quarta-feira, 2 de agosto de 2023

Memórias do Chiquinho de Capelins, quando foi a primeira vez ao rio Guadiana

Memórias do Chiquinho de Capelins, quando foi a primeira vez ao rio Guadiana 

Desde as primeiras lembranças da sua existência que, o Chiquinho de Capelins, ouvia a todo o momento, conversas sobre o rio Guadiana, diziam que, era um lugar com muita água, um mar, quando havia as invernias, o rio ia de mar a mar, mantendo grandes cheias durante dois ou três meses que nem se sabia onde se situavam os moinhos, mas o que mais o entusiasmava era o que contavam sobre as festas que lá se realizavam, a que chamavam paródias, com caldetas (sopas de peixe), peixe frito e outros petiscos, acompanhados com muito vinho e havia sempre cante, toque e dança, chegando a durar dois e três dias, por vezes, eram maiores do que as festas de Santo António, algumas dessas paródias eram organizadas pelos lavradores da região quando os ranchos das ceifas acabavam a safra e outras por outros grupos de homens e mulheres para comemorar qualquer acontecimento.

Diziam que, havia lá contrabandistas a levar café para Espanha que ficava do lado de lá do rio e traziam, botas, bombazine, fatos aborrachados para quando chovia, caramelos, chocolates e outras mercadorias, havia muitos barcos e os barqueiros passeavam as pessoas de barco pelo rio e passavam pessoas para Espanha e de lá para cá, havia pessoas a banhar e pescadores a apanhar peixes com redes, tresmalhos, guitos, nassas e outros instrumentos, havia moleiros que tratavam dos moinhos que moíam os cereais e faziam farinha, havia homens a colher buínho, junça, junco e vime, a cortar madeira para cabos de instrumentos de trabalho,  e gente por todo o lado, era um mundo.

Como o Chiquinho não conhecia nada disso ao vivo, era na base do que ouvia aos outros que imaginava e construía na sua cabeça o que seria aquele lugar tão maravilhoso, um paraíso na terra, o qual, há muito tempo sonhava conhecer, ver com os seus olhos e, talvez pudesse andar de barco, ir a Espanha e participar em alguma paródia. 

Quando, no início de um verão na década de 1960 a mãe lhe disse que iam passar o dia seguinte ao rio Guadiana, ele ficou doido de contente, porque, finalmente ia conhecer o famoso rio Guadiana e tudo o que há tanto tempo ouvia falar e foi logo comunicar à rapaziada de Capelins de Baixo e de Capelins de Cima, para no dia seguinte não contarem com ele para as brincadeiras, porque, o esperavam coisas muito melhores, lá no rio Guadiana, deixando os rapazes cheios de inveja e ficando mais importante. 

De madrugada, a mãe foi acordá-lo, mas ele reagiu mal, até que se lembrou que era o grande dia que há tanto esperava, deu um salto da cama para fora e não demorou muito, ainda ensonado, já estava em cima da carroça pronta a partir, pensou em não adormecer, porque queria conhecer o caminho entre a Aldeia de Ferreira e o grande rio, mas ainda era noite e com os tombos da carroça, depressa adormeceu e só acordou quando fizeram uma paragem na Fonte da lesma, já perto do destino. 

O Chiquinho acordou estremunhado, ainda era noite,  e perguntou se já tinham chegado, e a mãe respondeu que não, estavam a encher o barril e o cântaro de água para beberem lá durante o dia e isso fez-lhe grande confusão, porque motivo iam levar água para um sítio onde já havia tanta, e a mãe explicou-lhe que a água do rio Guadiana era a que corria dos ribeiros e das ribeiras para lá, logo, não se podia beber, porque tinha muitas impurezas e ele como já conhecia as águas da ribeira de Lucefécit, pensou ser igual, imprópria para beber, e não fez mais perguntas.

A família continuou a viagem na direção da horta do senhor Manolo, para descerem ao longo do rio até aos Moinhos das Azenhas D' El-Rei, mas como já raiava a aurora e o sol dava sinais do seu nascimento, o Chiquinho já não adormeceu e começou a fazer perguntas: - Onde estava o mar? Quase não se via água, apenas um ou outro pego, assim, não batia certo com o que ouvia contar na Aldeia de Ferreira.

