sábado, 18 de fevereiro de 2023

A lenda do fado, "Olha a Mala", em Capelins

 A lenda do fado, "Olha a Mala", em Capelins

Nos anos de 1950, quando a senhora Celeste Rodrigues cantou o fado "Olha a Mala" teve tanto êxito que era só o que se ouvia cantar por todos os cantos do país, chegando à Aldeia de Ferreira, onde não havia ninguém que não cantasse ou assobiasse o refrão - "Olha a mala...olha a mala/Olha a malinha de mão/Não é tua...nem é minha/É do nosso hidrovião".
Este fado era tão popular que se ouvia de dia e de noite em todos os lugares da Freguesia de Capelins, nas Aldeias, Montes, malhadas, choças, cabanas e nos campos, chegando ao ponto de enjoar e toda a gente pedia por todos os santinhos que não cantassem mais o "Olha a Mala", porque, era um massacre, e quando algumas pessoas perceberam isso, começaram a usá-lo para fazer pouco dos outros, ou seja, quando uma conversa ou qualquer ato não lhe agradavam, começavam a cantarolar o "Olha a Mala", uma forma de chamar parvo a alguém e, começou a dar origem a alguns sopapos.
O ti Manel Joaquim e a ti Joaquina Maria, moravam na Aldeia de Ferreira, eram seareiros, tinham umas courelas perto da Aldeia, onde tinham uma boa choupana, como se fosse uma casa, até lá faziam lume, a um canto, onde cosiam as sopas do jantar (almoço) e era lá que passavam os dias, voltando a casa no seu carro da mula ruça à noitinha.
O ti Manel e a ti Joaquina, por vezes chegavam a casa ao sol posto, outros vezes já era noite, como aconteceu naquele dia do mês de Março e, quando já estavam dentro da Aldeia, antes de chegarem a casa, começaram a ouvir o fado, "Olha a Mala", ficaram arrepiados, porque esse fado estava proibido na Aldeia de Ferreira, uma vez que era um símbolo de ofensa, por isso, não entendiam, porque motivo aquela pessoa, na taberna, estava a cantar o dito fado, com aquele descaramento.
Assim que chegaram a casa, ele foi desengatar a mula do carro, meteu-a na cabana, deu-lhe uma pouca de palha, limpou a palha velha do chão da cabana e atirou alguma palha nova para a cama do animal e foi tratar do bacro (porco) que quase saía do chiqueiro a grunhir com fome, e a ti Joaquina foi fazer lume e uma açorda de espinafres com ovos para a ceia (jantar) e quando o ti Manel entrou em casa, depois de tudo arrumado no quintal, com a cesta dos ovos que tinham trazido das galinhas que tinham na courela, já a ti Joaquina estava a partir dois ovos para escalfar na açorda que estava fervendo.
O ti Manel foi guardar os ovos na despensa, para depois venderem à ti Chica dos ovos, de Vila Viçosa, e quando voltou perguntou se a açorda ainda estava demorada, porque já estava cheio de fome, e a ti Joaquina respondeu que estava quase pronta, já podia ir lavar as mãos e migar as fatias de pão para o barranhito, ia já arredar a tigela de fogo do lume, depois era só perder a fervura.
O ti Manel e a ti Joaquina comeram a açorda de espinafres quase em silêncio, mas no fim da ceia, ela não se conteve e perguntou-lhe:
Ti Joaquina: Ó Manel, então tu não ouviste cantar o "Olha a Mala", ali para a taberna? O que seria aquilo?
Ti Manel: Ó Joaquina, então não havia de ouvir! O que era aquilo não sei, mas olha que fiquei desconfiado que era a fazerem pouco da gente!
Ti Joaquina: Ai Manel, olha que eu pensei o mesmo! Mas se não fizemos mal a ninguém, não merecemos uma coisa dessas!
Ti Manel: Pois não, mas tu sabes o que é a inveja! Deixa que se isso continuar, eu vou lá ver quem é, e dou-lhe o arroz!
Ti Joaquina: Deixa-te disso homem, cada um faz a sua vida e não vamos arranjar fezes!
Ti Manel: Ai não? Então vais ver! Vá, despacha-te que está na hora de deitar!
Ti Joaquina: Então vai lá dar a palha à mula, que eu vou lavar a louça e meter os grãos de molho para as sopas de amanhã!
