carroças em correria e o tilintar dos guizos penduradas no pescoço das mulas e as luzes de presença que eram candeeiros a petróleo colocados no lado esquerdo das carroças, os quais, com a deslocação pareciam sirenes, com o trepidar da carroça depressa adormecia, mas tentava manter os olhos abertos para não lhe escapar nada, porque estava encarregado pelos vizinhos e amigos de, depois lhe contar tudo o que tinha visto, mas o sono era tanto que o traiu e só acordou, porque o acordaram, à chegada à Vila de Alandroal, onde pararam junto à fonte à direita, ao lado do cemitério, ainda não se via um palmo à frente dos olhos!
Na entrada da Vila de Alandroal, toda a gente se apeou das carroças, para esticar as pernas, ir à casa de banho, comer e beber! Antes de dar continuação à viagem vieram algumas pessoas do grupo de Capelins a perguntar quem é que estava ali, rapazes, que ia pela primeira vez à feira de Vila Viçosa? O chiquinho, com tanto sono nem se apercebia do que se estava a passar, mas a sua mãe, entrando na brincadeira, respondeu que ele era um deles! A ti Maria Rita aproximou-se e disse:
Ti Maria Rita: Então Chiquinho, é a primeira vez que vens à feira de Vila Viçosa e não dizias nada? Vê lá o que tu ias arranjando!
Chiquinho: Mas eu lá em Ferreira, disse a toda a gente que vinha à Feira de Vila Viçosa!
Ti Maria Rita: Pois olha, disseste a toda a gente, menos a mim, que precisava de saber!
Chiquinho: Oh tia, mas eu desconfio que lhe disse!
Ti Maria Rita: Não estejas com desculpas, porque eu sei que não disseste, mas agora isso não interessa, vá lá que eu ainda dei com isso a tempo, senão não entravas lá! Vá, abre lá a boca e mete lá esta pedra!
Chiquinho: É para a comer, tia?
Ti Maria Rita: Não, não é para a comeres, é para ficares com ela na boca até entrares em Vila Viçosa! Então tu não sabias que a primeira vez que vamos à Feira de Vila Viçosa temos de meter uma pedra na boca?
Chiquinho: Não sabia, não senhora!
Ti Maria Rita: Então, agora já sabes, vá mete-a na boca, mas não a engulas!
Chiquinho: Está bem, está bem, tia!
O Chiquinho meteu a pequena pedra na boca e só à partida, da caravana, quando a mãe lhe disse para a deitar já fora que a ti Maria Rita nunca ia saber e que aquilo não era preciso, porque, decerto entrava em Vila Viçosa sem pedra nenhuma na boca, a muito custo, o Chiquinho lá tirou a pedra da boca, mas mesmo a dormir guardou-a na mão até Vila Viçosa, ainda assim, não tivesse de a usar!
A chegada a Vila Viçosa foi muito cedo, ao nascer do sol, o acampamento foi na tapada do senhor Cisneiro, lugar seguro, uma quinta próxima da feira, foi logo armada a tenda, apoiada na carroça e numa oliveira, com uns lençóis, ficaram umas boas instalações para passar uma noite!
Depois de instalados, o pai do Chiquinho foi logo a correr para a feira do gado, mesmo sem querer vender nem comprar nenhum animal, era só para ver e assistir aos negócios, já tinha combinado com outros seareiros que iam trocar de mulas, de dar a sua avaliação sobre a qualidade e preço das mesmas e, assim se fez o meio dia e o Chiquinho ali esperando pela Feira na tapada do dito senhor, só à tarde pôs os pés no recinto da grande Feira, ficou doido, era tudo uma novidade, coisas de sonho, de outro mundo, barracas e mais barracas que vendiam de tudo, carroceis em movimento que ele nem imaginava que existiam coisas daquelas e até um grande circo, grande entusiasmo, mas o melhor, ainda estava para chegar, era à noite!
Andaram pela Feira e antes do pôr do sol, voltaram ao acampamento e jantaram ao ar livre, junto de muita gente e, as conversas eram todas sobre peripécias e negócios na feira, depois do jantar, guardaram tudo na arca de madeira e foram todos para a Feira! Ainda ao longe, os olhos do Chiquinho alcançaram os carrocéis, com alta música e carregados de luzes de muitas cores, um cenário inacreditável, à distância parecia que a cavalaria e os outros animais do carrocel voavam em rodopio, apareciam quando parte do carrocel subia e desapareciam, quando essa parte descia, parecia magia!
O destino do Chquinho não podia ser outro, senão os carroceis e, talvez por obra de Deus, os pais fizeram-lhe a vontade, chegaram e o Chiquinho entrou em transe, num sonho, ficou pasmado com aquela geringonça, os cavalos, girafas e outra bicharada em correria louca, nem conseguia falar, nem era ouvido com tanto barulho, estava admirado e receoso não se partisse aquilo tudo, mas como viu outros rapazes a andar nos carroceis, armou-se em valente e quando parou, pediu para montar uma girafa, mas o pai disse que, nem pensar, porque maluco como ele era, levantava voo e aterrava ali em baixo e disse-lhe que iam para o circo!
Como havia dois carroceis, com pouca distância, o Chiquinho avistou o outro mais abaixo, então meio tonto de ver o carrocel à roda, partiu em grande corrida pelo meio das pessoas, sem saber para onde ia, o pai começou a correr atrás dele com grande dificuldade em o alcançar, até que lhe deitou as mãos e o levantou no ar, mas ele continuava a patinar, até que, o pai zangado perguntou-lhe, onde é que ele ia a correr que nem um doido? O Chiquinho estava desorientado e respondeu que ia só a Capelins de Baixo!
Depois da situação acalmar, o Chiquinho lá foi ao circo, outro sonho, porque, já tinha ouvido falar que havia circos, mas não imaginava o que se fazia num circo daquela dimensão, desde os palhaços, os/as acrobatas, os mágicos, os animais amestrados, não houve escolha, foi uma grande noite que ficou na memória para sempre!
Depois do circo acabar, já tarde, foram para o acampamento, o Chiquinho acamou-se numa excelente cama com pouca palha entre ele e a terra, mas o cansaço era tanto que deve ter sido a melhor cama do mundo!
No dia trinta de Agosto, logo de manhã, foram às compras, entre as quais, compraram uns sapatinhos para o Chiquinho, foi mais uma grande alegria, assim que entraram nos pés, já ninguém, os fez descalçar até Capelins!
Depois do meio dia, foi dada a partida para Capelins, uma viagem em carroça entre Vila Viçosa e Capelins, com a mula, ora a trote, ora a passo, foi inesquecível!
Quando chegaram a Capelins, à tardinha, o Chiquinho levava os sapatinhos novos calçados e, assim que passaram pelos primeiros vizinhos, atirou-se para o fundo da carroça com a cabeça para baixo e os pés para cima, a gritar os nomes dos vizinhos e a mostrar-lhe os seus sapatos novos da Feira!
No dia 31 de Agosto de manhã, ao acordar, o Chiquinho estava convencido que tinha sido um sonho naquela noite e, só durante o dia se foi apercebendo que tinha sido verdade de ter ido à Feira de Agosto a Vila Viçosa e relembrando o que tinha visto, depois não se cansava de contar as aventuras que tinha vivido, mas quando os pais contavam a parte da sua corrida entre os dois carroceis, dizendo que ia só a Capelins de Baixo, ficava muito envergonhado e zangado por lhe darem na crista.
Fim

Texto: Correia Manuel

Ferreira de Capelins

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