sábado, 21 de janeiro de 2023

Memórias da volta a Olivença, da viola e do lobo branco

Memórias da volta a Olivença, da viola e do lobo branco

Decorria o mês de Junho de um ano do início da década de 1970, já havia alguns rapazes de férias na Aldeia de Ferreira e, com outros que não tinham nada que fazer, passavam o tempo pelas respetivas tabernas, contando peripécias e anedotas, tomando algumas bebidas e jogando às cartas, ou outros jogos.
Numa noite ao serão, alguns rapazes perguntaram ao grupo se tinham planos para o dia seguinte e, quase todos encolheram os ombros em sinal que não tinham nada na ideia, mas o João disse que no dia seguinte ia dar uma volta a Olivença com dois rapazes da Aldeia das Hortinhas, ainda não tinha acabado de falar e já todos diziam que também queriam ir com eles.
Então, o João explicou as condições, para os que quisesse ir, tinham de sair dali um quato para as 06 horas, para estarem em Cheles antes das 08 horas e apanharmos La Estellesa para Olivença, que partia às 07,50 horas, íamos pelas Azenhas D' El-Rei, passávamos por cima do açude, mas depois para cá, só voltávamos no outro dia pelas 05,15 horas, no barco do ti Fura, já estava tudo combinado com ele, que era para passarmos a noite em Cheles, que aquilo à noite era muito bom, por isso, quem quisesse ir, era estar ali à porta da taberna a essa hora, os rapazes das Hortinhas iam de motorizada ter lá ao Guadiana.
O João contou o número de rapazes que queriam ir e eram seis, com os dois da Aldeia das Hortinhas seriam oito, e ficou tudo combinado.
Na madrugada seguinte, à hora marcada, lá nos juntámos todos e partimos à pressa, pelo Monte da Figueira, Ramalha, Zorra, descemos o Ribeiro do Carrão até perto da Ribeira de Lucefécit, depois virámos pela fonte da lesma até ás Azenhas D' El-Rei, aí passámos pelo açude e muito antes da oito horas estávamos em Cheles, fomos logo procurar a paragem de la Estellesa, mas estivemos, estivemos e não havia sinais da camioneta, então, os que ablavam um pouco de portunhol pediram a confirmação do horário e disseram-lhe que era às 07,50 horas, mas como já eram quase nove horas, já estava em Olivença, e foi quando percebemos que em Espanha era mais uma hora do que em Portugal, mas ao dizermos que queríamos ir para Olivença, indicaram-nos o carnicero (talhante) que tinha um jipe e que nos levava a Olivença, ficámos aliviados e fomos primeiro ao café dos Birutas, já conhecidos, porque apareciam pelas terras de Capelins,a trabalhar e a fazer contrabando de café, aí trocámos escudos por pesetas e fomos procurar o carnicero de Cheles que se prontificou a levar-nos para Olivença.
A carretera, ou estrada tinha tantas curvas e a condução era tão agressiva que nós apanhámos o maior susto das nossas vidas, como no jipe, lá atrás, não tínhamos onde agarrar, quase fazíamos piroletas e batíamos com os pés no tejadilho, mas nada incomodava, porque o que mais queríamos era ir para Olivença e lá chegámos inteiros e fizemos uma grande festa.
Os oito portugueses metemos o nariz em todo o lado, bebíamos uma cerveja num café, uma cuba libre noutro, e foi quando estávamos num desses cafés que ouvimos ao João, qual o motivo que o levava a Olivença, era para comprar uma viola, porque, andava com a mania da música e, como os rapazes das Hortinhas já conheciam os lugares onde vendiam os instrumentos musicais iam de guias do João, então fomos todos procurar uma viola boa, barata e bonita, mas os preços eram muito altos para a bolsa dele e andámos horas e horas por Olivença à procura de uma viola que ele pudesse pagar e acabámos por a encontrar, o João comprou a viola e o Chiquinho comprou uns óculos de sol que, enquanto duraram, fizeram furor nos meios que ele frequentava em Lisboa.
Já com a viola, continuámos a andar de rua em rua, sem nos lembrarmos, que andávamos todos ilegais, mas as pessoas eram todas muito simpáticas, achavam graça aos muchachos portugueses e nem os guardas nos perguntaram nada.
Quando desconfiámos que seriam horas da chegada de La Estellesa, antes das 17,00 horas, a qual vinha de Badajoz, fomos para a paragem, mas ainda era muito cedo e com a viola do João sempre a trinar começámos a cantar as cantigas da moda que sabíamos que os espanhóis gostavam, entre elas: Ó "Manuel da rola"/ Das bandas d'além/Não me julgues tola/ Eu te entendo bem. (...) e São caracóis, são caracolitos/São os espanhóis, são espanholitos. (...), e aproximaram-se logo de nós dois rapazes das nossas idades muito admirados e perguntaram de onde éramos, o que faziamos ali e outras perguntas e disseram-nos que eles eram argentinos e que estudavam na Escola Agrícola de Olivença, depois pediram a viola ao João, mas ele respondeu: "Xóstra, nunca mais a via! Como o rapaz argentino disse que sabia tocar bem, nós insistimos para ele a emprestar, mas ele respondeu: - Então e se eles fogem com ela, nunca mais a vejo! Não, não, não empresto!
