sábado, 27 de maio de 2023

Memórias do Chiquinho de Capelins, quando fazia a rota da sesta

Memórias do Chiquinho de Capelins, quando fazia a rota da sesta

No decénio de 1960, quando começavam as férias escolares no verão, alguns rapazes da Aldeia de Ferreira, ajudavam os pais nos trabalhos da agro pecuária, mas tinham muito tempo livre para as suas brincadeiras e atividades lícitas e ilícitas, estas últimas na hora da sesta dos pais e dos moradores, entre as 13 e as 15 horas nos meses mais quentes, eram donos da Aldeia e dos arredores, iam pelas hortas recolher o dízimo dos morangos, ameixas, peras, maçãs, uvas, cenouras e por vezes tomate, andavam pelos montados procurar ninhos de rolas, mas pelas 15 horas estavam sentados perto de casa, jogando às cartas ou outros jogos, convencendo os pais que não tinham saído dali.
O Chiquinho de Capelins fazia sempre parte do grupo de exploradores, conhecia bem o hábito dos moradores da Aldeia, como toda a gente se levantava muito cedo, pelas cinco ou seis horas da madrugada, para fazer as suas lides caseiras e os trabalhos agrícolas pela fresquinha, depois do jantar (almoço) caiam no camalho, com grande soneira que nada os acordava, até os cães, gatos, porcos, cabras, ovelhas, vacas e galinhas, dormiam a sesta, menos a rapaziada que, com antecedência planeavam as voltas a fazer e as respetivas estratégias, quando iam para sítios mais perigosos em termos de alguém os ver, estavam preparados para começar logo a assobiar e a chamar pelo cão do Chiquinho e diziam que o procuravam por ali, porque já tinham corrido toda a região e não aparecia, mas nunca era preciso usar essa desculpa, porque todos dormiam como anjinhos.
Havia hortas, quintais ou courelas que estavam a salvo, ou porque eram de familiares ou porque tinham medo do dono e nesses casos passavam de roda, ou se lá entrassem era a beber água em algum poço, mas não se atreviam a sair da zona limitada ao mesmo.
Num dia muito quente, chegou a hora da partida e foram fazer a rota já programada, mas o calor era tanto que não demorou estavam todos com muita sede e o Chiquinho disse-lhe que iam passar perto do poço do ti António que tinha a melhor água dali e uma bomba manual que puxava a água quase do fundo do poço, vinha muito fresquinha e muito cristalina, por isso, o melhor era aguentar a sede até lá, alguns concordaram, mas outros reclamaram que não aguentavam a sede e alvitraram que era melhor ir beber a outro poço antes daquele, mas a água tinha de ser tirada com o balde e não era tão fresca, era melhor ir ao outro, tinha lá sombra e apanhavam uma barrigada de água fresca e muito boa e lá seguiram cheios de sede, debaixo de sol que debitava mais de 42 graus C, em pleno mês de Agosto.
Quando os rapazes chegaram à horta do ti António, onde era o poço, alguns já iam de língua fora, a saborear a excelente água prometida, pararam e ficaram abismados com o que viam em frente dos seus olhos, a horta e o poço, estavam cercados de tabuletas de madeira onde estava escrito em grandes letras o seguinte: "Aqui Há Cêpos", os rapazes leram alto várias vezes, até que, interrogaram-se o que eram cêpos? - Nenhum sabia, nunca tinham ouvido falar e muito menos visto isso, mas todos concordaram que não era boa coisa e que o melhor era nem se aproximarem do poço, porque o dono não era para bincadeiras, por isso, decidiram não avançar dali! E agora? Com tanta sede e o poço mais perto, por onde antes tinham passado, ficava a mais de 500 metros, quem é que aguentava voltar para trás debaixo daquela calorina, a morrer de sede! Alguns aproveitaram para contar histórias de pessoas que morreram no deserto do Saara, debaixo de um sol ardente e cheios de sede, e segundo eles, nós estavamos na mesma situação.
Após cada um dizer a sua ideia, o Chiquinho disse-lhe que iam beber água ali, porque falava muitas vezes com o ti António e ele dizia-lhe para quando tivesse sede podia beber ali à vontade, porque a água não se negava a ninguém, então com receio, foram em redor da horta e chegaram ao poço, começaram a dar à bomba, para baixo e para cima e nada de água, mas depois de grande esforço de vários rapazes, lá ferrou e a água começou a correr e foi beber até não poder mais, e de barriga cheia de água seguiram a rota definida.
Como o Chiquinho passava muitas vezes perto da dita horta, dias depois, ia nesse percurso, e o ti António chamou-o e perguntou-lhe se ele e os amigos tinham estado a beber água ali no poço, e ele prontificou-se a mentir, respondeu que não, nem ele nem a rapaziada tinham passado por ali desde há muito tempo, o ti António disse-lhe que tinha visto um grande entorneiro de água em volta do poço e tinha pensado que tinham sido os gaiatos que ali tinham estado a beber e adiantou que, não fazia mal, porque a água não se podia negar a ninguém, mas tinha ficado muito aflito a pensar que podiam ter abalado dali sem pernas!
O Chiquinho estremeceu, quase desmaiou a ver-se sem pernas, e sem dizer coisa com coisa, a gaguejar, perguntou:
Chiquinho: Ó ti António, espere lá, porque é que abalavam daqui sem pernas?
Ti António: Ó rapaz, então tu não sabes ler? Ainda não viste esses avisos?
Chiquinho: Quais avisos? Não diz aí aviso!
Ti António: Não diz aviso, mas é a mesma coisa, essas tabuletas estão a avisar que há aqui cêpos, por isso, se alguém aqui entrar pode ficar sem pernas e não se pode queixar, porque foi avisado, é assim a lei!
Chiquinho: Ó ti António e como é que esses cêpos cortam as pernas às pessoas?
Ti António: Os cêpos estão debaixo da terra em sítios que só eu sei, quem os pisar eles disparam, e como têm dois serrotes, um de cada lado, cortam logo as pernas!
Chiquinho: Ó ti António, eu nunca entrei na sua horta, nem entro, para mim não servem!
Ti António: Isto não é por ti rapaz, mas diz lá aos teus amigos que, se não querem abalar daqui sem pernas, não entrem dentro da minha horta a mexer no que eu aí tenho!
O Chiquinho ficou em choque, abanou a cabeça em sinal afirmativo, olhou para as pernas para ver se lá estavam, e partiu a correr até à Aldeia de Ferreira, reuniu o grupo de rapazes e contou-lhe a conversa com o ti António, e explicou-lhe que os cêpos eram umas máquinas que estavam debaixo da terra e tinham uns serrotes que cortavam as pernas às pessoas, os rapazes ficaram aterrorizados, mas alguns ainda perguntaram: - Então se os cêpos nos cortam as pernas como abalamos de lá, da horta? De muletas, respondeu o Chquinho! Ah pois, responderam os rapazes! A partir daquele dia, as hortas de Capelins ficaram a salvo das visitas da rapaziada que, andavam com muito medo dos cêpos, de ficarem sem as ricas pernas.
Anos mais tarde, o Chquinho contou ao pai a conversa com o ti António, sobre a existência de cêpos que cortavam as pernas às pessoas que entrassem na sua horta e o pai começou a rir e disse-lhe que, nunca lá houve lá nenhum cêpo, as tabuletas serviam só para enxutar os ladrões dos tomates e das cebolas do ti António.
Fim
Texto: Correia Manuel

Poço e horta em Capelins


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