sexta-feira, 2 de fevereiro de 2024

Memórias do Chiquinho de Capelins, quando passou por baixo da mesa

Memórias do Chiquinho de Capelins, quando passou por baixo da mesa 

Noutros tempos, nas terras de Capelins, quer fosse em casa de família, quer nos Montes dos lavradores, onde muitos trabalhadores comiam, porque o salário que recebiam incluía a comida, diziam que andavam a de comer, havia hora marcada para as refeições e, quem não estivesse presente nessa hora, o mais certo, era não comer.

Na Casa Dias, em Capelins de Cima, uns minutos antes das refeições, principalmente à noite, porque durante o dia os homens andavam a trabalhar no meio da herdade e ia lá o "escamel", numa burra, a levar o jantar, (almoço) à noite, ouvia-se um homem encarregado de gritar bem alto na rua do Monte Grande "ceia" ( hoje o jantar) e os trabalhadores que não estavam lá, corriam para o Monte, alguns andavam por Capelins de Baixo e abalavam a correr, por vezes chegavam mesmo à justa, senão, passavam por baixo da mesa, já não comiam.

O Chiquinho de Capelins, não era bom cumpridor de horários, porque perdia a noção do tempo quando andava na brincadeira e algumas vezes chegava depois das horas marcadas para o jantar (almoço) ou para a ceia (jantar) e era avisado pela mãe que se voltasse a acontecer, passava por baixo da mesa, ficava sem comer, mas isso, entrava-lhe por um ouvido e saía pelo outro, até que, chegou o dia em que foi apanhado, chegou cheio de fome, depois da hora marcada para o jantar (almoço) lá em casa e a mãe disse-lhe que não tinha nada para comer, porque tinha passado por baixo da mesa, depois de ver o caso mal parado, começou o diálogo:

Chiquinho: Então mãe, vamos a comer? Já estou cheio de fome! 

Mãe: Não vamos a comer, não, porque já passou a hora! Então estás cheio de fome e apareces a uma hora destas? Tu não sabes a que horas comemos cá em casa? Quantas vezes te avisei que um dia passavas por baixo da mesa? Por isso, não tenho nada para te dar de comer, eram sopas e não as podia partir para deixar aí a tua parte! Vai comer onde quiseres, aqui em casa não tens comida! 

Chiquinho: Óh mãe, mas deve ser agora meio dia! Decerto que hoje comeram antes do meio dia e agora eu é que pago as favas! Tem aí pão, frite lá um ovo e com um bocadinho de carne ou de queijo, não preciso de mais nada, está resolvido! 

Mãe: Não está resolvido, não, não tenho aí ovos, apareceu aqui a ti Xica dos Ovos e levou-os todos e além disso o teu pai deixou ordens para não te dar nada, por isso, se quiseres, vai ver onde te dão de comer! 

Chiquinho: Como é que uma mãe pode deixar um filho cheio de fome, já nem me seguro nas pernas, devo estar quase a cair desmaiado! Eu vou lá ao galinheiro a ver se está lá algum ovo! 

Mãe: E como é que um filho pode ser tão vadio que nem aparece a comer às horas marcadas? Não vais lá ao galinheiro, não, também já vendi os ovos de hoje, não vale a pena ir lá, porque não havia mais galinhas com ovo, então onde é que tu andaste até uma hora destas? Não tinhas fome? Agora é que chegou essa fome toda? Arranja-te como quiseres, mas aqui em casa não comes! 

Chiquinho: Olhe mãe, andei a trabalhar até agora, fui dar água às cabras e a mudá-las na pastagem e não dei pelo tempo passar, pensava que era mais cedo! Vá dê-me um bocadinho de pão com carne e com queijo, porque a fome já é negra! Onde é que eu vou comer a esta hora? Vou pedir um bocadinho de pão de porta em porta? O que é que as pessoas dizem? Pensam que é brincadeira e ainda me dão alguma vassourada! Não vou, nem que morra aqui de fome! 

Mãe: Então podes ir morrendo de fome, porque em casa não comes, não te disse muitas vezes que se não estivesses aqui à hora marcada, um dia passavas por baixo da mesa? Olha, foi já hoje! 

Chiquinho: Então dê-me um bocadinho de pão, mesmo sêco, sem conduto, e eu vou comer lá para a rua, assim já não como aqui em casa! 

Mãe: Já te disse e está dito, aqui não comes hoje, estavas bem avisado, pensas que não sei que andavas na brincadeira além para Capelins de Baixo, até te ouvia aqui aos gritos, porque não comeste pra lá! 

Chiquinho: Óh mãe, por acaso passei lá a Capelins de Baixo, mas antes do meio dia já estava nas Colmeadas, como já lhe disse, foi onde me demorei! 

Mãe: Ainda por cima és mentiroso, desde quando é que as cabras bebem água neste tempo? Por isso, acabou a conversa! 

Chiquinho: Então, quer dizer que passei mesmo por baixo da mesa? Não posso comer nada? Assim, vou aqui à vizinha pedir um bocadinho de pão com queijo, ou o que ela me quiser dar, porque senão, morro mesmo de fome! 

O Chiquinho, já estava convencido que não comia nada em casa e saiu porta fora, decidido ir pedir ajuda às vizinhas, mas quando já ia a sair pelo portão a mãe chamou-o e continuou: 

Mãe: Vá, senta-te lá aqui à mesa, desta vez ainda te safaste, ficaram aqui as tuas sopas, mas nunca mais voltes a fazer isto, nem sabes o trabalho que tive para convencer o teu pai a deixar-te aqui as sopas, olha tive que lhe mentir, disse-lhe que tinhas ido fazer um mandado a Capelins de Baixo, mas se acontecer outra vez, ficas a saber que passas, mesmo por baixo da mesa e não vais pedir pão a ninguém, senão conto ao teu pai e sabes qual é a receita! 

Chiquinho: Está bem, mãe, nunca mais, dê-me lá as sopinhas, que eu já nem vejo, com a fome que tenho! 

O Chiquinho comeu as melhores sopas de feijão da sua vida, e nunca mais esqueceu as horas marcadas para as refeições, porque não tinha dúvidas que se voltasse a acontecer, passava por baixo da mesa e a fome custava muito a suportar. 

Fim 

Texto: Correia Manuel  





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