segunda-feira, 15 de janeiro de 2024

Memórias do Chiquinho de Capelins, quando foi casamenteiro

 Memórias do Chiquinho de Capelins, quando foi casamenteiro 

Nas terras de Capelins, nunca existiram meios de comunicação social para a difusão de notícias, nem faziam falta, porque, eram difundidas, de forma personalisada, ou seja, de boca em boca, existia uma agência noticiosa concertada, que se encarregava de, em poucas horas, as divulgar através de um circuito interno que, rapidamente davam a volta completa à Freguesia de Capelins e arredores.

Na Aldeia de Ferreira havia pessoas com mais, ou menos talento para espalhar as novidades que mantinham a rede sempre ativa, quando sabiam alguma notícia de novo, deixavam de fazer o que estavam fazendo, tiravam o avental e dirigiam-se à casa da vizinha a comunicar o acontecimento, mas pelo caminho iam cumprindo a sua missão, a partir daí, as notícias ficavam entregues e seguiam de casa em casa, de taberna, em taberna, de mercearia em mercearia, pelo poço da bomba e pelos diversos pontos de encontro, aí entregavam e recebiam as novas notícias e, assim se mantinham os fregueses informados sobre o melhor e o pior que se passava na Freguesia e no país. 

Durante os meses de inverno e primavera, desde que, o sol desse a sua graça, as pessoas que, devido à idade ou por doença, não podiam trabalhar, passavam os dias sentadas à soalheira, algumas, feitas com lenha em feixes em pé, de maneira a fazer abrigada da aragem fria, ou atrás de paredes virados para o sol, por onde ia passando muita gente, deixando e recebendo as eventuais novidades. 

O Chiquinho de Capelins, era frequentador das soalheiras quase todas, diariamente, depois de deixar as cabras na pastagem, começava pela soalheira do ti João da Cruz, a que ficava mais a Norte, no altinho em frente à sua porta, ao lado do caminho para a Igreja de Santo António, porque, gostava muito de o ouvir contar a sua história de vida que, nunca se esgotava, e ouvia boas histórias, mas como a volta era longa, não se podia demorar, e dali passava para a soalheira do ti Zé Marizuco, ouvia e contava algumas peripécias e, quando ele lhe começava a pedir para lhe alcançar isto ou aquilo, porque, pouco se podia mexer, dava à sola para outra soalheira ali perto e, antes de seguir para Capelins de Baixo, já carregado de novidades, ainda visitava mais duas ou três soalheiras, no caminho para Sul, entre as quais, a soalheira onde se abrigavam a mãe, um pouco entrevada, devido a sequelas de um AVC e, a filha que tratava dela. 

O Chiquinho, nunca faltava nesta última soalheira, as freguesas eram muito simpáticas e amigas e tinham sempre alguma coisa para repartir e, como não sabia quando trincava alguma coisa, ou bebia água, aproveitava as dádivas e, em troca, contava-lhe o que tinha ouvido pelas outras soalheiras que não eram só fofocas, eram informações úteis, ou seja, também era serviço público, como um carteiro que trazia e lia as cartas. 

Num lindo dia primaveril, quando o Chiquinho estava na conversa, em pé, na frente da mãe e da filha, sentiu que estava a ser observado, olhou para o lado de baixo e, a alguma distância viu  um homem aos saltos de braços no ar e quando o Chiquinho olhava fazia gestos com o braço direito a chamá-lo, deixando-o muito intrigado, porque parecia um autêntico macaco, depois de se certificar que aqueles gestos eram para ele, despediu-se, meteu-se a caminho e quando se aproximou, confirmou que era o ti Manel António, que estava com cara de zangado a perguntar-lhe se não via a chamá-lo. 

O Chiquinho respondeu que via muito bem a figura que ele estava fazendo, mas que não percebia, porque não o chamava pelo nome, e ele explicou-lhe que a mãe da Rosa Maria, era o nome da rapariga já bem entradota na idade, não o podia ver, quanto mais ouvi-lo, porque já sabia que ele andava atrás da filha e não a queria perder, uma vez que, era ela que a tratava, não podia ficar sem ela, porque tinha mais filhas, mas moravam longe, ou não tinham disponibilidade para lhe prestar apoio permanente.

