sábado, 4 de março de 2023

Memórias do filme, o benfeitor de Capelins

 Memórias do filme, o benfeitor de Capelins

Nos dias de hoje, com um telemóvel, qualquer pessoa pode fazer um video caseiro com alguma qualidade, mas no início da década de 1970 não se falava em vídeos e, qualquer filmagem, era chamada de filme, feito com uma máquina de filmar.
Num sábado à tardinha, no início dessa década, estavam alguns rapazes a beber e a petiscar numa taberna na Aldeia de Ferreira, uns eram militares, outros trabalhavam em Lisboa ou outra região e estavam a passar o fim de semana, e outros eram aqui moradores permanentes, foram bebendo umas cervejas, falando das suas aventuras e desventuras e às tantas o João disse ao Manel para não abalar sem terem uma conversa, só entre os dois, o Manel respondeu que estava à ordem dele e era melhor falarem já, senão o mais certo era esquecer-se, o João concordou e levantaram-se dos bancos, deixando os outros rapazes muito curiosos e perguntaram onde iam, eles responderam que já voltavam, saíram e o João começou a conversa:
João: Olha lá Manel, ando com umas ideias na minha cabeça e lembrei-me de ti!
Manel: Ó João, diz lá o que precisas que eu só não te ajudo se não puder!
João: Isso sei eu, por isso é que me lembrei de ti! Mas não podes contar nada a ninguém sobre esta conversa!
Manel: Claro que não! E se é alguma coisa grave, fica descansado que eu não conto nada!
João: Não é grave, mas até pode ser, porque se esses invejosos sabem, acaba-se antes de começar, por isso, não contes nada a ninguém!
Manel: Ó João, já te disse que não conto nada, diz lá o que precisas!
João: Olha lá, tu que andas lá por Lisboa, vê lá se me arranjas lá uma máquina de filmar, boa e barata!
Manel: É João, uma máquina de filmar boa e barata? Onde é que isso se arranja? Não sei, não sei! O que vejo por lá à venda são todas muito caras! Então e já viste em Espanha?
João: Em Espanha não arranjo nada, já falei com uns espanhóis meus amigos e lá são muito caras, mas aqui em Ferreira disseram-me que lá para Lisboa se arranjam mais baratas na candonga!
Manel: Sim, eu sei que se arranjam mais baratas na candonga, mas há muitas que não funcionam, há muitos enganos, eu tenho muito medo disso, mas posso ver!
João: Então vá, vê lá isso e depois diz-me quanto custa para ver se eu consigo arranjar o dinheiro, senão, faço aí umas rifas de um borrego!
Manel: Mas já agora, queres a máquina para filmar o quê?
João: É para fazer um filme, para que havia de ser?
Manel: Um filme? Sobre o quê?
João: Eu conto-te tudo, mas não contes nada a ninguém, senão vai tudo por água baixo!
Manel: Já te disse que não conto nada, então o filme é sobre o quê?
João: Tu já viste os filmes do Zorro, do Robin dos Bosques e do Zé do Telhado?
Manel: Já vi, já, roubavam aos ricos para dar aos pobres e ajudavam as pessoas! Mas não sei se sabes, é proibido copiar filmes e livros, dá uma grande multa!
João: Mas quem te disse a ti que eu vou copiar alguma coisa, eu faço cá à minha maneira e é sobre pessoas que foram salvas e ajudadas aqui, durante a guerra civil de Espanha de 1936/39!
Manel: Então, e que pessoas foram salvas aqui em Capelins, se a guerra era lá em Espanha?
João: Sim, a guerra era lá em Espanha, mas aparecia aqui muita gente fugida da guerra e que andavam escondidas por esses matos e ribeiros e a pedir esmola, homens, mulheres e crianças que, por vezes, eram assaltadas e abusadas por meliantes, mas havia aí um filho de um lavrador de Capelins que andava no seu cavalo alasão encoberto pela vegetação nas margens das Ribeiras e do Rio Guadiana e, quando ouvia gritar por socorro, aparecia de cara tapada com um lenço, dava uma coça nos patifes e ajudava as pessoas com bom pão, queijos, chouriças e outras coisas, dava-lhe de comer e depois desaparecia, sem esperar agradecimentos, chamavam-lhe o D. João, porque desconfiavam que ele era João, mas não tinham a certeza, não se podiam ajudar os espanhóis e espanholas fugidos da guerra, senão, quem os ajudava podia ser preso pela Guarda Republicana, isto contam os homens mais antigos da nossa Freguesia, dizem que foi tudo verdade! Esse papel de D. João, vai ser feito por mim!
Manel: Esse papel é feito por ti? E onde vais arranjar o cavalo alasão?
João: Já tenho tudo debaixo de olho, preciso de arranjar esse cavalo e um churrião puxado por dois cavalos, o resto é toda a gente a pé, até os que fazem de patifes, era melhor em cavalos, mas onde é que os vou arranjar?
Manel: Então e para que queres o churrião puxado por dois cavalos?
