sexta-feira, 2 de junho de 2023

Memórias do Chiquinho de Capelins, quando caçava perdizes, em corrida

Memórias do Chiquinho de Capelins, quando caçava perdizes, em corrida

Nos meados do decénio de 1960, as maiores herdades da Freguesia de Capelins eram coutadas de caça, mas entre uma e outra era obrigatório existir um espaço para caça livre, chamada "faixa", onde todos os caçadores legalizados podiam caçar.
Sem explicação, era nesse lugar que as espécies cinegéticas eram mais abundantes, mesmo muito caçadas por caçadores da Freguesia, da região e lisboetas, havia sempre muitas lebres e perdizes que teimavam em sair das coutadas, onde eram protegidas e tinham comida e água debaixo dos chaparros, em diversos lugares.
Nessa época, não havia queixas por falta de caça, quando da abertura, fosse a das rolas, patos e outras espécies miúdas no dia 15 de Agosto, ou a das lebres, perdizes e coelhos no dia 5 de Outubro, havia fartura para todos, até para os chamados azelhas que falhavam muitos tiros e, para os caçadores de pau.
As perdizes eram tantas que durante o verão, depois de criados os perdigotos, andavam em grandes bandos e até se aproximavam das Aldeias, pela hora de mais calor, viam-se e ouviam-se cantar às sombras das oliveiras, no Gomes, Colmeadas e por aquela região, mas, não era seguido o provérbio: "em Agosto, espingardas ao rosto" e, só naquela data abria a caça às perdizes.
Num dia do mês de Agosto, um vizinho do Chiquinho de Capelins, chamado Francisco António, mas conhecido pelo Xico António, dois anos mais velho, perguntou-lhe se não via e ouvia as perdizes nos ditos lugares, eram bandos e bandos, havia anos em que eram mais abundantes, tinha a ver com o tempo ter vindo a favor da criação, e o Chiquinho respondeu que sim, então não havia de ver e ouvir! Pois olha, uns homens mais velhos, disseram-me que as podemos apanhar quase todas, comentou o Xico!
Chiquinho: Essa agora! E como é que as apanhamos? Com armadilhas? Com uma rede? Com umas gaiolas? Diz lá, com o quê?
Xico: Não é com nada disso! É a correr!
Chiquinho: Oh Xico, ainda és mais parvo do que eu, ou caíste de algum chaparro e bateste com a cabeça no chão?
Xico: Mau, mau, queres já acabar a conversa e ficas sem saber o truque? Olha que eu calo-me já e não ficas a saber o que me ensinaram!
Chiquinho: Eh pá, pronto, pronto, diz lá!
Xico: Agora já não te devia dizer, estás armado em parvo, mas vá lá, vou explicar, mas ouve bem que eu só conto uma vez!
Chiquinho: Se quiseres contas, se não quiseres não contas, nunca vi ninguém apanhar uma perdiz a correr, só se estiver ferida ou cansada, senão aventa um voo e lá se vai!
Xico: Ora aí está, é mesmo o que tu disseste, se estiver cansada, é só apanhá-la e depressa vai para a panela das sopas!
Chiquinho: Eu continuo a não perceber, como é que nós cansamos um bando de perdizes que estão além descansadinhas à sombra das oliveiras?
Xico: Então tu não me deixas acabar! É mais fácil do que tu imaginas, quando chegas além ao Gomes vais devagarinho e consegues vê-las e se te aproximares, o que é que elas fazem?
Chiquinho: Então o que hão-de fazer? Levantam voo e vão pousar noutro altinho a mais de quinhentos metros!
Xico: Bem dito, é isso mesmo, vão pousar num altinho onde podem ver se alguém se aproxima, não vão pousar numa cova! Agora diz-me lá, se lá nesse altinho já estiver uma pessoa bem escondida ou por perto e, assim que elas pousam aparece, e espanta-as, elas levantam voo outra vez, não vão para o sítio de onde as espantaram, mas vão para o mesmo lado, porque a pessoa que estava lá no altinho as encaminha, mas quando voltam, esbarram com o outro que, entretanto já se mudou, tornam a levantar voo e, pode nem sempre dar certo, mas muitas vezes dá, e agora no mês de Agosto, pela hora de mais calor, não são precisos muitos voos para ficarem cansadas, umas só conseguem três, outras quatro, depois é só cair-lhe de barriga em cima, e são nossas, era assim que aqueles homens faziam, antigamente, grandes caçadas!