Depois de algum impasse, nós dissemos-lhe: - Ó João, empresta lá a viola e se eles fugirem com ela nós caímos-lhe todos em cima e não nos escapam! Então, assim ainda é pior, disse o João, se lhe caímos todos em cima esmarnecom-me a viola toda, fico sem ela na mesma, não, não!
Parecia que não havia nada a fazer, mas depois de muita conversa entre nós e os argentinos o João ganhou confiança e emprestou a viola a um deles que, assim que passou os dedos nas cordas disse que estava desafinada, pelo que, começou por a afinar o melhor possível e depois começou a festa, foi cantar e tocar músicas argentinas e portuguesas que, fez um ajuntamento de espanhóis, alguns ainda descendentes dos portugueses de Olivença, mas quando a festa estava no melhor chegou La Estellesa e tivemos de embarcar, com a promessa aos argentinos que brevemente lá voltávamos, e dissemos-lhe para estarem naquele sítio que íamos ali ter com eles, mas nunca mais lá voltámos.
Já instalados na la Estellesa a caminho de Cheles, de Aldeia em Aldeia, e a viola do João sempre a trinar, a viagem foi longa e por cada localidade que passávamos íamos lendo o nome em coro, até que chegámos a San Benito e gritámos, San Benito, já não falta muito para Cheles, alguns comentaram que devia ser São Bonito em português, mas outros não concordaram e armou-se uma discussão que durou até Cheles acompanhada pelo trinar da viola do João.
Por fim chegámos a Cheles e os passageiros de La Estellesa respiraram de alívio, por se livrarem de tão incómodos companheiros de viagem, estavam cansados de ouvir a nossa gritaria e a viola do João, mas não disseram nada, porque a maioria dos espanhóis gostam muito de festas.
Já na Vila de Cheles, continuou o festival de café em café, até tudo fechar, o último foi o casino (sociedade artística) e pouco depois decidimos ir andando até às Azenhas D' El-Rei, ainda era cedo, mas Cheles já dormia e decidimos abalar, depois lá numas moitas de juncos, podíamos amagar e passar pelas brasas até à chegada do ti Fura com o barco, fomos indo fazendo grande algazarra que se ouvia em Portugal e o João sempre a mandar-nos calar, porque, se os carabineiros (guardas espanhóis) aparecessem ali íamos todos dormir o resto da noite ao Posto da Guarda de Cheles, mas isso era o menos, dizia ele, o pior é que eu fico sem a minha viola, mas os carabineiros se por ali andavam, fugiram de nós, porque se fossemos contrabandistas, não íamos naquela festa.
Quando estávamos perto das Azenhas D´El-Rei, do lado de Espanha, apareceu à distância, a uns cem metros, um grande cão, maior do que o rafeiro alentejano, quase todo branco, parámos com medo de avançar, mas o cão não nos atacou, andava de um lado para o outro, então, alguns alvitraram que devíamos dar uma volta mais larga, depois, quando fosse a hora do ti Fura chegar com o barco, logo nos aproximávamos do sítio combinado para o embarque, mas outros disseram que não era um cão, era um lobo, porque já tinham ouvido aos contrabandistas que havia ali muitos lobos e assim, começou mais uma discussão, alguns rapazes diziam que não era lobo, porque já tinham visto lobos no jardim zoológico e não eram brancos, mas outros, continuavam a dizer que tinham ouvido aos contrabandistas que havia ali lobos brancos e mostravam muito medo em se mexer dali.
Como o cão não se aproximava, decidimos ir em frente na direção do Rio Guadiana e foi quando ele, sem nunca ladrar, avançou direito a nós, então ficámos aflitos e corremos para as azinheiras e chaparros mais próximos e num salto ficámos lá em cima, exceto o João que, para não estragar a viola levou mais tempo a subir, mas o cão não avançou mais e ficou por ali, e nós com o cansaço fomos passando pelas brasas em cima dos chaparros e quando o ti Fura chegou não viu ninguém, mas deu um assobiu e alguns rapazes ouviram, foi a nossa sorte, senão ele ía-se embora e nós tínhamos de passar o rio Guadiana, novamente pelo açude, por onde o João não queria passar, porque antes do açude havia um correntão forte e perigoso e ele podia molhar a viola, por isso, combinou a passagem de barco.
O ti Fura levou-nos no barco, todos numa viagem, e depois de lhe contarmos o motivo de estarmos empoleirados nas azinheiras e chaparros, riu-se e disse-nos que não era um lobo, era um cão ali do Monte e era muito manso, os contrabandistas até lhe faziam festas quando ali passavam, era grande, metia respeito, mas não fazia mal a ninguém e que ali não havia lobos, depois de passarmos pelo pego de Dª Catarina, encolhidos com medo, devido à sua profundidade, desembarcámos junto à foz, na margem direita da Ribeira do Lucefécit, o ti Fura escondeu os remos, encheu o barco de água por causa do sol não ressequir a madeira e com uma corrente e um cadeado prende-o a um freixeiro e foi trabalhar, e nós fomos a pé, pelo mesmo caminho de volta à Aldeia de Ferreira, onde chegámos já o sol ia alto, despedimos e fomos a correr para as nossas camas e dormimos o dia todo, à noite quando nos juntámos na taberna, já foi acompanhados do trinar da viola do João.
Fim
Texto: Correia Manuel

Cidade de Olivença
Foto: net



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