terça-feira, 7 de março de 2023

Memórias do mercador e lavrador de Capelins

 Memórias do mercador e lavrador de Capelins

A Vila de Ferreira de 1314, era constituída por quase todo o espaço geográfico da atual Freguesia de Capelins, era Concelho comunitário, não era régio, mas tinha Câmara com Alcaide, Procurador, Juiz, Escrivão, Vereadores e Lavradores e tinham a missão de zelar pelo bem estar da comunidade. As Aldeias de Capelins de Cima e de Capelins de Baixo, existiam desde o inicio de 1700, junto das quais, existia uma porção de terra designada por Coutada e, era administrada pela Câmara que a cedia ao povo para apascentar os gados de trabalho, fazer as eiras, as almiaras de palha, depositar lenhas e estrumes e outros despejos, não sendo um Baldio. Parece que, o dito Concelho foi criado a partir de 21 de Abril de 1698, quando o Reino vendeu as herdades desta Freguesia a particulares, assim como, algumas courelas, junto ao Monte Novo e perto de Calados e fez a doação das herdades da Defesa de Ferreira e Defesa de Bobadela à Sereníssima Casa do Infantado e, ao mesmo tempo, doou a Coutada à Câmara da Vila de Ferreira no lugar antes referido, dentro da herdade da Defesa de Ferreira. Como a Casa do Infantado foi extinta no dia 18 de Março de 1834, os seus bens foram incluídos na Fazenda Nacional, entre eles, aquelas duas herdades, sendo decidido que, seriam vendidas, logo que fosse possível, porque estavam arrendadas e o processo da venda foi sendo adiado até 30 de Abril de 1919, embora, o contrato de arrendamento à Casa Camões, só terminasse em 31 de Dezembro desse ano. As herdades estavam à venda, mas a Casa Camões, como tinha muita convivência e amizades com o povo da Aldeia de Ferreira e, conhecia as suas intenções sobre a Coutada, recusou a sua compra e surgiram outros compradores que, iam sendo informados da situação e acabavam por desistir da compra das herdades, para não entrarem numa demanda com o povo da Aldeia de Ferreira. A dita Coutada da Vila de Ferreira foi doada à Câmara, a qual, com o Concelho foi extinta em 06 de Novembro de 1836, sendo, automaticamente, também extinta a respetiva doação da Coutada, voltando à Fazenda Nacional, ou seja, ao Reino, mas era nesta data que devia ter passado, oficialmente a ser património da Junta de Freguesia de Capelins, mas, parece que nada foi tratado. No ano de 1919, o Regime Republicano, tinha as finanças públicas em ruínas e o Governo mandou vender todos os imóveis e direitos que eram sua propriedade, incluindo as ditas herdades que, continuavam sem interessados devido aos motivos descritos, mas, pouco depois, começou a circular na Aldeia de Ferreira a informação que existia um comprador e que o processo da compra estava muito avançado, talvez, já com as Escrituras feitas e era verdade, as escrituras foram feitas em 30 de Abril de 1919. O povo da Aldeia de Ferreira ficou alarmado, fez uma reunião e foi nomeada uma Comissão para o representar em todas as situações sobre a Coutada, a qual, começou por procurar saber quem tinha sido o eventual comprador para o tentar demover da compra ou para saber das suas intenções sobre a Coutada, se a dispensava, ou não, para o povo. A Comissão começou logo a trabalhar e nos dias seguintes, conseguiu saber quem tinha sido o comprador das herdades e quando participou ao povo que tinha sido um almocreve ou mercador que andava de terra em terra, numa carroça, a comprar e a vender azeite, um homem de negócios, para os dois filhos, ninguém queria acreditar, mas a compra estava consumada e sabiam que, a Coutada estava integrada na herdade da Defesa de Ferreira, mas, talvez, ainda pudessem chegar a um entendimento. A Comissão tentou chegar à fala com o mercador e filhos, mas eles formaram uma sociedade e nomearam um advogado para os representar, o qual, tinha instruções para não ceder aquela porção de terra ao povo, e participou à Comissão que não existia nenhuma Coutada dentro da herdade da Defesa de Ferreira, pelo que, todo o espaço geográfico que constava na caderneta predial era propriedade do seu constituinte, pelo que, o povo ia ser notificado para limpar o terreno no prazo de trinta dias, uma vez que o estava a usar indevidamente. O povo ficou inquieto e contratou um advogado para analisar os seus direitos sobre o espaço geográfico da Coutada, assim como, para defesa, no caso de terem de ir para Tribunal , como aconteceu, e estava iniciada a demanda entre os novos donos da herdade da Defesa de Ferreira e o povo da Aldeia de Ferreira. Quando os filhos do mercador, lavrador, começaram a instalar a sua casa agrícola na herdade, começaram os confrontos com o povo que, não aceitava a sua entrada nas terras que achava pertencer à Coutada e impediram que essas terras fossem cultivadas, afugentavam os gados dos lavradores quando entravam nesse espaço geográfico, fazendo aumentar a tensão no dia a dia, até que, surgiu a intervenção da Guarda Republicana que, agredia o povo e defendia os lavradores. A contenda continuava no dia a dia e, quando os trabalhadores por conta dos