Esta explicação deixou o Chiquinho desconfiado e disse ao Xico que devia ser alguma aldrabice como a de apanhar gambuzinos, devia ser para nos fazerem correr que nem doidos pela pior hora de calor e depois não apanhavámos nenhuma perdiz, mas perante o entusiasmo do Xico, aceitou fazer um teste e debaixo de grande calor lá foram até ao Gomes, escolheram o alvo e seguiram as regras que lhe tinham ensinado e correu muito bem, ao segundo ou terceiro voo, ficou uma perdiz no chão a cacarejar, o Xico apanhou-a e foram-se embora, já não perseguiram as restantes, porque ainda havia coisas a afinar, mas combinaram que no dia seguinte, mais cedo, lá estariam, só os dois, porque aquilo era ilícito e perigoso e podia aparecer o guarda florestal e da caça e se fossem apanhados podiam ser presos.
No dia a seguir, lá foram o Xico e o Chiquinho até às Colmeadas, muito sorrateiramente para ver onde estavam as perdizes a acampar, ficaram surpreendidos por não as ouvir, mas não foi necessário esperar muito para começarem a ouvi-las cantar, como conheciam bem toda a área, facilmente identificaram os lugares onde elas estavam, traçaram o plano de ataque, era preciso correr muito, o Chiquinho daria uma grande volta por detrás de um outeiro para ficar do lado de lá de onde estavam os bandos de perdizes, tinha de entrar no couto da casa Rendeira, era perigoso, mas seguro, decerto que o guarda florestal àquela hora estava a dormir a sesta no Monte da Defesa, então lá foi correr e espantou as perdizes para o lado onde já estava o Xico escondido em cima de uma oliveira, por ali andaram numa grande correria de lado para o outro, até que, o Xico lhe gritou a dizer que as perdizes já estavam cansadas, podia vir para ajudar a apanhá-las e quando o Chiquinho estava a chegar em frente a um pequeno Monte, já o Xico se atirava de barriga para cima de uma perdiz e outras que não conseguiam voar corriam desorientadas cacarejando em grande aflição, quando o Xico se levantou do chão com a perdiz pendurada pelo pescoço, mostrando o troféu, apareceu o ti António à porta do dito Monte, ainda ensonado, descalço, com as calças desabotoadas e caídas abaixo da cintura, com um olho fechado e outro aberto, a tempo de ver a perdiz nas mãos do Xico e zangado por ter sido acordado da sua bela sesta e por andarem a apanhar perdizes, sem licença e fora do tempo da caça, começou a dizer que ia participar aos guardas da venatória e acrescentou que, além de uma grande multa iam passar uns tempos na prisão do Redondo.
Depois dos rapazes pedirem, encarecidamente para o ti António não fazer queixa deles, ele acalmou-se e disse-lhes que, às abas de ainda serem parentes, dessa vez não fazia queixa, mas só se eles lhe prometessem que nunca mais faziam aquele serviço, porque apanhar perdizes fora do tempo da caça e sem licença era injusto para quem, como ele, tinha de pagar a licença de caça, dos cães e as bagagens, a pólvora, o chumbo e os cartuxos, tão caros, e depois os outros comiam-lhe as perdizes, não era justo, não.
Os rapazes prometeram ao ti António que nunca mais cansavam as perdizes, para as apanhar em corrida e, com a perdiz escondida debaixo da blusa, regressaram à Aldeia, a lamentarem-se do azar que tinham tido, com o aparecimento do ti António, mas dando graças por não irem parar à prisão do Redondo, por apanhar perdizes a correr.
Fim
Texto: Correia Manuel



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