O Chiquinho ficou entusiasmado, era grande novidade, ainda não tinha desconfiado de nada, mas o ti Manel fixou-o nos olhos e disse-lhe que, ninguém podia saber de nada, senão estava desgraçado da vida, convenceu-o a não abrir a boca, e continuou:

Ti Manel: Olha lá Chiquinho, tens de me fazer um favor, um grande favor, levas este papel à Rosa, e depois trazes a resposta, porque eu não posso sair daqui para a mãe dela não me ver, porque ela não me pode ver, mas dá-lhe o papel sem a mãe ver, senão, não sou só eu que estou lixado, tu também estás! 

Chiquinho: Ó ti Manel, eu não me meto nisso, se a mulher descobre não me escapo de levar umas tanganhadas nas orelhas e nunca mais posso arrumar lá à soalheira delas! Arranje outro rapaz que lhe faça isso! Eu tenho de ir a Capelins de Baixo e levo muita pressa! 

Ti Manel: Espera lá Chiquinho, faz-me lá esse favor, voltas lá e daí a pouco pedes um copo de água à Rosa, dizes que estás sequinho, com uma grande sede, depois ela vai a casa a dar-te a água e tu entregas-lhe o papel e esperas a resposta, que é só, sim ou não! 

Chiquinho: Ó ti Manel, tudo se sabe, e se o meu pai descobre ainda me dá uma sova por andar feito casamenteiro, não posso, não posso fazer isso! 

Ti Manel: Olha lá Chiquinho, se me fizeres esse favor dou-te cinco escudos e quando voltares com a resposta, ainda te dou mais alguma coisa! 

Chiquinho: É ti Manel, dá-me cinco escudos? Mas eu não é pelo dinheiro, é pela encrenca em que me vou meter! 

O Chiquinho fez-se difícil mas ficou logo decidido, cinco escudos davam para quatro pacotes de bolachas de baunilha e o ti Manel ainda lhe dava mais alguma coisa, decerto dava para mais uns chocalates, tirava bem a barriguinha de miséria, com tantas guloseimas. 

Ti Manel: Ó Chiquinho, não te metes em encrenca nenhuma, tens é de fazer tudo como eu te disse, a mãe dela não pode sonhar com isto! 

Chiquinho: Está bem ti Manel, dê-me lá o papel e os cinco escudos que eu vou fazer o mandado! 

O Chiquinho voltou à soalheira e começou por dizer que tinha voltado, porque se estava ali muito bem, muito quentinho e mais isto e mais aquilo, mas o pior era que estava cheinho de sede e a Rosa disse-lhe para ir lá a casa que ficava em frente da soalheira, do outro lado da rua, uma vez que sabia onde estava o quartilho e a cantarinha da água, já lá tinha ido a beber mais vezes, e o Chiquinho ficou assustado, não esperava essa resposta e, a gaguejar um pouco, disse-lhe que esperava que ela fosse lá a casa, porque tinha medo de lhe partir a cantarinha como já tinha feito a uma da mãe! 

A Rosa ficou convencida que o Chiquinho lhe podia partir a cantarinha, levantou-se e disse-lhe para ir com ela, porque tinha de ir buscar alguma coisa para a mãe comer e lá foram, o Chiquinho entregou-lhe o papel dobradinho, bebeu uma pinga de água e a resposta não demorou, sem antes lhe chamar "seu malandro", diz-lhe que é "sim", foi dali e já não quis saber mais da soalheira, correu a dar a resposta ao ti Manel, não só por ter sido bem sucedido, mas porque esperava mais uma boa gorjeta. 

O ti Manel agradeceu, deu-lhe um abraço, meteu a mãe ao bolso e tirou vinte e cinco tostões, que o Chiquinho apanhou, pouco convencido, porque, por uma notícia tão boa, esperava pelo menos mais cinco escudos, mas a melhadura ficou por ali, depois seguiu para Capelins de Baixo e continuou com a rota das soalheiras, mas depressa se desfez do dinheiro dado pelo ti Manel, na loja do ti Zé Francisco, a pontos de enjoar as bolachas de baunilha.

Passados alguns meses, também, devido à ajuda do Chiquinho casamenteiro, o ti Manel e a Rosa, juntaram os trastes e as roupinhas e, mais tarde casaram.

O ti Manel e a Rosa, já idosos, foram prestar contas ao Criador, dentro de curto espaço de tempo entre um e outro, mas viveram em comum, quase cinquenta anos. 

Fim 

Texto: Correia Manuel  

Aldeia de Ferreira - Capelins 




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