lavradores tentavam lavrar as ditas terras, o povo não deixava, as pessoas metiam-se e deitavam-se em frente das juntas de bois e das parelhas de muares e não os deixavam avançar, depois, vinha a Guarda Republicana e agredia severamente esses homens e mulheres, obrigando-os a afastarem-se do espaço de terreno, designado por Coutada do povo. Um dia, os homens que pertenciam à Comissão, foram notificados para comparecer na Vila de Alandroal, sem indicação do assunto, mas não tinham dúvidas que seria sobre a Coutada e comentaram que, talvez fosse para lhe participarem que a situação estava resolvida a favor do povo, vestiram a sua melhor roupa, o traje domingueiro e, de boa fé, apresentaram-se às entidades que os esperavam, depois de identificados, foram separados e, apenas com a roupa que tinham vestida, foram desterrados para diversos lugares no Alentejo e no Ribatejo, como Coruche e outros, todos a grande distância da sua família, mulheres, filhos e da sua Aldeia de Ferreira, agora, "ocupada" pelos estranhos forasteiros, mercador e filhos, ficando proibidos, durante anos, de voltarem à sua terra, de onde tinham partido, pensando que, iam só ao Alandroal, sem deixarem nada preparado sobre a sua vida quotidiana e, ninguém informou as famílias do sucedido, só souberam mais tarde, as quais, ficaram em dificuldades e desamparadas, porém, inesperadamente, às Sextas Feiras, começaram a aparecer às suas portas, produtos alimentares, distribuídos durante a noite, sem ninguém imaginar quem o fazia, depois, souberam que era o Socorro Vermelho, uma organização internacional clandestina, de serviços sociais estabelecida pela Internacional Comunista, sendo esta organização fundada em 1922 para funcionar como uma "Cruz Vermelha política internacional", fornecendo ajuda material e moral aos prisioneiros políticos radicais da "guerra de classes" que, perante tamanha injustiça, estendeu o auxílio até àquelas famílias. A Coutada, oficialmente, não era do povo, mas, moralmente ninguém duvidava que era, uma vez que, esteve na sua posse mais de duzentos anos, por isso, o processo entrou no Tribunal do Redondo onde se desenvolveu durante algum tempo, sempre com a insistência do Tribunal para se entenderem a bem, porque, previa-se nunca mais haver paz naquele lugar, e diziam e ainda hoje dizem que, o mercador e os filhos, roubaram e ultrajaram o povo da Aldeia de Ferreira. Quando os filhos do mercador e seus representantes se convenceram que, tinha de haver entendimento com o povo, senão nunca mais havia paz entre eles, fizeram uma proposta de venda dessas terras em courelas a um preço razoável e, começaram a desenhar as ditas courelas, mas a maioria do povo não queria aceitar essa proposta, porque achava mal comprar o que considerava já ser seu, mas nem todos estavam de acordo e alguns moradores concluíram que era o melhor a fazer para apaziguar a contenda e começaram a comprar courelas e, embora com muita resignação e críticas aos que iniciaram essa compra, todos os que puderam, fizeram o mesmo e assim, de forma forçada, acabou por haver entendimento, pelo menos, em termos da ação em Tribunal, sendo o processo, posteriormente arquivado e os deportados puderam voltar para suas casas, para junto das mulheres e filhos, mas o povo disse sempre que foram enganados pelo seu próprio advogado, que negociou nas suas costas, a favor do mercador e filhos. O filho do mercador que acabou por ficar com as herdades, tornou-se grande lavrador, aumentou o Monte e mandou levantar muros em volta para o isolar, assim como, nos limites das suas terras junto às Aldeias e, começou a contratar muita gente da Freguesia e de fora da região, fazendo grandes investimentos, em gados, olivais e outro arvoredo, poços, lagar, cabanas, currais, malhadas, ovil e algum casario para alojar os trabalhadores, mas os nossos ancestrais contavam que, lhes tirou a pele, trabalhavam noite e dia, como era em todo o país nessa época e como andavam a de comer, davam-lhes comida muito má, pior do que a dos cães, os trabalhadores andavam cheios de fome, porque as açordas e gaspachos eram cegos, ou seja, sem azeite, este não fazia olhos, logo, pouco existia, os grãos eram servidos nas sopas quase crus, assim, sobravam, não os conseguiam comer, dando falsa ideia de fartura, as migas eram só pão e água, com pouco toucinho, e toda a comida era miserável, por isso, com essa exploração, aqui arranjou grande fortuna. Com o passar dos anos, as novas gerações, embora conhecedoras desse passado, foram aceitando a afronta feita aos seus antepassados e começou a existir mais harmonia entre o povo e essa casa agrícola. mas ainda hoje, existe o sentimento negativo e continuam por fazer as pazes, devido à humilhação feita pelo mercador ao povo da Aldeia de Ferreira. Foi escrito com base nas conversas com os nossos ancestrais que estiveram envolvidos neste caso. Espero consultar o respetivo processo judicial e, se for o caso, serão feitas eventuais correções.
Fim
Texto: Correia Manuel



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