sábado, 8 de julho de 2023

Memórias do Chiquinho de Capelins, quando recebeu a visita de gente fina

Memórias do Chiquinho de Capelins, quando recebeu a visita de gente fina 

Num dia, como tantos outros, no início do decénio de 1960 o Chiquinho de Capelins brincava no corredor da casa dos avós, à entrada da cozinha e, começou a ouvir uma conversa entre a avó e as tias, sobre a visita de um casal que, eram gente fina, moravam na cidade de Évora, sendo o rapaz primo do avô e eram muito amigos, considerado como se fosse de família chegada, devido à vivência que tiveram até ele migrar para aquela cidade, onde tinha casado e organizado uma boa vida, trabalhando num serviço público, sendo bem remunerado e, além de ter uma boa casa, já tinha um automóvel, um privilégio de gente rica nessa época. 

O dito primo trocava correspondência com o avô do Chiquinho e, contava-lhe como ia a sua vida em Évora, até que, numa carta contou-lhe que já tinha um automóvel e estava a pensar em ir visitá-los à Aldeia de Ferreira e pedia-lhe informações sobre qual o melhor dia e o estado do caminho entre as placas e a Aldeia, uma vez que, esse caminho era empedrado e havia sempre alguns buracos, e o avô respondeu-lhe que podiam vir sempre que quisessem e, quanto ao caminho, desde que viesse devagar, fazia-o bem, porque o pior era no inverno, e depressa combinaram o dia da visita. 

A avó e as tias, uns dias antes, reuniram-se para fazer os planos, desde a chegada do casal até à sua partida, que seria no mesmo dia a meio da tarde, assim, estava em causa a limpeza da casa, a qual, tinha de ser toda caiada e tudo bem lavado, as louças, talheres, copos, toalhas e guardanapos, seriam do enxoval da avó, ainda nunca tinham sido usados,  porque a esposa do primo do avô era de Évora e era de gente fina. 

Esta conversa e a azáfama que se seguiu, começaram a fazer confusão ao Chiquinho, nunca tinha ouvido que havia gente fina e outra gente, a avó e as tias decidiram que para a comida seria sacrificado o galarito, estava com um ano de idade, ainda bom de se meter o dente e andava sempre a armar guerra na capoeira com o galo, por isso, seria feito um ensopado com batatas à moda de Capelins e, à chegada das visitas seria logo posta a mesa com pão, carne, queijo, azeitonas e um bolo feito no forno de lenha, vinho, gasosas e laranjadas e a ementa estava resolvida.

O Chiquinho continuava a brincar, mas sempre de ouvido à escuta da conversa, porque, tudo o que ouvia era novidade e, assim que teve oportunidade foi perguntar à avó o que era gente fina, o que vinham cá fazer, porque tinham de comer em pratos novos e matar o galarito para eles comerem? 

A avó explicou-lhe que, gente fina eram pessoas da cidade e, tinham hábitos diferentes dos nossos, andavam lavadinhos e bem vestidos, os homens usavam chapéu fino, fato e gravata e as senhoras lindos vestidos, e tinham de matar o galarito, porque eles não comiam sopas de grãos  nem açordas e nessas ocasiões de visitas punham-se nas mesas, pratos e copos novos, os primos vinham cá ver a gente e, também, para os ver-mos a eles, porque, moravam muito longe e já tinham passado muitos anos sem ver o primo, o Chiquinho pouco percebeu, mas ao menos, ficou com ideia do que era gente fina e o que vinham fazer à Aldeia de Ferreira.

A partir daquele dia, começou o asseio da casa e as conversas eram todas sobre as visitas da gente fina, a avó e as tias diziam que tinham vergonha da mulher do primo, mas dele não tinham, como tinha sido criado ali com elas, sabia muito bem como eram os seus hábitos, mas treinavam, diariamente para não falhar nada, o lavatório ficava no quarto onde iam lavar as mãos, assim como o bacio para a senhora, uma vez que não havia casas de banho e, até o Chiquinho ia ter uma roupinha nova e lembravam que tinham de ter cuidado com ele, para não fazer algum disparate e tinham de olhar para o nariz para estar bem lavadinho e o ranho assoado. 

A visita foi marcada para um Domingo e, esse dia começou muito cedo, com os banhos ou lavagem no alguidar, a vestir as roupinhas novas ou as melhores, porque, quando eles chegassem à entrada da Aldeia de Capelins de Baixo em frente das escadinhas do Pinheiro, tinham de lá estar todos para os receber, isso sabia o avô fazer muito bem. 

