segunda-feira, 3 de outubro de 2022

A lenda do ti Miguel Sem Vagar, de Capelins

 A lenda do ti Miguel Sem Vagar, de Capelins 

Em meados da década de mil oitocentos e oitenta, chegou às terras de Capelins mais uma Família, proveniente da vizinha Freguesia de Santiago Maior, o ti António Frade, a sua mulher a ti Maria Gertrudes e cinco filhos e filhas que, ficaram a morar no Monte do Meio, onde já morava uma irmã da ti Maria Gertrudes! 
O ti António Frade, era seareiro em Santiago Maior, onde tinha duas courelas que vendeu e, com esse dinheiro comprou três courelas nas terras de Capelins, continuando a ser seareiro, semeando as suas courelas e as que conseguia arranjar ao terço e ao quarto! Com ele, trabalhavam alguns elementos da família! 
De entre os filhos, o mais novo, chamava-se Miguel Frade e, desde pequenino, já se destacava nos trabalhos, era frenético, queria ajudar em tudo, agarrava-se a sacos, molhos de cereais e outros apetrechos da lavoura, não podia, mas nunca desistia! Levantava-se sempre cedo e começava logo a trabalhar, pedindo ao pai para lhe dar tarefas a fazer! 
Antes de fazer dez anos de idade, já conduzia o carro da parelha de mulas da casa, com grande segurança e sabedoria, mas o Miguel sonhava com os trabalhos agrícolas, passava o tempo nas courelas, sempre a trabalhar, parecia que nunca se cansava! Quando o pai o mandava sentar-se a descansar, a resposta era sempre a mesma: "Não tenho vagar"! 
A situação, por vezes era preocupante, porque os pais achavam que o trabalho era muito pesado para ele, desde madrugada até cair na cama, mas não conseguiam demovê-lo e acabavam por comentar: "Isto são coisas de criança, depois passa-lhe"! 
Quando a família andava a trabalhar nas courelas, fosse a lavrar, juntar pedra, mondar, ceifar, ou debulhar os cereais na eira, chegava a hora do almoço, do jantar, da merenda ou da ceia, sentavam-se no chão, faziam uma roda e comiam as refeições, mas o Miguel, nunca se sentava, comia sempre em pé e, os pais comentavam: 
Ti António: Isto não é normal, a quem é que o gaiato sai? 
Ti Maria: Não sei, homem!  A mim não é de certeza! Sabe-me pouco bem sentar-me e comer descansada é só o bocadinho que descanso durante o dia! 
Ti António: Olha que a mim, é que ele não sai, também não dispenso um bom assento, nem que seja no chão! 
Ti Maria: Então, onde é que o gaiato foi apanhar isto? Eu não conheço ninguém na nossa família que tivesse isto! 
Ti António: Ah, não conheces? Então a tua tia Anna Sem Vagar? Já não te lembras dela? 
Ti Maria: Lembro homem! Mas isso, não sei se era verdade! Era o que as pessoas diziam lá em Santiago,  mas eu sempre a conheci sentadinha numa cadeira lá no lageado debaixo da parreira! 
Ti António: Sim mulher, ela passava os dias sentadinha debaixo da parreira! Mas quantas vezes a foram buscar lá abaixo dentro do ribeiro? Marchava de gatas para a courela, só que não conseguia passar o ribeiro! 
Ti Maria: Pois, coitadinha, isso aconteceu algumas vezes, quando já não estava boa da cabeça!
Ti António: Não era isso que as pessoas diziam lá na Aldeia! Até dizem que não queria abalar lá para o céu, de maneira nenhuma, porque não tinha vagar para morrer! 
Ti Maria: Não, não António, a minha falecida mãe, disse-me que se ficou que nem um passarinho! 
Ti António: Olha Maria, não sei, cá na minha família nunca se ouviu dizer que houvesse casos destes! Mas isto vai passar! O dia que começar a namorar já vai ter muito vagar! Vais ver! 
A conversa sobre a quem o Miguel Sem Vagar saía, ficou por ali! 
O Miguel foi crescendo, mas a sua atitude não mudava, era trabalhar, trabalhar, e quase nunca se sentava! Nunca tinha vagar!
Já era rapaz moço e não procurava rapariga para namorar, dizia que não tinha vagar! Porém, quando chegou aos vinte e quatro anos, atingiu a maioridade e a idade casadoira, era muito cobiçado pelas raparigas das terras de Capelins e, principalmente pelos pais delas, não que fosse grande figura física, mas por ter fama de muito trabalhador e muito honrado, as melhores qualidades desejadas pelos pais, para os maridos ou mulheres dos seus filhos!
Numa noite, de terça feira de Carnaval, o Miguel foi ao baile em Ferreira de Capelins, mesmo sem vagar e sem saber como, começou a falar com a Maria Joaquina! É verdade que, já existiam alguns recados, mesmo entre os familiares, mas ainda não tinham falado em namoro, porque, o Miguel não tinha vagar! 
