quinta-feira, 3 de agosto de 2023

Memórias do Chiquinho de Capelins, quando tinha medo das pessoas que andavam ao Deus dará

Memórias do Chiquinho de Capelins, quando tinha medo das pessoas que andavam ao Deus dará 

No início do decénio de 1960, ainda apareciam homens, mulheres e crianças, sozinhos ou em grupos a pedir esmola de Monte em Monte, onde, geralmente eram mais bem sucedidos, porque já contavam com eles, coziam mais um pão ou dois e, havia sempre algum conduto, umas azeitonas, um bocadinho de toucinho cozido das sopas, umas passas de figos, um bocadinho de queijo, ou outro, mas também, batiam porta a porta nas Aldeias. 

Quando o Chiquinho de Capelins, andava a brincar à porta dos avós na rua principal de Capelins de Baixo, assim que aparecia algum pedinte no início da dita rua, ele deixava tudo e fugia com medo para casa a encostar-se à avó, que adivinhava logo, ter chegado algum forasteiro à Aldeia, perguntava-lhe o que tinha acontecido, e ele respondia que, estava ali um homem ou uma mulher com um saco, que andava ao "Deus dará", mesmo que não fosse o caso, bastava ser alguém, que ele não conhecia. 

As pessoas que "andavam ao Deus dará", começavam a bater na primeira porta da rua e iam batendo em todas, pedindo uma esmolinha por amor de Deus, por caridade ou pela alma dos seus, cada um tinha a sua lenga lenga própria, de maneira a impressionar o eventual dador, algumas vezes, inventavam que lhe tinha acontecido grande desgraça na sua vida e que já não comiam nada havia três dias, mas a maioria desses mendigos eram sempre os mesmos, já aqui conhecidos e, deviam ter um acordo entre eles para cada um vir em dias diferentes, para não sufocar os benfeitores, mas havia dias que apareciam uns atrás de outros e como os moradores da Aldeia, também eram pobres, não tinham nem uma falhinha de pão para dar a todos, porque tinham muitos filhos, logo, muitas bocas a alimentar. 

Algumas vezes, o Chiquinho estava na casa dos avós, outras nas das tias ou das primas, que moravam ao longo da dita rua e, quando batiam à porta, elas, pela maneira de bater, tão forte que assustava qualquer mortal, sabiam logo que era um pedinte, mas perguntavam sempre em voz alta: - Quem é? E eles respondiam: - Um seu criado! E elas rematavam: - Criado de Deus! Depois iam à porta e eles faziam o pedido de um bocadinho de pão ou outra coisa para comer, alguns diziam que estavam muito fraquinhos com muita fome, para a esmola ser melhor, mas isso, fazia parte da sua retórica, elas davam-lhe um bocadinho de pão com três ou quatro azeitonas de conduto, não se podiam alargar, porque sabiam que logo a seguir, aparecia outro e outro, mas havia dias que esgotavam o pouco que tinham, porque falhinha a falhinha o pão ia desaparecendo e dele tinham de dar de comer aos seus filhos, que por vezes eram imensos, e quando os mendigos faziam o pedido, elas respondiam: - Hoje já não posso dar mais nada, mas "Deus dará"! 

O Chiquinho ouvia muitas vezes essa resposta: Não posso dar nada, mas "Deus dará"! E ouvia algumas conversas entre os avós, as tias e as primas, sobre acontecimentos, e quando perguntavam com quem tinha sido, respondiam: - Isso aconteceu com um, ou uma, que anda aí ao "Deus dará"! Tudo isso, fazia grande confusão ao Chiquinho, até que  um dia perguntou ao avô, o que era andar ao "Deus dará" e qual a diferença entre um pedinte, um mendigo e uma pessoa que andava ao "Deus dará", e o avô explicou-lhe que era o mesmo, não havia diferenças, andavam todos a pedir esmola para comer, perdidos no mundo e, todos ao "Deus dará", cada pessoa chamava-lhe como queria, e a expressão ao "Deus dará" era uma maneira da pessoa que não podia dar esmola aliviar a sua consciência, abençoar o pedinte, invocando que, ela não podia dar esmola, mas a seu pedido, a mesma, ficaria a cargo de Deus e, assim, o Chiquinho ficou a saber o que era uma pessoa "andar ao Deus dará", era o mesmo que, andar a pedir esmola, perdida no tempo e no mundo, ficando para sempre, na sua memória.

Fim 

Texto: Correia Manuel




Sem comentários:

Enviar um comentário

Povoado de Miguéns - Capelins - 5.000 anos

  Povoado de Miguéns -  Capelins - 5.000 anos Conforme podemos verificar nos estudos de diversos arqueólogos, já existiam alguns povoados na...