A ti Joaquina, de manhã, levava já os grãos, com uma batata e alguns temperos, um bocadinho de chouriça, de farinheira e de toucinho, dentro da panela e depois fazia lume lá na choupana na courela e cosia lá as sopas para o jantar (almoço).
Pouco passava das vinte horas, já tinham tudo arrumado e foram para a tulha, isto é, para a cama e não demorou nada, já ressonava cada um para seu lado, porém, pela meia noite deu-se o primeiro despertar, para usarem o penico que estava debaixo da cama, porque nessa época não havia casas de banho na Aldeia, toda a gente tinha um penico, uma vez que durante a noite não podiam ir à rua, assim, o ti Manel e a ti Joaquina, quase encheram o penico e com o sono que estavam, nem o taparam com o abanico, ferraram a dormir, até que, o ti Manel sentiu as cotoveladas da ti Joaquina a chamá-lo:
Ti Joaquina: Manel, ó Manel, tu não estás a ouvir o mesmo que eu? Ou será que dei em doida?
Ti Manel: É Joaquina, estou a ouvir o "Olha a Mala"! É o que estás a ouvir?
Ti Joaquina: Então não é, Manel! Estão a cantar à nossa porta, ou aqui à nossa janela! Acende lá a candeia e vai lá à porta ver quem anda a fazer pouco da gente!
O ti Manel levantou-se em ceroulas, calçou as botas de cabedal e foi a correr à porta, mas quando chegou à casa de fora, deixou de ouvir o fado, ainda abriu a porta da rua, mas não viu ninguém, voltou ao quarto e disse à ti Joaquina que deviam ter fugido, mas ela respondeu que continuava a ouvir cantar o fado, por isso, se não era à porta, tinha de ser à janela.
A ti Joaquina insistiu e o ti Manel teve de ir em ceroulas, com a tranca da porta na mão, dar a volta ao quarteirão até à janela do seu quarto e não viu lá ninguém, mas quando entrou no quarto a ti Joaquina disse-lhe que, continuava a ouvir cantar o dito fado.
O ti Manel e a ti Joaquina, apuraram o ouvido e confirmaram que o cantar era debaixo da sua cama, e comentaram que, alguém para fazer pouco deles lhes tinha metido uma grafonola debaixo da cama e começaram a tirar a tralha toda, até ficar só o penico e, como o fado continuava, a ti Joaquina deitou a mão à asa do penico e puxou-o para ela e naquele momento benzeu-se e deu um grito que assustou o ti Manel:
Ti Joaquina: Ai valha-me Deus, Manel! Olha bem para isto!
O ti Manel correu a olhar para dentro do penico e ambos viram um grande Mosquito das patas altas a remar com dois palitos no produto biológico em volta do penico e cantando: Olha a mala...olha a mala/Olha a malinha de mão/Não é tua...não é minha/É do nosso hidrovião. Eu um dia fui à praia/De manhã de manhãzinha/Não vi pescador nem peixe/Só lá vi uma malinha.
O ti Manel tapou, apressadamente o penico com o abanico e correu com ele para a rua, fazendo movimentos bruscos para afogar o dito cujo, e já na rua, deu voltas e mais voltas aéreas ao penico e por fim estatelou o produto biológico com todas as suas forças no meio da rua que saltou pelas portas dos vizinhos e pelas botas e ceroulas dele e no sítio onde o despejou pulou-lhe em cima até se cansar, por fim, recolheu ao quarto dizendo à ti Joaquina que nem os ossinhos lhe aproveitavam, aquele Mosquito nunca mais fazia pouco deles.
O ti Manel e a ti Joaquina, já pouco dormiram o resto da noite, a pensar no que tinha acontecido, mas só na courela falaram do caso e ambos concordaram que tinham sido as feiticeiras, por isso, à noite quando chegaram a casa fizeram defumadores e outras mezinhas para afastar dali as feiticeiras e a partir daquela noite, nunca mais ouviram cantar o "Olha a Mala".
Fim
Texto: Correia Manuel
"Texto construído a partir do que ouvia aos ancestrais, nas soalheiras e borralheiras em Capelins".




Sem comentários:

Enviar um comentário

Povoado de Miguéns - Capelins - 5.000 anos

  Povoado de Miguéns -  Capelins - 5.000 anos Conforme podemos verificar nos estudos de diversos arqueólogos, já existiam alguns povoados na...