domingo, 27 de agosto de 2023

Memórias do Chiquinho de Capelins, quando achou o ninho de "cutevia"

Memórias do Chiquinho de Capelins, quando achou o ninho de "cutevia" 

Num dia do mês de Maio de um ano dos finais da década de 1960, o Chiquinho de Capelins foi prender as suas cabras na pastagem da courela do Gomes e como fazia sempre que tinha tempo foi ver como estavam os seus ninhos, quantos ovos ou passarinhos tinham e aproveitou para espiolhar as oliveiras em redor para tentar encontrar mais algum ninho. 

Como se aproximava a hora do ajuntamento da rapaziada para as brincadeiras em Capelins de Baixo, nem tomou muita atenção e meteu-se a caminho pela courela abaixo, porém, quando chegou a um altinho levantou-se a voar uma cotovia, quase debaixo dos seus pés que o deixou desconfiado que ela tinha por ali o ninho e começou a procurá-lo, mas olhava, olhava para ele e nem o via, porque estava bem disfarçado e não passava de uma covinha na terra com uns pastinhos, junto a umas ervas altas, o Chiquinho ficou muito contente e gritou: Mais um! Dezoito! E depois de ver que tinha três ovos, deduziu que a cotovia ainda estava a pôr, por norma seria mais um ovo e, depois começava a chocar, agora era marcar o azimute, bem tirado, ou seja, a direção para Norte, Sul e Oeste e não precisava de mais. 

O Chiquinho ficou muito contente e foi falando sozinho até Capelins de Baixo, fazendo as contas dos ninhos e muito orgulhoso com ele próprio por ser dono de tantos ninhos e quando chegou junto da rapaziada não se conteve e disse-lhe: - É malta, tenho tanta sorte que nem preciso de procurar os ninhos, até os acho debaixo dos pés, mesmo agora achei um de "cutevia"! 

Os rapazes ficaram cheios de inveja, por ele ser o maior proprietário de ninhos na Aldeia de Ferreira e alguns concordaram que ele tinha muita sorte com os ninhos e, agora tinha mais um, ainda por cima de "cutevia" que quase ninguém achava! 

O Manel estava calado, mostrando cara de pouco amigo, com inveja, e como não tinha por onde descaldeirar, pegou pela "cutevia" e disse: 

Manel: Mas desde quando é que se diz "cu te via? Não conheço esses pássaros! Não foi assim que aprendemos na escola, foi: "cu tu via"! 

Chiquinho: No livro da escola não está "cu tu via", vai lá ver que está lá: "co to via"com dois ós! Mas a gente cá na Aldeia não diz como está no livro, temos de falar como as outras pessoas de cá e elas dizem todas: "cu te via"! 

Manel: Pronto, está bem, mas dizem mal,  porque no livro pode estar escrito: "co to via", com dois ós, mas diz-se "cu tu via", com se fossem dois us! 

Estava a discussão armada, nenhum rapaz duvidava que no livro escolar estava "co to via", mas tinham de falar à moda da Aldeia de Ferreira e neste caso era: "cu te via" ou algumas pessoas também diziam "cu tu via"! 

Quando os rapazes estavam em grande discussão ia passando o ti Miguel e perguntou-lhe o que era aquilo ali? Pareciam galinhas escarapantadas na capoeira a fazer tanto barulho! 

O João aproveitou a deixa do ti Miguel e perguntou-lhe: 

João: Olhe lá ti Miguel, como é que a gente aqui na Aldeia dizem, "cu te via" ou "cu tu via"? 

Ti Miguel: Não tenho vagar! Que pergunta é essa rapaz? Estás a mangar comigo? Então o que é que vocês andam a fazer na escola? A aprender o que não devem! Uns galhavanos com esta idade não sabem fazer nada, quando eu tinha a sua idade já trabalhava ombro a ombro com os homens e não ficava para trás! 

João: É ti Miguel, deixe lá isso agora, a gente sabe como se escreve na escola, mas como é que as pessoas dizem aqui na Aldeia? 

Ti Miguel: Não tenho vagar! Então como é que haviam de dizer? Como o meu avô, o meu pai e antes deles já diziam, é uma "cu te via"! 

João: Obrigado ti Miguel, era só para sabermos isso! 

Ti Miguel: Não tenho vagar! Tenho muita pena de vocês, não sabem fazer nada e quando eu pensava que andavam a aprender alguma coisa de jeito lá na escola vêm perguntar-me uma coisa destas, a mim, que não sei ler nem escrever! Não dou nada por esta rapaziada de agora! Não sabem fazer nada! Vou-me lá que eu não tenho vagar! 

Rapazes: Vá, Vá, ti Miguel, está-se a fazer tarde! 

Ti Miguel: Não tenho vagar! Então, que horas são já? 

Rapazes: É muito tarde ti Miguel! Já é perto de meio dia! 

Ti Miguel: Não tenho vagar! Então tenho de ir, ainda tenho as sopas ao lume! 

Rapazes: Até logo ti Miguel, vá depressa ver das sopinhas! 

O ti Miguel seguiu o seu caminho e os rapazes continuaram a discussão sem chegarem a entendimento se era "cutevia" ou "cutuvia". 

No ninho da cotovia criaram-se três cotoviozinhos que o Chiquinho visitava quase, diariamente, sem se aproximar muito, para a cotovia não enjeitar o ninho, afinal ele era o seu dono, mas um dia quando foi fazer a visita, já lá não estavam, tinham partido atrás dos pais a conhecer o mundo de Capelins. 

Fim 

Texto: Correia Manuel 

Colmeadas - Capelins




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