A lenda da Micaela de Monsaraz
Aos trinta dias do mês de Novembro de mil setecentos e cinquenta e cinco anos, nesta Igreja de Santa Maria, Matriz de Monsaraz, baptizei e pus os santos óleos a Micaela, que nasceu no dia 01 de Novembro, filha de José Madeira e de Ignácia das Candeias. Assim, escreveu naquela data, o Vigário de Monsaraz, Pedro José de Morais.
A Micaela foi a terceira filha deste casamento e a primeira menina na família, pelo que, era o enlevo de todos, até ao dia em que a sua mãe descubriu que ela era invisual e, foi como se o terramoto que tinha acontecido no dia do seu nascimento se tivesse repetido, o pai culpou a mãe por lhe dar uma criança cega, mas ainda ficaram na esperança de ser uma situação passageira e com o auxílio de algumas mézinhas ou rezas começar a ver, mas depois de ser vista pelos médicos da Vila de Monsaraz, por curandeiros e curandeiras da região, todos disseram que, como era cega de nascença, não havia nada a fazer, mas que ela, ia-se adaptando e podia fazer uma vida quase normal.
A família da Micaela ficou muito chocada, mas com o passar dos anos foram-se habituando à situação, e a inocente até era feliz, porque não conhecia mais nada, mas só tinha o amor da mãe, uma vez que, para o pai e para os irmãos deixou de existir, sendo substituída por outra menina que, entretanto nasceu, e todos os afetos eram para ela.
A Micaela foi crescendo e, quando tinha oito anos, ficou sózinha no mundo, nessa época, surgiu uma epidemia que ceifou muitas vidas, entre elas, a de sua mãe, causando-lhe um grande desgosto.
A menina era maltratada por todos, o pai nunca a tratava pelo seu nome, para ele era "aquela coisa", e os irmãos sempre que se aproximavam dela, davam-lhe empurrões que a faziam cair e ela começou a ser muito infeliz, passando muito tempo a chorar em silêncio.
A Micaela conseguia fazer quase todos os trabalhos da casa, mas isso não chegava, porque os importantes nesse tempo, eram os trabalhos no campo, e ela sentia-se, e era um fardo para a família, então, quando fez vinte anos, o pai pensou em se desfazer dela, mas era certo que ninguém a queria para casar, então, mandou-a arrumar alguma roupa, porque ia sair de casa, e foi falar com um mendigo de Monsaraz chamado José, conhecido pelo Zezinho por ser muito bondoso, um pouco mais velho do que ela, disse-lhe que lhe dava Micaela e podia usá-la na mendicidade, decerto lhe davam mais esmolas por ela ser cega, e ainda lhe dava algum dinheiro, não lhe permitindo recusar.
O pai da Micaela levou o Zézinho até à porta de sua casa, chamou a menina que já tinha alguma, pouca roupa, arrumada num saco de serapilheira, pegou-lhe num braço e deu-lhe um empurrão na direção do Zezinho, dizendo-lhe: Leva daqui esta coisa, a partir de agora é tua.
O Zezinho pegou no saco, deu o braço à Micaela e levou-a para o seu pobre casebre junto à Ribeira da Pêga, fizeram o caminho sem dizerem uma palavra, quando chegaram, ele disse-lhe que ia tratá-la muito bem, que não tivesse medo dele, depois deu uma volta pelo casebre, muito devagarinho, e ia dizendo o que tinha na frente, ela ía tateando e conhecendo o pequeno espaço, por fim, ajudou-a a sentar-se num banco e começaram a falar sobre o que podiam fazer na sua vida e como ele não sabia fazer nada dos trabalhos rurais, restava-lhe continuar na mendicidade, como já faziam os seus pais, mas ela estava muito infeliz, não parava de soluçar, deixando o Zézinho muito triste.