Quando chegaram, instalaram-se num espaço entre os ditos Moinhos e a foz da ribeira de Lucefécit, onde existia um lavadouro, ou seja, duas ou três pedras um pouco inclinadas junto à água e a mãe começou a mergulhar as mantas e os cobertores na água para ficarem de molho e, entretanto, começou a lavar a roupa mais miúda e o Chiquinho começou a observar a região e a torcer o nariz por não ver o que esperava, não havia paródias, não via nenhum barco, não via gente nenhuma, mas ficou com o benefício da dúvida e, pensou que tinha de esperar, porque ainda era cedo e sabia que as festas nunca começavam logo de manhãzinha, por isso, sentou-se debaixo de um freixeiro, apanhou algumas pedras e começou a brincar, fazendo uma estrada, um rio e uma ponte, mas sempre alerta, à espera de ver chegar o gentio das paródias que demoravam em aparecer. 

O pai prendeu o macho debaixo de outro freixeiro e deu-lhe palha que tinha levado, depois chamou o Chiquinho e disse-lhe que ia mostrar-lhe o pego mais fundo que existia no rio Guadiana, naquela região, chamava-se pego de Dona Catarina e era tão fundo que nenhum dos melhores mergulhadores de Capelins e arredores tinham conseguido chegar ao fundo e tinha tanta água que nunca secava, mesmo nos anos das grandes secas em que secaram os pegos todos, mas aquele nunca secou, tudo isso, foi grande admiração, mas também, algum medo, devido à profundidade do dito pego, e pensou que ali devia ser o mar que tanto falavam. 

Quando voltaram à base, o pai foi ajudar a mãe a lavar a roupa pesada e ele continuou a sua brincadeira com as pedras e, o sossego continuava, apenas se ouvia o cantar da passarada, o piar de aves aquáticas e de rapina, o barulho dos correntões de água junto aos moinhos,  os mergulhos das galinhas de água e de grandes peixes quando saltavam, os chocalhos do gado nas pastagens do Roncão e do Aguilhão e, uma ou outra voz humana à distância a guardar o gado ou o moleiro a tossir, mas não se ouviam pessoas a cantar nem toque nenhum e o Chiquinho foi perguntar à mãe em que sítio eram as paródias, porque não ouvia as pessoas, e a mãe disse-lhe que, naquele dia, não havia paródias, andava toda a gente a trabalhar e, só quando acabassem esses trabalhos, alguns, no fim do verão, é que faziam ali as festas da acabada, sendo grande desilusão para ele, uma vez que, não era nada disso que esperava, valeu-lhe ainda ver um ou outro barco a subir e a descer o rio. 

Depois do jantar, (almoço), o pai foi colher um molho de junça e algum buínho para levar e, daí a pouco, o Chiquinho foi banhar junto à margem próximo da mãe, onde havia segurança, ela disse-lhe que tinha de ter muito cuidado, podia ser puxado pela corrente para o fundo de um pego, como já tinha acontecido perto dali e as pessoas morreram afogadas e que no rio Guadiana não havia só alegrias, também havia muitas tristezas, por isso, não se podia distrair nem afastar-se dali.

À tardinha, arrumaram a tralha e a roupa lavadinha e partiram para a Aldeia de Ferreira, mas o Chiquinho começou a pensar como enganar a rapaziada, tinha de lhe dizer que estava tudo cheio de paródias de alto a baixo, senão faziam pouco dele, e assim foi, porque, não tinha visto quase nada do que lhe contavam sobre o rio Guadiana, mas pensou que tinha tido azar, por terem ido no dia errado, mas agora que já ficava a saber o caminho, logo voltaria no dia certo e, assim, ficou mais animado, e ainda não sabia que tinha sido conquistado pelo rio Guadiana, pelas suas águas, flora e, principalmente pelos seus aromas dos perfumes da natureza envolvente, ficando cativo para sempre e, mais tarde, foi a paródias, banhos, pesca e muitas vezes atravessou o saudoso rio Guadiana.

Fim 

Texto: Correia Manuel 

Moinho das Azenhas D' El-Rei 




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