Antes das dez horas já a família os estava esperando no dito lugar e onde devia ficar o automóvel, que não eram mais de vinte ou trinta metros da casa do avô, o qual, não demorou em anunciar que tinha aparecido um automóvel aos muros do Monte Grande e só podiam ser eles, uma vez que, nessa época, não passavam por ali automóveis em abundância, seriam dois ou três por semana, por isso, quase decerto que eram as visitas, mas ainda demoraram algum tempo a chegar, devido ao mau estado do caminho, até que parou um automóvel vermelho já estilo moderno dos anos 60 e, os visitantes depressa saíram do veículo a cumprimentar toda a gente que por ali estava, a família e os mirones. 

O primo do avô era muito conhecido de toda a gente, ao contrário da sua esposa que, como foi referido  não era destas bandas, por isso, levou muito tempo nos cumprimentos, mas foram indo para os lados de casa e por fim lá foram entrando, sempre falando sobre as pessoas suas conhecidas e sobre a Aldeia que, já estava muito melhor, dizia o primo.

Na casa do avô continuaram a falar de tudo, bebendo uns copinhos de vinho com gasosa e petiscando, o primo relembrava os tempos que ali tinha passado e não se cansava de agradecer ao avô o que tinha feito por ele quando ali morava e que o tinha encaminhado para sair dali à procura de melhor vida, e contou ao avô o que tinha feito antes de chegar a este emprego e dizia que, se não tivesse abalado, ali não passava da cepa torta e ambos concordavam. 

As mulheres falavam à parte, de como era a sua vida na Aldeia e mostravam os seus bordados e a senhora contava como era a vida dela na cidade de Évora, dizia que tratava da casa, da comida, das roupas, ia ás compras e a passear, tinha muito trabalho, mas mais tarde a avó e as tias, comentaram que, ela tinha uma bela vida, até ia passear!

O que é bom acaba-se depressa, dizia a avó, foi um dia muito diferente dos outros e, quando chegou a hora da partida a avó aviou umas peças de carne e uma dúzia de ovos para os primos e foi toda  a família fazer as despedidas até ao automóvel, mas quando chegaram ele não estava onde tinha ficado estacionado, gerou-se logo grande confusão e ninguém acreditava que o tivessem roubado, ainda mais que, nem havia ali ninguém encartado, ficou toda a gente muito aflita a procurá-lo e o avô desceu alguns metros e exclamou: - Está ali, está ali! Foram todos a correr a tentar perceber como é que o automóvel tinha abalado sozinho e, como fazia um grande desnível à esquerda onde se entrava para o quintal do avô, o automóvel ficou nesse lugar, deixando à vista só a parte traseira e o primo do avô depois confessou que ainda tinha pouca prática e com o entusiasmo à chegada esqueceu-se de o travar bem e ele, aos poucos, foi deslizando até onde ficou embarrancado. 

Depois de observado, verificaram apenas uns arranhões nos guarda lamas, porque nesse tempo os automóveis eram feitos de boa chapa de aço que não amolgava, então, começaram a estudar a maneira de o tirar dali, acharam que, de empurrão não conseguiam, era muito pesado e o avô disse que ia ao Monte do Cebolal chamar o cunhado que trazia a mula para o puxar para trás, mas isso levava muito tempo e depois abalavam dali muito tarde, pelo que, decidiram ligar-lhe umas cordas e com umas tábuas grossas por baixo das rodas e com a ajuda de alguns homens e rapazes que por ali andavam, lá o tiraram e não demorou muito tempo, meteram-se nele e seguiram para sua casa. 

O Chiquinho gostou muito da visita da gente fina, porque, não era todos os dias que vivia aquele ambiente de festa, nem bebia gasosa e comia ensopado de galarito, os  avós e as tias, também gostaram muito, diziam que, nem pareciam gente fina, até convidaram toda a família para quando fossem a Évora ficarem lá em casa deles, e comentavam: - Só foi pena o carro ter abalado sózinho! Mas não houve mal de maior e, as peripécias da visita deram para a avó, tias, vizinhas e metade da Aldeia, terem conversa para mais de um mês. 

Fim 

Texto: Correia Manuel 

Aldeia de Ferreira  




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