Com o passar do tempo, a Micaela começou a ter confiança no Zézinho, ele dava-lhe muito carinho, coisa que ela não conhecia, nunca tinha sido tratada assim em toda a sua vida, falavam cada vez mais e ele começou a levá-la a dar alguns passeios, explicando-lhe tudo o que os seus olhos viam, dizendo-lhe que os olhos dele eram dos dois, e foi num desses passeios junto à Ribeira da Pêga e do Azevel que começaram a trautear algumas cantigas e davam tão certo que parecia que cantavam em conjunto desde sempre, e cada vez acertavam melhor, ao ponto de começarem a ser falados nos ranchos dos trabalhos nas herdades, causando muita curiosidade dos trabalhadores e trabalhadoras que começaram a pedir para os levarem lá para os ouvirem, eles acabaram por ir e o sucesso foi tanto que, em pouco tempo, a sua fama já tinha passado os limites do Concelho de Monsaraz.
Por sugestão e insistência de alguns admiradores, um dia o Zézinho pediu a Micaela em casamento, ela que já estava apaixonada por ele, aceitou dizendo que nunca tinha sido tão feliz na sua vida e no dia seguinte foram falar com o Prior Francisco Xavier de Andrade, que tratou dos papéis de estilo e o casamento realizou-se na Igreja de Nossa Senhora da Lagoa, no Domingo dia 29 de Setembro de 1776.
Depois do casamento, quando iam a sair da Igreja, cruzaram-se com a irmã dela que, ao vê-la dirigiu-se a ela, o Zézinho pensou que a fosse felicitar e deu-lhe espaço, o suficiente para ela lhe dar um empurrão, dizendo: "O que anda esta coisa a fazer aqui? A Micaela caiu desamparada, bateu com a cabeça na soleira da porta da Igreja, ficando estendida no adro a sangrar e inanimada.
As pessoas que por ali estavam acudiram e levaram-na em braços para o Hospital do Santo Espírito, dos Irmãos do Espirito Santo de Monsaraz, situado ali na Praça, mas considerada já sem vida, porém, como foi logo socorrida, passou alguns dias entre a vida e a morte, até que, numa manhã abriu os olhos e deu-se um milagre, que foi atribuído a Nossa Senhora da Lagoa, porque, desde sempre, ela lhe rezava e pedia para a deixar ver, e aconteceu, começou a ver, ninguém acreditava nela, mas perante o que ela dizia que tinha na sua frente, tiraram as dúvidas.
Este milagre, foi falado por toda a região, até além da fronteira e, surgiram muitos romeiros em Monsaraz a rezar e a fazer pedidos a Nossa Senhora da Lagoa.
Depois de passar algum tempo no hospital, a Micaela teve alta e, já casada, foi com o Zezinho para o seu pobre casebre, onde ele continuou a tratá-la muito bem e a partir daí, ela passou a ser conhecida por Micaela dos milagres e, passados uns meses voltaram à vida das cantigas, a cantar e a encantar, cantavam nas Vilas e Aldeias, nas herdades e nos Montes dos Lavradores de toda a região, ainda cantavam melhor do que antes do casamento e já não conseguiam ir a todos os lugares que lhe pediam.
Embora não ganhassem muito dinheiro, passados uns tempos, conseguiram comprar uma casa na Vila de Monsaraz e deixaram o velho casebre, foram nascendo filhos até três que acompanhavam os pais por todo o lado, montados na sua burra e, existia uma grande felicidade naquela família de cantantes, nunca imaginada pela Micaela que, algumas vezes pensou em acabar com a sua triste vida, quando era maltratada na casa onde nasceu.
Mais tarde, a Micaela aproximou-se da família, perdoou-lhe o que lhe tinham feito e auxiliou os irmãos e o pai, que sofreu muito no fim da sua vida, e foi ela que o ajudou a aliviar o seu sofrimento.
Bem Haja Micaela
Texto: Correia Manuel
Fotografia: Isidro Pinto
Igreja de Nossa Senhora da Lagoa
Sem comentários:
Enviar um comentário