sábado, 11 de novembro de 2023

Memórias do Chiquinho de Capelins, quando comeu a caldeta sem peixes

Memórias do Chiquinho de Capelins, quando comeu a caldeta sem peixes 

Num dia de verão dos primeiros anos do decénio de 1970, um grupo de rapazes da Aldeia de Ferreira decidiram ir fazer uma paródia ao rio Guadiana, começaram por escolher o dia e surgiram discórdias, uns queriam que fosse num Sábado ou Domingo, e outros queriam que fosse numa Sexta-Feira, porque no fins de semana havia lá muita balbúrdia e como uns estavam de férias e outros não tinham nada para fazer, concordaram que seria numa Sexta-Feira. 

Depois de escolhido o dia da paródia, passaram para o rol das coisas que tinham de levar, azeite, alhos, sal, cebola, tomates, pão, farinha, talheres, pratos, copos, um tacho e uma frigideira, um balde, fósforos, vinho e cervejas e, os  peixes que seriam lá pescados. 

Depois disso  acertado, faltava assegurar os peixes e, logo alguns rapazes disseram que os peixes estavam por sua conta, não era preciso comprar, porque conheciam umas lapas onde havia sempre muito peixe, ficavam por baixo do açude  das Azenhas D' El-Rei, era só meter a mão nos buracos e tirar os que quisessem, por isso, estava tudo acertado, enquanto uns iam pescar os peixes ás lapas, os outros iam adiantando a caldeta e, à hora de almoço estavam todos a dar ao dente e a beber uns bons copos de vinho. 

A partida da Aldeia de Ferreira foi marcada para as oito horas da manhã, uma vez que, em pouco mais de uma hora chegavam ás Azenhas D' El-Rei, mas no dia marcado já passava das nove horas quando conseguiram partir, porque ao conferir o que tinham de levar, faltava sempre alguma coisa e, quando chegaram ao destino, alguns já iam cheios de fome. 

A base foi o Moinho das Azenhas D' El-Rei de fora, chegaram, descarregaram os sacos de serapilheira onde levavam as coisas e os pescadores apanharam uns sacos e correram para as lapas a apanhar os peixes com a promessa que em menos de meia hora estavam ali com o peixe para a caldeta e com algum mais miúdo para fritar. 

O João ficou em terra firme a comandar a cozinha, mandou dois rapazes a buscar lenha, porque havia ali alguma, mas não chegava, e acendeu logo o lume no sítio onde toda a gente o fazia, já estava tudo ajeitado, com umas pedras a servir de trempe para apoiar os tachos e uma cavidade para a lenha arder e disse ao Chiquinho para pegar no balde e ir à água, para quando os temperos estivessem refogados juntar a água, depois, quando eles voltassem com os peixes era só arranjá-los, meter um pouco de sal, esperar um pouco para tomarem do sal e metê-los dentro do tacho e depressa coziam. 

O Chiquinho pegou no balde e foi a correr à Fonte em frente ao Moinho, mas o João gritou-lhe a perguntar onde ia à água? 

O Chiquinho ficou atarantado e respondeu-lhe que ia à Fonte, onde havia de ir? Mas o João disse-lhe: - Volta lá para trás, porque a água para a caldeta é ali do correntão, não há água como a do rio para as caldetas! 

O Chiquinho voltou contrariado, e lembrou o João que os esgotos da cidade de Badajoz desaguavam no rio Guadiana, mas o João respondeu que aquele correntão era da água que vinha da Ribeira do Lucefécit, por isso, era muito boa para as  caldetas.

O João fez o lume, meteu o azeite no tacho e pouco depois, os temperos já estavam a refogar no tacho e os rapazes continuaram a ajudar, e um foi buscar uns ramos de hortelã da Ribeira.

Depois do refogado o João adicionou a água, derreteu duas ou três colheres de farinha de trigo em água e juntou para fazer o caldo grosso, só faltavam os peixes e já tinha passado mais de uma hora e os dois pescadores não apareciam, deixando a rapaziada inquieta, alguns rapazes puseram a hipótese de se terem afogado e começaram a chamá-los aos gritos e aos assobios, mas não havia resposta e foram procurá-los, mas o tempo passava e os peixes não apareciam e estava a fazer-se tarde, porque ainda tinham de os arranjar e coser, esperaram, esperaram e tiveram de arredar a caldeta do lume, por fim, lá apareceram os quatro rapazes com uma cara assustadora e os pescadores muito envergonhados, sem um único peixe, dizendo que parecia uma coisa do demónio, nunca na sua vida isso tinha acontecido, então lembraram-se de recorrer ao Ti Venâncio e comprar alguns peixes, como tinha a choupana ali do lado de baixo do Moinho, não demoraram a voltar de braços caídos, porque não havia sinais dele, devia ter ido a Montes Juntos, e agora? Perguntaram todos!

Os rapazes começaram a dizer que tinham muita fome já nem viam, por isso, decidiram comer o pão com vinho, mas o João fez-lhe alto e disse: - Está aqui uma sopa de tomate já feita, por isso, miguem lá o pão nos pratos e comemos a sopa de tomate, alguns rapazes responderam que aquilo era uma mixórdia, ou uma caldeta falida, porque nunca tinham comida sopa de tomate com hortelã da Ribeira e farinha, mas não tinham alternativa e encheram os pratos com pequenas fatias de pão e quando começaram a comer todos comentavam o mesmo: - A mixórdia estava muito boa, só faziam faltam uns figos para acompanhar, dispensava os peixes, e diziam que nunca tinham comido uma caldeta tão boa, e sem peixes, devia ser porque a fome era muita, ou porque estava mesmo muito boa, por ter hortelã da Ribeira, água do rio Guadiana e algum segredo do João.

Quando à tardinha voltaram à Aldeia de Ferreira, pelo caminho, combinaram não abrir o bico, porque, ninguém podia saber que tinham comido uma caldeta sem peixes, senão, seriam gozados por toda a gente, e todos juraram que não diziam nada, e ficou no segredo dos deuses. 

Fim 

Texto: Correia Manuel 


Moinho das Azenhas del-Rei - Capelins 



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