Nessa semana, o Miguel foi pedir ao pai da Maria, se autorizava o namoro! O pai da Maria estava desejando em dizer logo que sim, mas existia um ritual que tinha de ser cumprido, sobre quais eram as suas intenções e para tomar atenção ao que ia fazer, porque se fosse para fazer pouco dela o melhor era pôr-se a andar dali! 
O Miguel prometeu que era para respeitar a Maria e vinha cheio de boas intenções, quando fizesse o namoro era para casar!
Ficou, então tudo combinado com o pai da Maria, o Miguel podia ir namorar com ela, à moda da Aldeia, ou seja, umas horitas nos Domingos à tarde e, tinha de ser empinado à janela pequenina, a que tinha duas barras de ferro ao meio, era mesmo assim, com todos os namoros! 
No Domingo seguinte, à hora combinada o Miguel passou em frente à janela da Maria, para o lado de baixo, para o lado de cima, para o lado de baixo, para o lado de cima, até que viu um aceno com um lencinho, então aproximou-se e disse: 
Miguel: Boa tarde Maria! Estava a ver que não era para hoje e eu sem vagar! 
Maria: Boa tarde Miguel! Já sabes que, enquanto a minha mãe não se despachar para nos guardar, não posso vir! 
Miguel: Está bem, Maria, está bem! Como sabes, eu não tenho vagar para isto, por isso, quanto mais depressa te ler o responso, mais depressa me vou embora! 
Maria: Oh Miguel, mas tu sabes que não pode ser assim, o namoro é para nos conhecermos e para irmos acertando as nossas ideias, para depois de casarmos nos darmos bem! 
Miguel: Ainda estamos a começar, olha já onde tu vais, no casar! Assim, ainda é mais depressa do que eu pensava! Ainda bem, porque eu não tenho vagar! 
Maria: Oh Miguel, não é assim tão depressa! Temos de fazer o namoro como toda a gente e só depois podemos casar!
Miguel: Está bem! Então, para começarmos o namoro diz-me lá o que andaste fazendo esta semana? 
Maria: Oh Miguel, então andei na monda na courela pegada à tua, todos os dias me vias, eu bem vi que olhavas para mim! 
Miguel: Ah sim, pois, pois, mas o que é que eu te perguntava? Olha, faz de conta que não sabia! E fizeste mais o quê, depois da monda? 
Maria: Olha, ajudei a minha mãe a fazer a comida, a lavar a loiça, fazer lume, varrer a casa, tratar das galinhas, cozer e pôr remendos na roupa de todos, só te digo que não parei nem um bocadinho! 
Miguel: Ora, é mesmo isso que eu gosto de ouvir! Não podemos parar nem um bocadinho! Não há vagar para isso!
Maria: Oh Miguel, mas também não pode ser assim, não somos de ferro, temos de descansar algum bocadinho, senão até podemos ficar doentes! 
Miguel: Então, e não descansamos a noite toda? Olha que passamos muitas horas na cama, dá bem para descansar! Muito descanso só faz é mal! 
Maria: Olha Miguel, tenho ouvido sempre dizer que algumas pessoas precisam de mais horas de descanso do que outras! 
Miguel: Sim, acredito que seja verdade, os malandros precisam de mais descanso do que os aguçosos! Bem, agora que já te li o responso tenho de me ir embora, porque eu não tenho vagar!
Maria: Espera lá mais um bocadinho Miguel, mesmo agora chegaste, já te queres ir embora, o que vão as pessoas dizer do nosso namoro? 
Miguel: Olha, o que tinha para te dizer, está tudo dito, por isso, vou-me já embora, porque não tenho vagar!
O Miguel e a Maria despediram-se com um "adeus" e ele foi emparelhar as mulas para ir lavrar, fazer o alqueve! O namoro durou quase um ano e, foi todo assim, sempre à pressa! 
Como o Miguel não tinha vagar para namorar, combinaram o casamento e foram falar com o Pároco de Santo António, o Padre Isidoro José Ribeiro que, tratou dos papéis de estilo, realizando-se o matrimónio na Igreja de Santo António, no Domingo dia 25 de Setembro de 1910!  
O casamento foi à pressa e, a sua vida continuou igual, sempre sem vagar, era só trabalhar, não dava muita atenção aos filhos porque, achava que isso era tarefa da Maria! 
Já no fim da sua vida, ainda ia diariamente para as suas courelas na carroça puxada pela sua parelha de mulas, tinha grande dificuldade em subir para ela, era de gatas, mas lá partia em cima da carroça, parecia uma foice todo dobrado, mas sempre em pé, quando lhe pediam para se sentar, respondia sempre: "Não tenho vagar"! 
Quando chegou o momento de ir prestar contas ao Criador, teve muito vagar, ficou-se que nem um passarinho! 
Foi assim a vida do ti Miguel Sem Vagar, como a de muitos outros residentes, nas terras de Capelins! 
Bem Hajam! 


Fim 

Texto: Correia Manuel 



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