João: O churrião é para uma cena em que veio uma senhora rica de Cheles com as suas duas filhas muito bonitas, passaram o rio Guadiana de barco para cá, e o churrião que era do lavrador do Monte da Talaveira, estava nas Azenhas D' El-Rei à espera delas para as transportar ao dito Monte, porque eram primas desse lavrador, mas quando iam a passar o Ribeiro do Carrão foram assaltadas por um grupo de ladrões que, as roubaram, porque traziam muitas jóias e tentaram abusar delas, mas elas gritaram por socorro e naquele momento, apareceu o D. João no seu cavalo que as salvou e depois acompanhou o churrião até perto do dito Monte, mas desapareceu sem elas terem tempo de lhe agradecer, mas esse rapaz era muito amigo dos lavradores da herdade da Talaveira e todos os dias passava lá pelo Monte a ver como estavam e se precisavam dele, ora, não demorou muito a apaixonar-se pela espanholita mais nova e ela por ele, namoraram uns meses e acabaram por casar na Igreja de Santo António, e no dia do seu casamento, sábado dia 01 de Abril de 1939, chegou a notícia que tinha acabado a guerra civil de Espanha e, ainda nesse dia, na festa do casamento lá no Monte da herdade do pai, ele contou aos amigos e à família que era ele o D. João, que as tinha ajudado, assim como, a muitos outros espanhóis e espanholas atacados por ladrões nas terras de Capelins, mas já todos sabiam e, além dos agradecimentos, foi só rir, devido à sua personagem de D. João!
Manel: É um filme muito interessante, até mete casamento em Santo António de Capelins, mas onde arranjas os atores, as atrizes e as roupas?
João: Não te preocupes, está tudo estudado, há aí muitos rapazes e raparigas em Ferreira e em Montejuntos que querem entrar no filme, é só ensaiar como fazem para os bailes da pinha, fazem-se as roupas e não é preciso muito tempo para entrarem em cena!
Manel: Então e se tu és o ator principal, o D. João, quem faz as filmagens?
João: Deixa lá isso, está tudo pensado, quem vai filmar é quem a gente ensinar, tu aprendes lá com quem te vender a máquina, como aquilo funciona, depois explicas aqui a um gajo que eu já sei quem é, e ele filma!
Manel: Estou a ver que tens tudo bem planeado, então e como se vai chamar o filme? E já escreveste o guião?
João: O fime chama-se: O benfeitor de Capelins, o D. João fazia bem a toda a gente, era um benfeitor, e o guião não é preciso escrever, está tudo na minha cabeça!
Manel: Ó João, está tudo na tua cabeça, mas não está na cabeça dos outros atores, como é que sabem o que têm de fazer para ser filmado?
João: Ora essa! Cada um sabe o que tem de fazer, não te disse já que vamos ensaiar antes!
Manel: Pronto, tu lá sabes, mas acho que é o prineiro filme sem guião!
João: É pá, arranja lá a máquina e deixa o resto comigo!
Manel: Ainda tens aí outro problema, que é a montagem do filme e a mistura da musica conforme as cenas e tens de pagar direitos de autor!
João: Lá estás tu, não é preciso montar nada, e a música já tenho aí um acordionista que toca tudo o que for preciso!
Manel: Toca tudo o que for preciso? Mas são musicas de outros, não as podes usar no filme, porque têm direitos de autor, têm dono!
João: Já te disse, arranja lá a máquina que eu cá me arranjo!
Manel: Ó João e depois queres o filme para quê? Para vender a quem?
João: Qual vender, é para ir de terra em terra, como esses que vêm aqui, vou aos mesmos sítios, casões, casas do povo, sociedades, em dias diferentes deles!
Manel: Tens aí outro problema, onde arranjas o projetor? É outra máquina muito cara, e onde tens o transporte para ires de terra em terra?
João: Lá estás tu só a ver se me acabas com o filme, já me informei e não preciso de comprar projetor, posso alugar um, só para esses dias, e o transporte, tenho aí a motorizada!
Manel: Sendo assim, tu lá sabes, eu vejo lá da máquina de filmar e depois falamos!
O Manel e o João entraram na taberna, deixando os outros rapazes muito desconfiados, porque a conversa foi longa e tentaram saber o que eles tinham falado, mas nada foi desvendado sobre o segredo do João.
O Manel procurou a máquina de filmar para o João por Lisboa inteira, mas havia poucas nas lojas e eram muito caras e quanto à candonga, todos os amigos lhe diziam para não se meter nisso, porque, o mais certo era ser enganado, mesmo por aqueles que, se diziam amigos, e foi sempre informando o João sobre o ponto da situação do negócio e disse-lhe que, se ele quisesse, podia trazer-lhe uma máquina de filmar da candonga, mas sem nenhuma garantia e o mais certo era não filmar nada e o João compreendeu que corria grande risco de ser enganado e acabou por adiar o projeto, pelo menos uns tempos, porque, falava-se que, estavam a chegar do Japão, máquinas modernas e mais baratas, mas levaram muito anos a chegar e o filme do João ficou na sua cabeça, onde, ainda hoje se deve conservar, porque não tinha guião, mas ainda pode ter e ser filmado.
Fim
Texto: Correia Manuel

Monte em Capelins



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